A carga de trabalho de Laura no TJ aumentou, pois ficou com uma quantidade de processos superior à determinação em resolução do próprio tribunal. Com isso ela “ganhou” uma hérnia de disco cervical, se submeteu a várias perícias e via seu estado de saúde ser posto em xeque. “Que fase horrível, meu Deus! Não gosto nem de me lembrar…”
A negação do presidente do TJ foi apenas um dos perrengues que Laura Cecília enfrentou. Ela sofreu com o racismo desde os bancos escolares, na faculdade, no trabalho e tem consciência de que isso continuará a existir. “O racismo, enquanto garantir poder e privilégio aos não pretos, será praticado e perpetuado. Ele existe e persiste porque pessoas crescem em cima de sua prática, garantem espaços e manutenção de benesses”.
Como os verbos esmorecer, desistir não estão inclusos na gramática da vida dela, Laura Cecília está pronta para o desafio que vier, pois garante que está resiliente e mais fortalecida. E dentro desse contexto, ela “defende a união das pessoas negras e, principalmente, que lutemos pelo nosso espaço, não por igualdade de direitos. Não devemos querer ser iguais aos brancos nem ter o que eles têm. Devemos, sim, buscar meios de conquistar o nosso lugar no mundo, aquele a que todos têm direito pelo simples fato de existir”.
Laura, como única negra sergipana Doutora em Direito e Direito Animal, segue servindo de exemplo, não só para as suas irmãs mas também para outras mulheres negras. Uma mestranda em Ciências Sociais e graduanda em Direito, gravou um vídeo lhe elogiando e isso a comoveu bastante. “E é isso que me faz entender que, sim, eu tenho uma missão: mostrar a outras mulheres, notadamente pretas, que elas podem!”No mês em que se comemora o Dia Internacional da Mulher, a Doutora em Direito, Laura Cecília Braz, uma referência de luta e perseverança, conversou com o Só Sergipe sobre sua vida acadêmica, os percalços que enfrentou e continua enfrentando, mas deixa como exemplo a sua capacidade de não se dobrar às dificuldades. Uma delas é quando chega numa loja e a pessoa não a reconhece como cliente como ela, mas como funcionária. “É incrível como isso é persistente atualmente”, diz.
Laura tem uma resposta para lá de animada e que mostra sua elevada autoestima, quando se depara com aquela história de uma pessoa dizer que a achou parecida com alguém do seu conhecimento. “Ah, eu corto logo e digo: “Seja lá quem for essa pessoa, ela não se parece comigo, pois sou unicamente linda.”
Com vocês… Laura Cecília.
SÓ SERGIPE – Você foi a primeira sergipana negra a concluir o doutorado em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Há quanto tempo você é doutora e como foi sua trajetória até chegar a este ponto?
LAURA CECÍLIA BRAZ – Eu concluí o doutorado em 20 de dezembro de 2021, então sou doutora há 01 ano e 02 meses. O caminho percorrido até aqui foi marcado por muita abdicação, notadamente da minha vida social e amorosa, mas, acima de tudo, de muito querer, muita vontade de conquistar meu sonho de ser Doutora em Direito e poder estar em sala de aula robustamente preparada, ou seja, de ser professora, não estar, como muitos dos professores que passaram por minha vida acadêmica.
Como Sergipe não contava, até então, com um curso de Doutorado em Direito, submeti-me, antes mesmo de defender a minha dissertação de Mestrado, à seleção de doutorado da Universidade Federal da Bahia (UFBA), instituição que conta com um Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) e, para a minha felicidade maior, com Linha de Pesquisa em Direito Animal, minha área de concentração.
