Por Léo Mittaraquis (*)
“Mesmo quando me tornei cineasta, no que diz respeito às imagens, continuei a aprender mais com as pinturas do que com os filmes”
Wim Wenders
O Leitura Crítica, neste sábado, ao invés de comentar um livro, comentará um filme. É, concordo, coisa fora da curva. Talvez possa fazê-lo como se, além de ver, tenha, logrado êxito em ler a fita.
O fato é que, ao término da história, nós, eu e a cúmplice de todas as horas, Iara Chagas Mittaraquis, nos mantivemos sentados, tomados de um sentimento, algo como a combinação do sutil êxtase com a pulsante felicidade.
Daqui em diante, aqui e alhures, incursões no plural. Há traços das impressões manifestas pela radiopatroa. Reconheço-lhe o crédito.
Mas, quem é Wim Wenders? Em plena segunda década do século vinte e um, esta pergunta se reveste de todo o sentido: poucos sabem responder.
Não que se tenha obrigação de conhecer sua trajetória. Este desconhecimento se aplica a outras áreas da atividade humana e, eu mesmo, fracassaria desgraçadamente, por exemplo, em relação ao futebol, caso aceitasse um desafio tipo “quem é quem”.
O desconhecimento, aqui, mais próximo ao esquecimento, tem a ver com minha geração. Sob nenhuma hipótese estou a esperar algo que preste, quanto ao assunto, da geração hodierna. Afinal, assisti, numa postagem no Instagram, a uma acéfala encantar seus acólitos afirmando que o filme de Wenders não tem enredo. Bem, quem tem boca fala e bebe o que quer…
Mas, como diria o monge Adso de Melk, “Retoma o fio, ó meu artigo, que este articulista senescente se demora demasiado nos marginalia” [é assim mesmo que se escreve].
E os velhos?
Nós, velhos, próximos à senilidade, nos esquecemos como somos esquecidos. Assistimos ao cinema alemão? Discutimos sobre ele? Sim, há mais de vinte anos, ainda o fizemos. Mas, é fato, começamos a fazê-lo ao final dos anos setenta e ao longo dos anos oitenta e noventa. E nesta última década da sequência, até a metade. O novo milênio se avizinhava, trazendo a superficialidade, a aceitação fingida, o receio frouxo de criticar e de ser criticado.
Então, abandonamos os botequins, as escadarias das catedrais, as praças mal iluminadas. Voltamos para casa, nos enfurnamos em nossas bibliotecas, nos abraçamos às nossas garrafas, sopramos, como nostálgicos vidreiros, o cristal das nossas bolhas. Eu, pelo menos, assumo que fiz isso mesmo.
Pois sim, oh, digressivo senhor… E seu Wenders?
A responder, então, sem incorrer num relato biográfico encorpado: Wim Wenders nasceu em 14 de agosto de 1945 em Düsseldorf. Depois de abandonar os estudos de medicina e filosofia, ingressou no mundo do cinema. A partir de 1968 e, se não estou enganado, até 1971, escreveu críticas de cinema.
Foi premiado por vários filmes. Entre estes cito “O Amigo Americano”, “Estado de Coisas” e “Asas do Desejo”. Chegou a ocupar a função de presidente do júri em alguns dos festivais de Cannes.
Quando foi questionado, numa entrevista, por Michael Hofmann, poeta, tradutor e crítico alemão, sobre os motivos que o levaram a fazer filme, disse que nunca soube como responder a contento a esta pergunta. Se tivesse que responder pela manhã, daria uma resposta. Caso fosse à noite, a resposta seria outra. Para Wenders, na condição de diretor e roteirista, o fazer filmes está entre a compulsão e o pressentimento de que é algo como o dever. Cumpre informar que Wenders, além de diretor de cinema, é artista plástico e fotógrafo.
Creio que basta para o leitor ter uma ideia do homem.
Voltemos, portanto, ao filme em torno do qual escrevi este artigo: “Dias Perfeitos”.
O cerne da narrativa é a vida cotidiana, quase perfeita, de Hirayama, interpretado pelo premiado e muito respeitado ator Kōji Yakusho.
Hirayama é funcionário do Tokyo Toilet, um projeto de renovação de banheiros públicos em Shibuya, Tóquio, que começou em 2018. Contou com a participação de arquitetos e designers, e criou, a partir das suas visões, banheiros públicos de estilos incomuns em dezessete locais da cidade.
Hirayama realiza meticulosa faxina nos banheiros e é o encarregado de orientar outro funcionário, Takashi [Tokio Emoto], que está sob suas ordens.
A rotina de Hirayama raramente muda de um dia para o outro, e ele parece contente, num bem-estar que beira à meditação, com a simplicidade de sua vida.
Poder-se-ia dizer que Wenders opera de forma magistral com o encanto do “agora”. O conceito tempo tem um valor especial para este diretor. Tudo tem de ter começo, meio e fim. Ou seja, oh, burralda metida a crítica de cinema, tem de ter enredo.
Mais de uma vez Wenders defendeu que a continuidade do movimento e da ação deve ser verdadeira, sem concessão a qualquer choque na sequência de momentos que são apresentados. O “eterno retorno” que compõe parte essencial da plástica de “Dias Perfeitos” firma bem isto.
Entretanto, não é um repetir pelo repetir. Cada dia, em que as mesmas coisas são realizadas em casa e no trabalho, revela matizes distintos. O amanhecer, o olhar iluminado do faxineiro ao mirar o céu pela manhã. Algo de diferente se revela, quase que imperceptível.
A luz que Hirayama traz nos olhos, todos os dias, em seus dias perfeitos, está sempre a brilhar com intensidade. O que nos levou a entender que ele está grato por estar vivo, por poder trabalhar, poder seguir cuidando da própria vida, falando muito pouco, procurando não incomodar ninguém, mas sem traços de egoísmo.
