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Diário do caminho: primeiros passos

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Por Hernan Centurion (*)

 

Ano Novo, novos sonhos, vontades, metas. Aquilo de ruim e desagradável que acontecera no ciclo do calendário gregoriano que ora se encerra, deixamos lá atrás, bem escondido, para nunca mais lembrarmos; já o que ficou pela metade, tentaremos doravante finalizar, tal qual uma colcha de retalhos. Porém, o que mais nos importamos, verdadeiramente, é recomeçar, apertar o botão reset e traçar novos rumos nessa longa e sinuosa “estrada da vida”. Muitos almejam poder, glória, reconhecimento, status, medalhas, fortuna… quem nunca se arriscou na Mega da Virada atire a primeira pedra. Até eu faço minha “fezinha” às vésperas do Réveillon. Entretanto, desta vez, algo me fez divagar por uma ótica que, desde alguns poucos anos passados, vem me instigando. Sou constantemente levado a ressignificar-me, a não priorizar a matéria, profana e efêmera, mas sim o espírito, puro e perene!

Foi nessa procura da verdadeira e utópica felicidade, a qual não se mede, apenas se sente, se vivencia, recebo algo semelhante a um chamado, talvez uma tentativa de resgate, redirecionando-me para “a Luz verdadeira que alumia todo homem que vem a este mundo”, como bem traduzira João nas Sagradas Escrituras (1;9).

Pois bem, meses se passaram desde o primeiro insight e algo indescritível ia me consumindo paulatinamente no fundo d’alma, reorientando-me, pois, à procura do melhor caminho a seguir. Eis que, uma certa vez, em meio a devaneios que costumeiramente antecedem o sono de numa noite qualquer, decido, sem titubear, percorrer o Caminho de Santiago de Compostela, cuja lenda remonta-nos à época que antecede Cristo, primeiramente ao tempo dos Celtas e depois, dos Romanos, estando lá guardadas, na quase milenar Catedral de Santiago, as relíquias de Tiago, apóstolo de Jesus, um dos que teve o privilégio de provar do verbo divino.

A partir de então, milhões de pessoas, de reis a plebeus, das mais variadas crenças e religiões, têm caminhado pelas diversas trilhas que levam a Compostela, numa peregrinação em busca do porquê, isto é, do real motivo de estarmos encarnados neste mundo, por vezes cruel e injusto, não obstante necessário para nossa evolução. Bem antes de surgir a célebre frase “penso, logo existo” de René Descartes, acredita-se que houve outra não tão conhecida: “caminho, logo penso”, pois o Homo sapiens, durante a evolução das espécies, passou a refletir sobre vários assuntos durante as longas caminhadas, analisando como conseguir alimentos, num primeiro momento e, ad continuum, como buscar conhecimentos. Nesse contexto, o próprio Jesus foi um grande exemplo de andarilho que transmitira, justa e perfeitamente, sua mensagem durante longas caminhadas pelo solo árido do Oriente Médio.

Mapa dos Caminhos de Santiago

Assim sendo, comecei a estudar a melhor maneira de enfrentar esse desafio, para mim inédito. Avaliei a época do ano mais propícia, comprei as passagens aéreas e escolhi o Caminho Português Central quando, para minha grata surpresa, percebi que chegarei em Santiago de Compostela em pleno Domingo de Páscoa. Seria uma mera coincidência? Passei, então, a analisar os trechos, atalhos, cidades-dormitório, como também a ver todas as dicas dos itens e roupas que deveria levar. Começo, assim, os treinos com longas caminhadas. Vou percebendo detalhes da paisagem que outrora me parecia bem conhecida, mas que agora, com mais cautela e atenção, esconde cores, formas e seres ímpares que, dentro de um carro e na correria do dia a dia, eram por mim imperceptíveis. Ouvi certa vez de um amigo peregrino, um grande incentivador: “o Caminho começa quando decidimos fazê-lo”. Indubitavelmente, mudamos a forma de olhar, pensar e agir, já que durante esses treinos eu particularmente aproveito para refletir muito do que fiz na vida pregressa e programar aquilo que pretendo desenvolver, olhando com os olhos do coração, ouvindo o som da própria natureza, por vezes músicas sacras ao fone de ouvido, volvendo meu pensamento diretamente ao âmago da minh’alma e colhendo algumas respostas de perguntas anteriormente difíceis de compreender, ainda muito antes de enfrentar, de fato, a peregrinação em solo galego.

Destarte, o primeiro grande desafio que vislumbrei foi justamente cuidar dos pés, isto é, ter a segurança de como e onde pisar. Certamente irei trilhar por terrenos acidentados, desnivelados e lamacentos, necessitando, pois, de um calçado apropriado e confortável para evitar lesões. Imagino eu que essa assertiva traduza metaforicamente que temos que saber onde pisamos, ou seja, termos cautela e pleno discernimento quais lugares frequentamos, onde trabalhamos, com quem convivemos, de que modo nos posicionamos, o exemplo que demonstramos, para que não surjam bolhas, isto é, máculas no nosso caráter. Os passos certos que damos, por conseguinte, servirão como pegadas que orientarão a rota para aqueles menos experientes que nos seguirão, quais sejam: nossos filhos, netos e discípulos.

A segunda provação que cogitei é o peso da mochila que carregarei. O conselho dos peregrinos experientes baseia-se no aforismo: “menos é mais”, digo, menos peso e volume, mais disposição e conforto. Analogamente, ser minimalista, aquilo que seja supérfluo ou prescindível deve ser retirado das nossas costas, pois cada grama a mais colocada sobre estas terá consequências desagradáveis e, assim, fará com que paguemos um preço amargo durante o roteiro. Daí a necessidade de repensarmos os fardos que intencionalmente ou não colocamos nas nossas “mochilas da vida”, quer sejam estes: boletos de roupas, joias, aparelhos celulares, bebidas ou computadores caríssimos, jogatinas, luxúria, casas de praia, automóveis de luxo, além de sentimentos vis como rancor, inveja, intolerância, ódio, ciúme, tudo isso será uma carga extremamente árdua que não conseguiremos suportar e que, sem dúvidas, deixar-nos-á pelo caminho à deriva.

Por último, mas não menos relevante, é mostrar-se empolgado, esperançoso, aberto e disponível a conhecer as variadas verdades que certamente encontrarei pelo Caminho, ouvindo as diversas histórias de anônimos, dividindo experiências de vida e compartilhando emoções que mudarão o “pré-conceito” de uma realidade mundana e capitalista, abrindo portas que libertarão do labirinto de trevas.

Continuarei treinando, andando, pensando, aprendendo, caindo e levantando, curando bolhas, suportando, para que em poucas semanas possa eu participar dessa iminente aventura.

E como dizem os peregrinos de Santiago de Compostela: ultreya e buen camino.

Até meu retorno!

 

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Hernan Centurion

(*) Médico cirurgião e coloproctologista. Mestre maçom da Loja Maçônica Clodomir Silva 1477, exercendo atualmente o cargo de venerável.

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