Entre a conclusão do curso de Direito e a entrada no Mestrado, passaram-se 08 anos, e, nesse tempo, o sonho de fazer mestrado era muito distante. Eu, então, advoguei, ministrei aulas de Português em um projeto voluntário na Piabeta, estudei para alguns concursos públicos e, nesse ínterim, acabei sendo aprovada e tomando posse no Tribunal de Justiça de Sergipe, indo morar em Poço Redondo, um período muito desafiador, doloroso, mas, acima de tudo, importante para seguir-me inquieta e consciente de que ser apenas servidora pública, ainda mais de nível médio, era algo incompatível com as minhas capacidades e anseios.
SÓ SERGIPE – E onde essa inquietação a levou?
LAURA CECÍLIA BRAZ – Sou muita analítica, do campo das ideias, argumentativa, logo não lido bem com a burocracia e a monotonia rotineira, o que é muito peculiar à função de técnico judiciário. Importante destacar que, enquanto doutoranda, não tinha ciência de que o título de Doutora em Direito também me representaria o pioneirismo no mundo jurídico feminino negro sergipano.
Foi na banca de qualificação o momento em que disso tomei ciência, o que me foi informado, inclusive, não como uma bela missão, mas, sim, como um peso, notadamente porque a concretização se daria em um PPGD de alta qualificação e com a linha de pesquisa em direito animal com reconhecimento e extensão internacionais.
E, aqui, é relevante dizer que só havia membros do gênero masculino em minha banca, típico da academia jurídica, massiva e predominantemente masculina, hétera e branca. Eu, então, discrepava de tudo isso. Ainda havia outro fator: sergipana, ou seja, em “terras estrangeiras”, e onde, do meu lugar de fala católica, pesquisei temática própria do povo negro baiano: as religiões de matriz africana e o uso de animais em suas cerimônias. Trabalhar esse tema, morar em Salvador levaram-me a buscar mergulhar em minhas ancestralidades, questionar padrões, realidades que me afetavam, e afetam, diretamente, ante o fato de eu ser uma mulher preta. Desde então, nunca mais fui a mesma, vendo-me, cada vez mais, imersa nas pautas que me envolvem não só enquanto mulher preta, mas, especialmente, uma mulher preta intelectualizada.
E, por a minha titulação acadêmica constituir um feito histórico, vivo um permanente conflito: o de ser exemplo a tantas outras mulheres, especialmente pretas, mas também uma certa resistência e não aceitação por parte de algumas pessoas, estando entre estas, para a minha decepção, mulheres. Diante do que, facilmente é de concluir que os meus desafios não cessaram com a titulação de Doutora em Direito. Na verdade, alguns começaram e outros intensificaram-se. Porém, como esmorecer, desistir são verbos não inclusos na gramática da minha vida, pode vir o desafio que for, resiliente e mais fortalecida seguirei.
SÓ SERGIPE – Qual foi a sua tese de doutorado e por quê?
LAURA CECÍLIA BRAZ – Como falei anteriormente, o tema que trabalhei foi o uso de animais nos rituais religiosos de matriz africana, pauta que fora apreciada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e que se qualifica como o mais espinhoso em termos de problemática envolvendo a causa animal, justamente por conflitar com outra temática muito cara, que é a luta do povo de santo, leia-se: religião de origem africana, “religião de preto”, religião alvo constante de racismo.
Então, meu objeto de pesquisa fora justamente o julgamento do Recurso Extraordinário n 494607, oriundo do estado do Rio Grande do Sul, em que os ministros do STF tiveram que analisar a constitucionalidade da lei gaúcha que excepcionou, às religiões de origem africana, a necessidade de aplicação de métodos modernos de insensibilização prévia à sangria de animais, e, por maioria, declararam-na constitucional, com o fim de resguardar a liberdade religiosa.
Referido resultado fora recepcionado pela comunidade de candomblecistas e umbandistas como vitória, enquanto que, pelos ativistas da causa animal e parcela massiva dos jusanimalistas, fora considerado uma derrota, e uma relevante derrota, dado o sucesso alcançado em causas anteriores julgadas pelo Supremo, a exemplo da farra do boi, rinha de galo e vaquejada.