Mais de uma vez sua generosidade será requisitada na história, e Hirayama será solícito, ainda que, num caso específico, um tanto relutante.
Este é o “fato” elementar que esboça o campo geral onde os demais eventos e pessoas comporão, também, toda a trama.
Hirayama é o protagonista? Sim, mas aos outros personagens não foram dadas atuações menos proeminentes. E isto, por sinal, independe do tempo da presença de cada um deles na história. Nenhum pesa menos, nenhum ocupa mais espaço do que lhe cabe.
E esta condição [vale, claro, também, para Hirayama] é definida pelo que cada personagem é e faz no dia a dia.
Seu auxiliar no serviço de limpeza dos banheiros públicos é um inconsequente, apaixonado por uma garota que trabalha em casa noturna. Esta, por sua vez, é melancólica e desconfiada. Contudo, o diálogo entre ela e Hirayama, quando decide devolver ao faxineiro uma fita cassete que Takashi, o auxiliar, roubou para ela, é tocante, breve e descomplicado. Contra tudo com o que a julgamos pela aparência, até então, a personagem é movida pela sensibilidade moral para a qual o “jeito de ser” de Hirayama a desperta.
A chegada repentina da sobrinha de Hirayama é uma solução roteirística de mestre [Wenders e Takashi demonstram saber bem como conduzir os acontecimentos] para que algo do passado de Hirayama seja apontado, porém, não necessariamente revelado.
É o que basta para entendermos o motivo do tempo presente ser tão importante para ele. Hirayama. Observamos que o personagem é rígido quanto aos seus princípios de rotina. Ele responde a um determinado passado, e dele se protege. E o faz com elegância e dignidade.
Hirayama é faxineiro de banheiros públicos. Possui o próprio equipamento de limpeza. Vale-se mesmo de pequenos espelhos com cabo e de lupas para verificar pontos quase invisíveis de sujeira.
Seu trabalho o mantém, mas, não o define. Como ficamos sabendo disso? Após o expediente, janta num restaurante do qual se tornou ‘habitué’, e onde os atendentes o têm como alguém especial. Ao chegar em casa, sempre lê durante um tempo antes de dormir. Sua leitura? “Palmeiras Selvagens”, de William Faulkner, por exemplo. Duvido que a esta obra [e as demais presentes no filme] tenha sido inserida na história de forma aleatória. A assinatura, em termos de argumento, do escritor americano, nesta obra [inclua-se “Santuário”, também] é a busca sofrida que seus personagens empreendem por algo que entendem ou aceitam como liberdade. Eles estão sempre em movimento, seus dias são trepidantes, seja no bom ou no mau sentido. Costuma prevalecer o mau. Há fugas no romance. E, de Hirayama, saberemos, após metade do filme, que ele também está a fugir.
O outro fator de caracterização do personagem é a referência da qual criei o título deste artigo: fala ou diz tão somente o necessário.
Sua fala mais longa e um tantinho alterada acontece quando Takashi se demite e ele, por causa disso, terá de fazer jornada dupla neste dia até altas horas da noite. Ao telefonar para a empresa, é firme em exigir que consigam um substituto o mais rápido possível.
Por ser o personagem que opta por manter-se calado a maior parte do tempo, Hirayama sabe se comunicar com os olhos e expressões faciais. Há outros dois coadjuvantes que não dizem uma palavra sequer. Entretanto, o dedicado faxineiro e apaixonado leitor os compreende e estabelece tênues fios de ligação com eles.
Estes dois personagens se encontram sempre no parque, onde Hirayama costuma almoçar. E o faz debaixo de uma árvore da qual produz, todos os dias, uma fotografia. Talvez a tentar captar o perene e o mutável em simultâneo.
A título de curiosidade, o nome Hirayama significa “montanha pacífica”. Estaria a forçar a barra, se disser que o personagem lembra mesmo uma montanha? Sólido em sua constituição, na sua firmeza de conduta e em manter-se, na maior parte do tempo possível, em silêncio?
Quem sabe? O certo é que, repito, Wenders não é de deixar as coisas soltas, ao acaso.
Os poucos conhecedores do cinema, da estética, do discurso de Wim Wenders, como roteirista e diretor, muito provavelmente dirão que é recomendável não esquecer de que, em produções cinematográficas passadas, e mais de uma vez, o diretor alemão adotou, como tema, jornadas sem rumo empreendidas por pessoas perplexas, sem esperanças. Concordarei com a observação. E, na verdade, a tomarei em contraponto ao filme recente de Wenders.
É certo que as observações especuladas acima aplicam-se a “O Amigo Americano”, a “Estado de Coisas”, por exemplo, e, com toda a certeza, a “Paris, Texas” – um filme em que o personagem principal sofre, mesmo, um abalo sísmico espiritual. Travis é um homem bipartido.
Já Hirayama é o espírito coeso e operante. Sabe o que quer, o que esperar e do que abriu mão.
Portanto, “Dias Perfeitos” vai em direção oposta. Muito provavelmente, para além do gênio do diretor, pelo fato de que, de início, não era para ser um longa de ficção. Seria um documentário de 45 minutos.
O verniz ficcional está ali, na produção. Mas a perspectiva cinematográfica de Wenders, até onde sei, jamais faria do tema algo esdrúxulo, ao mero capricho da estilização. Wenders respeita o expectador. Evita o excesso de estilo em detrimento da clareza.
Eis, então, nossas modestas impressões.
Comentar, descrever, implica em enfatizar alguns aspectos e sonegar outros. Temos consciência disso.
Nossa percepção, minha e de Iara, deste belíssimo filme, se manifestará insuficiente, ainda que fascinada, para valorizá-lo com justiça.
The End…
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