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Elevo a taça em nome do meu eterno amor pelo Ocidente

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Por Léo Mittaraquis (*)

 

“Mas Dioniso é um deus ‘civilizador’. O coro de suas fiéis Mênades da Lídia aprovara Tirésias, que colocou em paralelo Deméter e Dionísio: o deus é para o elemento líquido, para a bebida, o que a deusa é para o sólido e para o mastigável. Uma inventando trigo e pão, outro inventando a vinha e o vinho, ambos introduziram nos homens aquilo que os fez passar da vida selvagem à vida cultivada”

Jean-Pierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet, “Mito e Tragédia na Grécia Antiga”

 

Devo este palimpsesto a um chato de galochas (na verdade, não portava galochas), criatura asquerosa que danou a incomodar a mim e a outros numa quase madrugada chuvosa e fria.

Esclareço: certa vez, no transcorrer duma conversa informal, entre almas cultas, regada a vinhos, quando a alta noite estava a se ir, fui interpelado quanto ao real papel do vinho na formação e na consolidação da cultura ocidental, fenômeno ao qual dedico constante defesa e do qual busco levar a efeito ampla divulgação.

O questionamento deu-se ao modo longe de ser gratuito. Notadamente, o autor do mesmo desejava o confronto. Ambicionava vencer a mim mediante o que ele imaginava estabelecer: um desafio.

Quanto a isto, pouco me incomodou, acostumado que estava e estou ter a cabeça a prêmio.

Em mais de um momento, o tal convidado (para nunca mais outra vez), revelou seu perfil grosseiro, até então devidamente oculto, disfarçado, ao não conseguir participar, por falta de fundamento, de forma plena, do simpósio: interrompia, gesticulava como alguém sob efeito de beberagem alucinógena; emitia ruídos guturais; “retificava”, sem devida autoridade, a alguém que, de maneira judiciosa,  emitia seu veredito em relação a este ou aquele ponto em discussão.

Antigo recipiente grego para beber vinho

Motivo? Bem, de imediato a disputa pela disputa. Mas havia, também, a discordância quanto ao meu entendimento de que uma “simples” bebida pudesse exercer tanta influência na formação cultural de diferentes povos.

“Simples”, no sentido de reles, ficou, sempre, por conta daquele ressentido com QI de uma ostra (talvez esteja eu, agora, a ser injusto com a ostra), aquele que não conseguia perceber que, salvo fermentações espontâneas, fruto do acaso e de baixa complexidade, o vinho, como outras bebidas, neste aspecto, era e é uma produção humana controlada.

O homem produz vinho, “formata” o vinho, armazena o vinho, transforma o vinho, comercializa o vinho e consome o vinho. Eis o que eu repetia, insistentemente, na vã tentativa de acalmar o cabra inconveniente que tão somente deitava chungarias.

Por fim, pessoas gentis, presentes no laico evento, intervieram de forma hábil, fazendo com que eu dissertasse sobre o tema, dando, quiçá, a impressão ao inoportuno de que ele alcançara êxito no seu abestado intento.

Toda esta agrura serviu para algo até que positivo: de fato, havia, por perto, mentes tranquilas interessadas em levar adiante o tema. Incentivaram, mesmo, que eu, quando com disposição para tal, escrevesse um artigo a partir do ocorrido, preservando, por força dos riscos jurídicos, os personagens, mantendo o respectivo anonimato.

Pois bem, amigos, eis-me a discorrer sobre as circunstâncias.

Respondi: sim, a cultura vitivinícola não é prerrogativa do Ocidente, mas, no meu caso, ocidental fundamentalista que sou (eis outro motivo para as provocações nas madrugadas assestadas a mim, em especial), é a tradição vitivinícola greco-romana que me interessa, que me fascina, a qual devo minha existência. Pois não há história grega, romana, europeia, (incluindo, ironicamente, alguns países do leste), ocidental, em seus aspectos culturais e geopolíticos, sem a presença do vinho.

Ao momirrato, ao chupim desmemoriado, como diriam os irmãos Campos, Pignatari e Cia, no seu Plano Piloto Para a Poesia Concreta, expliquei que o berço mediterrânico da nossa cultura e civilização ocidentais se desenvolveram, numa perspectiva histórica, muito rapidamente e que uma das muitas manifestações quotidianas deste avanço foi a produção e o consumo de vinho.

Ânfora utilizada para armazenar vinho

“Afaste suas preocupações com o vinho” — lembrei, sei lá como, do sábio aconselhamento expressado por um dos maiores poetas romanos, ou seja, Horácio.

E se, com boa vontade, o obtuso compreendesse os motivos registrados mediante as artes visuais, perceberia as evidências retratadas e eternizadas nos antigos mosaicos de cenas de festas dionisíacas e foliões segurando algo um pouquinho semelhante a taças de vinho.

Uma das referências fundamentais que caracterizam os processos civilizatório é o método investido nas atividades exercidas pela comunidade. No caso do vinho, destacava-se a seguinte técnica: a preciosa bebida era armazenada em ânforas de terracota. Esta, por sua vez, eram protegidas não só com cortiça, mas muitas vezes também com alcatrão ou resina.

Segundo estudiosos, no momento em que o vinho deveria ser servido, utilizava-se peneiras para evitar que a borra sedimentada fosse parar no recepiente no qual se bebia.

A quantidade selecionada para ser bebida normalmente continha, no mínimo, um terço de água. Contudo, muitas vezes essa quantidade era muito maior: a proporção podia chegar a quatro partes de água para uma parte de vinho.

Além disso, é sabido que a água também era acrescentada com o intuito de esconder certas imperfeições do vinho. Ah, também as especiarias eram frequentemente adicionadas à mistura.

Ok, eu venci: “batatas fritas”, já diria a banda Blitz.

O vinho é, indubitavelmente, inerente à invenção do Ocidente. Foi e ainda é necessário à nossa cultura, principalmente na percepção daqueles e daquelas que creem no cultivo do bom gosto, da fruição do melhor que o espírito estético pode oferecer. E que a tudo isso se dedicam, se entregam, ainda que mantenham, pari passu, o cultivo da Razão.

Beber bem, entendam, também faz parte da Beleza.

Santé🍷🍷

 

 

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Leo Mittaraquis

Léo Mittaraquis é graduado em Filosofia, crítico literário, mestre em Educação. Mantém o Projeto "Se Comes, Tu Bebes". Instagram: @leo.mittaraquis

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