Perceba que falei não ter sido o resultado do julgamento recepcionado como derrota por todo o movimento em prol dos direitos dos animais, mas, sim, pela maior parte dele. Afirmo isso porque eu, integrante desse movimento, pesquisadora, jurista, concluí a minha tese com o entendimento de que outra não poderia ser a decisão do STF, haja vista que, enquanto pessoas perderem a vida pelo simples fato de professarem uma fé, possuírem um tipo de coloração epidérmica, desafiador sempre constituir-se-á a defesa da vida animal não humana.
Destaco que a complexidade em torno do assunto é tão acentuada que, para mim, mulher preta, católica, sergipana, consistiu, sem dúvida, no maior desafio enfrentado até então, a ponto de ser questionada pelo meu orientador se não queria trabalhar outro assunto e, por um tempo, acabar aderindo a isso mesmo. E não foi relevantemente desafiador não apenas pela natureza do objeto estudado, mas, especialmente, por exigir de mim realizar pesquisa de campo, ou seja, visitar terreiros e conversar com pais e mães de santo, uns mais conservadores, outros com uma postura de abertura a mudanças, oportunidade em que entrei em contato com a fé de um povo extremamente devoto, obediente ao arcabouço litúrgico, professadores assíduos daquela fé.
Pude, inclusive, ver como os candomblecistas respeitam os animais, têm neles verdadeiras preciosidades a cuja vida fazem jus às suas entidades, de modo que a morte do animal não se dá de modo aleatório, pelo contrário, há todo um processo ritualístico que deve ser obedecido para a realização do ato.
Então, a minha trajetória no doutorado foi de uma verdadeira explosão de amadurecimento, ante o fato de eu ser uma animalista, agora mais do que nunca, consciente de que, assim como há pessoas lutando pela manutenção e respeito à vida dos animais, há tantas outras frentes que objetivam a conquista de direitos e o respeito aos já conquistados, porém o aspecto em que mais eclodi, não tenha dúvida, foi o da consciência, ainda mais forte (e dolorosa) sobre o que é ser negro no Brasil, o que é ser mulher preta em uma sociedade que ensina seus filhos a não amar esta, mas a, tão somente, dispensar-lhe um tratamento de objeto sexual, o que determina a solidão sentimental da maior parte de nós.
Após participar de cursos Panafricanismo e de tantas outras atividades que me arrancaram vendas e me permitiram enxergar a vida como ela realmente é, pesquisar o objeto de estudo aqui descrito seguiu a ser um grande desafio, contudo não mais para a Laura Cecília Braz pesquisadora, estudiosa, doutoranda apenas (postura exigida do pesquisador), mas também para a Laura Cecília Braz que, antes de tudo, é um ser.
SÓ SERGIPE – Parece-me, também, que você é a única pessoa em Sergipe com doutorado em Direito Animal. Poderia explicar por favor?
LAURA CECÍLIA BRAZ – Sim, até o momento, sou a única, dada a área de concentração em que se insere o meu objeto de estudo no doutorado, qual seja, Direito Animal. Em Sergipe, ainda nem temos a disciplina Direito Animal como obrigatória a integrar a grade curricular dos cursos de direito da Universidade Federal de Sergipe e da rede privada de ensino superior, sendo essa uma luta minha.
Sim, lutarei pela inserção dela, ainda que, incipientemente, seja como optativa, pois defendo fervorosamente a ideia de que só a Educação é capaz de mudar o olhar do homem sobre a vida dos animais não humanos, com vistas a respeitar e lutar, cada vez mais, pela manutenção dela, o que nos colocará na posição de habitantes de um mundo menos antropocêntrico e, por conseguinte, mais biocêntrico, ou seja, valorizador da vida em todas as suas formas, e não apenas humana.
A propósito, em breve, o Brasil contará com o volume “Direito Animal em Miúdos” a integrar a “Coleção em Miúdos”, do Senado Federal, cujo objetivo é proporcionar a educação legislativa do público infanto-juvenil.
SÓ SERGIPE – Lendo o seu currículo, chama a atenção a sua defesa na causa animal, de protegê-lo. Como nasceu esse sentimento? Na infância ou na academia?
LAURA CECÍLIA BRAZ – O amor aos animais nasceu desde a minha mais tenra idade, pois foi algo ensinado por meus pais, e a convivência com eles perfaz-se até hoje. Porém, a defesa de direitos para os animais surgiu no mestrado, por intermédio do meu orientador, que é um dos meus expoentes na seara animalista. O gosto por pesquisar dentro da linha de pesquisa Novos Direitos levou-me a interessar-me, cada vez mais, pelas mais variadas problemáticas em torno da causa animal. Sinto-me feliz em poder, através dos estudos, contribuir para a mudança do status dos animais não humanos em nosso país e, de um modo muito especial, integrar o movimento jusanimalista brasileiro.
SÓ SERGIPE – Quais os acontecimentos que mais lhe marcaram na sua trajetória de vida até chegar ao doutorado, sejam eles bons ou não?
LAURA CECÍLIA BRAZ – Em 2016, caminhando para o fim do mestrado, perdi minha tia mais amada e, logo depois, o meu amado pai, ou seja, eles não me viram Mestra e, muito menos, Doutora, mais uma razão determinante para o nada fácil caminho até então trilhado. Já aprovada na seleção do doutorado, o primeiro desafio foi pleitear licença remunerada para cursar o doutorado e ter, mesmo falando pessoalmente com o Presidente do TJSE da época, por este negado o pedido, quando qualquer magistrado que a solicita obtém.
Senti-me golpeada por quem deveria me apoiar, não enquanto presidente, mas integrante da Corte estadual, afinal meu doutorado era em Direito. Com isso, fui para o teletrabalho e, neste, padeci. Além da carga massiva de trabalho braçal, sendo que fiquei com quantidade de processos superior ao determinado em resolução do próprio tribunal, o que me levou, inclusive, a desenvolver hérnia de disco cervical, e, claro, a conviver com a dor física, que, mais tarde, frustrou-me o exercício da função, sendo eu obrigada a sair de Salvador e vir a Aracaju passar por mil e uma perícias, onde sempre o meu estado de saúde era posto em xeque pela junta médica, mesmo estando munida de mil e um resultados de exames e atestados médicos. Que fase horrível, meu Deus! Não gosto nem de me lembrar…
Durante o doutorado, enfrentei diversos desafios, para além dos complexos e inerentes ao processo acadêmico, haja vista que, para começo, precisei mudar-me para Salvador, cidade onde não tenho parentes nem, ao tempo, amigos. E, como todo sergipano, sou desconfiada, então também tive que aprender a confiar em pessoas que, por serem de outro “solo”, eram-me estranhas. Precisei adaptar-me aos costumes e modo de viver soteropolitano, caso contrário a conclusão do curso seria ainda mais desafiadora.
SÓ SERGIPE – Excetuando os seus saberes na academia, o que a vida lhe ensinou, que você guarda para sempre e a fez melhorar como ser humano?
LAURA CECÍLIA BRAZ – A vida ensinou-me muitas coisas, mas a consciência sobre os aprendizados adquiridos até aqui só me chegou recentemente, com toda essa explosão de significados e significações sobre mim mesma que se deu após mergulhos densos em estudos sobre ancestralidades, história do tráfico e exploração de pessoas negras escravizadas, o que me levou, inclusive, a buscar saber mais sobre meus ascendentes, especialmente meus avós. Com a bagagem recheada dessa lucidez, fui-me entendendo melhor e tomando consciência sobre toda a minha infância, adolescência e, hoje, adulta e profissional.
A minha mãe, muito sábia, historiadora, amante da leitura, educou suas filhas para enxergarem o mundo como ele realmente é, ou seja, crescemos conscientes de que éramos meninas negras, e as batalhas contra o racismo fizeram-se muito cedo em nossas vidas: na escola, no condomínio em que morávamos… mas, bem antes disso, perante os nossos primos brancos. Dizemos que a nossa mãe nos criou como se inveja não existisse, porém a vida encarregou-se de ensinar-nos, e lidamos com ela sempre, haja vista que Deus e os nossos pais nos fizeram para brilharmos, ocuparmos o nosso espaço e, antes de tudo, sermos livres, e isso incomoda muita gente, não só pessoas brancas.
No ambiente de trabalho, é o principal lugar de nascimento e imperiosidade da inveja, sendo que, para a nossa tristeza, ela, geralmente, parte de outra mulher. É incrível como há pessoas negras/não brancas que não gostam de ver que sabemos nos impor, entrar e sair de qualquer lugar e, para a raiva de muitas delas, nós buscarmos ter uma vida com propósito, significativa e, claro, feliz. E, neste ponto, faz-se relevante e necessário destacar o papel da religião em nosso firmamento.
Somos de uma família, e de ambas as partes, muito católica, mas não dessas que só se declaram pertencentes à religião. Crescemos a assistir aos nossos tios, pais, avó efusivamente praticantes do catolicismo, logo também acabamos por percorrer o mesmo caminho, o que nos garantiu uma base sólida de crença no amor de Deus por nós, na certeza de que Ele nos ama exatamente como somos e nos fez para sermos felizes. Se somos vítimas do racismo, isso é obra cuja autoria pertence unicamente à ignorância e à fome de poder do homem, e não porque Deus assim determinou ou permite.
E o interessante é que, mesmo tendo uma batalha a enfrentar desde tão meninas, qual seja, aprender a defender-nos dos ataques racistas, quando as crianças não pretas só tinham o dever de estudar e o direito de brincar, nós fizemo-nos, sim, mulheres fortes e resilientes, mas, não tenha dúvida, a dor da rejeição acompanha-nos, porém nunca nos impediu de sermos alegres, risonhas, amigas (de pessoas brancas, em sua maioria, inclusive, dado o esforço dos nossos pais em garantir-nos escolas particulares).
Pelo contrário, isso foi fundamental para minhas irmãs e eu sermos muito unidas, amigas, defensoras umas das outras. Então, se há algo que eu sou, enquanto ser humano, é humana. Porém, hoje, estou em uma fase de intensos mergulhos em mim mesma, autorreflexões e autoentendimentos, o que tem me proporcionado compreender a razão de minha trajetória em nada se assemelhar com a das minhas amigas brancas, principalmente no quesito amoroso e profissional.
Passei pela idade escolar e pela faculdade sem ter as experiências típicas dessas fases, porque, hoje eu sei, como não era vista por meus colegas como uma moça para namorar, para apresentar à família, só servia para ser a amigona, a “brother”, a amiga confidente, a que emprestava o caderno com 100% de anotações sobre os conteúdos das disciplinas, a que escrevia bem e tinha a letra bonita, a estudiosa, como também a briguenta, a que não se conformava com o errado ou injusto e ia atrás de solução, a exemplo de uma nota me atribuída em desconformidade com as minhas respostas na prova. E, mesmo me achando bonita, linda, simpática, não lhes servia para ser amada.
Até bem pouco tempo, eu não sabia sobre a existência de estudos desse fenômeno, que atinge todas as mulheres pretas do país, a chamada “Solidão da Mulher Preta”. Eu só sentia, vivia e sigo a viver, pois, em um país como o Brasil, ser mulher preta e intelectualizada é ser dupla e amorosamente rejeitada. Então, ainda que em processo de busca de autocura, autoamor, se eu já tinha em mim um desejo forte de ajudar outras pessoas, o que também herdei dos meus pais, agora, por grande missão, tenho de ajudar a outras mulheres pretas encontrarem, em si mesmas, o amor e, mesmo que sejamos vítimas do desamor, não permitir que isso nos impeça de amar outras pessoas, e indiscriminadamente, pois uma coisa é certa: não se combate o ódio com ódio, mas, sim, com amor.
Então, se há algo que a vida muito me ensinou foi a amar, e, dessa forma, eu quero seguir, quero continuar, mesmo em momentos e situações em que não seja amada, afinal eis aí um problema que pertence ao outro, não a mim. Que ele encontre a sua autocura e seja feliz.
SÓ SERGIPE – Li uma entrevista sua na qual disse que “quando uma mulher se movimenta, toda multidão de várias outras se movimenta junto com ela”. Você sentiu ou sente isso, literalmente?
LAURA CECÍLIA BRAZ – Sim, sem dúvida. Essa frase é de Ângela Davis, filósofa norte-americana que estimulou o feminismo negro, e faz todo sentido quanto ao impacto da minha conquista na vida de outras mulheres negras. Elas fazem questão, quando me encontram nas redes sociais, ou pessoalmente, de falar comigo, de enaltecer a importância da minha existência e história para elas. Acredito que mulheres negras precisam ser unidas, porém, infelizmente, há algumas que, ante movimentos que integram, acabam repudiando as que não fazem da própria vida bandeira da negritude. Vejo isso com muita tristeza, pois, se a branquitude já goza de tantos privilégios, como fica nossa luta pelo nosso lugar na sociedade, nos espaços de poder e cargos de autoridade? A união é a única solução para que dias melhores vivamos.
SÓ SERGIPE – Você ainda é vítima de racismo?
LAURA CECÍLIA BRAZ – Sou e sei que seguirei a ser, pois o racismo, enquanto garantir poder e privilégio aos não pretos, será praticado e perpetuado. Ele existe e persiste porque pessoas crescem em cima de sua prática, garantem espaços e manutenção de benesses. Sigo a ser preterida no direito de ser amada por um ser do sexo oposto pelo que sou, tendo ainda isso potencializado pelo fato de não fazer o tipo submissa, ensinado pelo machismo aos homens e mulheres que se trata da melhor “categoria” de mulher para com quem se relacionar, casar-se.
Na seara profissional, deparo-me, constantemente, com tentativas de apagamento e redução do que sou e represento, como também lido com o mau gosto de algumas pessoas pretas (em sua maioria, mulheres) por, hoje em especial, ser autora de um feito histórico, maior reflexo da minha mania de persistir, não desistir e, mesmo machucada, sangrando, seguir adiante. Ah, e com o sorriso no rosto, porque nossas dores não podemos estampar no rosto, não é mesmo? Até essa crueldade de não podermos nos mostrar vulneráveis nos é imposta.
Tenho duas irmãs e elas são mais velhas do que eu, porém, hoje, muito sou eu quem as ensino sobre como driblar o racismo, defender-se dele e, claro, lidar com as suas irreparáveis consequências. Um exemplo que lhe trago é o de como rebater uma pessoa que nos aborda em uma loja já pressupondo que estamos ali na condição de funcionária, nunca na condição de cliente como ela. É incrível como isso é persistente atualmente.
Quando não, é aquela história de dizer que nos acha parecidas com alguém de seu conhecimento. Ah, eu corto logo! “Seja lá quem for essa pessoa, ela não se parece comigo, pois sou unicamente linda”. E as abordagens sobre os nossos cabelos? E a mania de sentirem-se à vontade para dizer que devíamos fazer isso ou aquilo com eles? Sem contar a indecente perpetuação de vocábulos e expressões racistas que insistem em manter em suas falas e, quando apontados como racistas por elas, soltam-nos um “Eu falei sem intenção”; “Eu não quis ofender”; “Foi só uma brincadeira”. Se ofende, é óbvio que não é brincadeira.
E o crime de injúria racial? Ele nem deveria existir, e sabemos por que foi inserido em nosso Código Penal, justamente para, com o apoio da classe de delegados de polícia, que nunca tipificam a ação criminosa como racismo, dada a sua imprescritibilidade e inafiançabilidade, atos racistas serem tratados de forma suave, não com o rigor que um verdadeiro Estado de Direito o deve combater. Tem mais, quando uma pessoa preta é ofendida, xingada, incriminada, desmerecida, humilhada em razão da cor da sua pele, as consequências desse ato nunca se restringe unicamente a ela; ele tem o condão de ofender toda uma comunidade de pessoas negras.
Além disso, é importante exercer a intolerância de comportamentos racistas quando parte de um adulto ou idoso, afinal o conhecimento sempre esteve aí para todos e, nos últimos tempos, o exponencial número de intelectuais pretos que escrevem sobre práticas antirracistas, sobre a verdadeira história do negro, desconstruindo os míseros 35% sobre a linha do tempo dos povos negros que nos é ensinado na escola, e, dessa percentagem, ainda é preciso extrair o que, de fato, condiz com a realidade, pois, como bem sabemos, a história é contada por brancos, sempre na condição de heróis, descobridores, desbravadores, quando, na verdade, só por isso que são considerados, e por eles mesmos, como superiores. Enfim, essa pauta sempre abre espaço para infinitos debates, então quem sabe não sou chamada a falar de modo mais específico sobre ela, sim? Ficarei feliz em contribuir com a discussão.
SÓ SERGIPE – Como mudar essa triste realidade no país, em que as pessoas negras são discriminadas, não têm acesso à escola ou a um bom emprego?
LAURA CECÍLIA BRAZ – Como sempre falo, se um dia eu ingressar na vida política, saibam que lutarei, brava e primordialmente, pela obrigatoriedade do acompanhamento psicológico das crianças pretas, em redes de ensino particular e público, mas especialmente nesta, haja vista que a autoestima da pessoa preta tem que ser trabalhada desde a mais tenra idade. Isso repercutirá direta e positivamente na sua forma de se ver no mundo. Logo, essa criança crescerá com a consciência de que, ainda que insistam em a reduzir a nada ou ao que há de mais grotesco no mundo, ela é linda, inteligente, nascida para brilhar e ser feliz, haja vista que, infelizmente, isso é algo que poucos pretos aprendem e, quando aprendem, já é em idade adulta, ou seja, quando já se perfez todo um aniquilamento de vida regada a autoamor e autocuidado, aquela que garante a um ser ter orgulho de si mesmo.
E sabemos ser isso consequência e reflexo diretos da dureza e desumanidade que é lidar com o auto-ódio que o sistema impõe a nós, pessoas pretas. Somos ensinados a não gostar do tom da nossa pele, dos nossos cabelos, dos nossos traços; somos ensinados a repudiar e, até temer, tudo que provém da cultura, criação do negro, a exemplo das religiões de matriz africana, historicamente demonizadas (e, na atualidade, combatidas, veementemente, pela igreja evangélica neopentecostal); somos ensinados a não buscar as nossas origens, nossas ancestralidades. Imagina todos os negros brasileiros conscientes de que são herdeiros de verdadeiras realezas? Que somos princesas, príncipes, duques…? O que será dos não pretos, dos privilegiados, dos sugadores e exterminadores da vida humana preta? Eles devem enlouquecer só de pensar na mínima possibilidade de isso se tornar realidade.
Por isso, defendo a união das pessoas negras e, principalmente, que lutemos pelo nosso espaço, não por igualdade de direitos. Não devemos querer ser iguais aos brancos nem ter o que eles têm. Devemos, sim, buscar meios de conquistar o nosso lugar no mundo, aquele a que todos têm direito pelo simples fato de existir. E, quanto ao que devemos desejar para nós mesmos, que percorramos e ansiemos sempre pelo melhor, pois, acima de tudo merecemos, e esse melhor nunca que significará o que os brancos possuem ou do que gozam, afinal pode (e deve, por que não?) ser infinita e diferentemente melhor. Só a partir dessa ocupação desse espaço é que passaremos a não mais perdermos a vida à porta de um posto de saúde, por falta de atendimento humanitário; não teremos nossos filhos fora da escola ou mesmo seremos pais sem estudos; deixaremos de realizar funções próprios de quem possui baixa ou nenhuma escolaridade, de submetermo-nos a quaisquer condições de trabalho e exploração; colocaremos fim às estatísticas reveladoras de pessoas negras em condição de escravizadas (não análogas).
Diante disso, entendo que, enquanto negros não entenderem que precisamos eleger políticos negros e aliados à causa negra, não buscarem aprender, cada vez mais, sobre si mesmos, não trabalharem a autoestima, não se valerem da psicoterapia com profissionais negros e estudiosos da psique negra, toda essa mudança a que tanto ansiamos sempre se mostrará como algo distante a se conquistar. E, como não posso esperar pela mudança interna dos outros, estou a buscar a minha mesma, de modo a contribuir para a mudança do olhar do mundo sobre nós.
SÓ SERGIPE – Pode dar exemplos de mulheres que se inspiraram em você e mudaram de vida?
LAURA CECÍLIA BRAZ – Mesmo antes de ser Doutora, algumas mulheres já se declaravam minhas admiradoras, e, hoje, o que mais ouço dessas minhas fãs é que, quando pensam em desistir ou não se sentem capazes, elas lembram-se de mim, da minha força, persistência e alegria e, com isso, seguem a caminhada. Recentemente, fui alegremente surpreendida com um vídeo gravado por uma admiradora, já mestranda, mas em outra área, e estudante de Direito, em que afirma a relevância que tenho para ela, a fonte de inspiração que em mim encontra. Nossa! Sei nem expressar com palavras o que isso me representou, o boom de emoções que se perfez em meu peito. Só mesmo você vendo. ( Assista a esse vídeo no final da entrevista)
E é isso que me faz entender que, sim, eu tenho uma missão: mostrar a outras mulheres, notadamente pretas, que elas podem! E podem ser e fazer o que quiserem. Já tive receio de isso se tornar um fardo, porém, com todo esse acalanto a mim proporcionado, não vejo como, algum dia, todo esse lindo feedback revestir-se de negatividade.
SÓ SERGIPE – Quem são as outras mulheres com doutorado em Direito ou que estão cursando atualmente aqui em Sergipe? Você tem essa informação?
LAURA CECÍLIA BRAZ – Doutoras em Direito brancas há algumas tantas, a começar pelas que tive como docentes no Mestrado. Agora, negra, até o momento só eu, e não tenho notícias de que há alguma mulher negra sergipana a cursar doutorado em Direito atualmente.
SÓ SERGIPE – Você é escritora, poetisa, e também canta. Quais foram os livros que já escreveu ou organizou? Tem outro sendo preparado?
LAURA CECÍLIA BRAZ – Eu já organizei 3 obras coletivas jurídicas (Elas escrevem Edna: homenagem à pioneira do Direito Animal no Brasil; Direito Animal: novos rumos para uma nova década; Direito Ambiental: novos rumos para uma nova década; Direito Ambiental e Animal: novas perspectivas) e há outro no forninho, que há de sair em meados de junho, sendo que, em todas elas, tenho artigos, como também tenho artigos publicados em revistas jurídicas especializadas, obras e em anais de congressos jurídicos.
SÓ SERGIPE – E na poesia, há algum livro escrito? Como é sua trajetória na música?
LAURA CECÍLIA BRAZ – Tenho vários poemas publicado no Empório do Direito, como também em minhas redes sociais, e são justamente eles e outros já escritos que pretendo reunir e publicar um livro. No que se refere à música, digo-lhe que a minha relação com ela se deu quando ainda muito menina. E, como a maioria dos cantores, comecei a cantar na igreja. Fiz parte do coral do Salesiano, SESC; fiz aulas com a pianista e professora de canto Daniela Faber; fiz aula de piano. Hoje, sigo a cantar em missas e festas de amigo e parentes.