Por Léo Mittaraquis (*)
“Canetti admirava clareza e precisão, bem como o poder imaginativo em escrever, mas detestava a pretensão e a autoestima excessiva dos escritores. Somente uma boa escrita é capaz de dar vida ao significado moral e cultural da atividade intelectual”
Hans Reis
Meu Projeto Leitura Crítica, vale dizer, minha formação, o lastro, que autoriza a me posicionar como crítico literário, deve por demais ao pensamento canettiano. Sua percepção do fenômeno literatura, a relação osmótica deste com os fenômenos ideologia e movimento político-cultural, bem como com as teorias sobre os processos mentais, foram e são fios de prumo pelo qual busco fundar e erigir a metodologia que representa minha visão de mundo movida em torno de dois eixos estruturais do âmbito literário: 1) a tentativa [pelo menos] de compreender a maneira e o motivo pelos quais os acontecimentos se encadeiam, o que implica lidar com os elementos de natureza efetiva; 2) a mínima ordenação possível de valores sob concepções de natureza intuitiva.O leitor já deve ter percebido que o parágrafo supra é, também, um manifesto sincero de gratidão.
Por falar em ordenação, cumpre dizer que a arbitrária seleção do título que dispus neste artigo traz algo de desordenado: O Jogo dos Olhos é o terceiro livro de uma trilogia. O motivo pelo qual me decidi a comentá-lo antes dos predecessores deve-se aos aportes que ele oferece aos procedimentos dos quais me valho ao exercer a crítica literária.
Elias Canetti preferia escrever ao longo da noite. Segundo ele, escrever sob os olhos de Nyx, lhe dava a certeza de que estava, de fato, a produzir o discurso de maior responsabilidade. Enquanto o mundo dorme, ele trabalha. Não entendia, que fique claro, sua decisão como algo único. Sabia de outras atividades noturnas. Tinha-as como referência.
Em tempo, não reproduzirei muitos dados da sua biografia. Sobre tal o Google oferece informação à mancheia. Este artigo, esta leitura crítica, bastar-se-á à minha apreensão [e é o que se apresenta como significante à minha proposta exegética], vale dizer, meu modo pessoal de abarcar, com profundidade [não obstante sintética], a produção ensaística, filosófica e literária canettiana.
Não alongar-me-ei em sua biografia, está decido. Contudo, creio que não fará mal incluir, aqui, uma curta apresentação.
O escritor búlgaro Elias Canetti foi, na minha opinião, a atenta testemunha e sério analista do fenômeno denominado “movimento de massa” e, também, de outros terríveis eventos que marcaram, de forma dolorosa e indelével a primeira metade do século XX.
Suas referências, para tanto, diretas e pessoais. Canetti era judeu sefardita, isto é, descendente dos judeus que viveram em Espanha e Portugal desde pelo menos os últimos séculos do Império Romano, até a sua perseguição e expulsão em massa desses países nas últimas décadas do século XV.
Cresceu ouvindo e falando o idioma búlgaro. Entretanto, quando ingressa no mundo das Letras, escolhe escrever em alemão.
Em 1981, recebeu o Prêmio Nobel de Literatura pelo conjunto de sua obra. Esta por demais extensa e profunda, inclui dramas, ensaios, diários, aforismos, um romance “Auto-de-Fé” e o longo tratado interdisciplinar “Massa e Poder”.
Eis mais alguns títulos: “A Língua Absolvida”, “O Jogo dos Olhos”, “Consciência das Palavras”, “Sobre os Escritores”, “O Outro Processo – as Cartas de Kafka a Felice”, “Luz em Meu Ouvido”…
Neste artigo, abordarei, como disse, parte de uma delas, “O Jogo dos Olhos”. Esta obra expressa, tanto quanto as demais produzidas pelo autor, as ideias instigantes de Canetti sobre a cultura, a estética e sobre determinados estados psicológicos.
Antes de abordar o título selecionado, cumpre informar ao leitor que Canetti não opera cisão alguma entre o exercício de produção literária e os fenômenos de poder, conflito e, sob estes, de busca pela sobrevivência. Da ficção aos ensaios, Canetti, como bem assinalou Susan Sontag, “é a história de uma libertação: uma mente – uma linguagem – uma língua libertada para percorrer o mundo”.
No primeiro capítulo [ou na primeira confissão — que não soaria mal], intitulado “O Casamento”, dividido em sete seções, Elias Canetti, na primeira, intitulada “Büchner no Deserto” está a se recuperar, sem o conseguir plenamente, do estafante, doloroso, arrasador processo de criação relacionado à sua única obra de ficção, “Auto de Fé”, a qual teria, antes, sido batizada “Kant Pega Fogo”.
O livro, então terminado, revelou-se, ao autor, ainda mais sombrio. E produziu, sobre a mente e o corpo de Canetti uma carga melancólica ao extremo, autopunitiva, por experimentar uma culpa excessiva: concluíra a novela lançando o personagem na fogueira resultante da queima dos milhares de livros da sua biblioteca, isto é, da biblioteca do personagem, Kien.
Não é o caso, aqui, tratar da história de “Auto de Fé”. Num futuro, não muito distante, abordarei esta obra.
A opressiva sensação de vazio, de desânimo não é um estado físico e mental exclusivo de Canetti. Há vários relatos de outros escritores sobre isso. O que importa a mim são as características singulares do spleen que acometeu o autor húngaro: sua reverência a Stendhal evaporara. E, assim, ao tomar um volume deste autor, lançara-o ao chão, sem abri-lo. Ainda pior com Gogol: sentira tão somente desprezo por “O Capote”.
Não que apontasse estes autores, e outros presentes na sua biblioteca, como responsáveis pelo seu péssimo estado de ânimo. Na verdade, eis o que Canetti deixa vazar pelas entrelinhas, após ter, na novela que ora concluíra, incinerado milhares de livros, objetos que sustentam sua paixão primeira, seu sentido de vida, e imolado, nesta pira bibliográfica, o seu herói, Kien, é algo como um sentimento de ‘indignidade’ diante de seus irmãos em armas, dos escritores que aprendeu a amar e que foram essenciais para sua sólida formação espiritual.
Naquela época Elias Canetti beirava os 30 anos.
Não há como saber se toda a história é real. Há algo de barroquismo em sua narrativa. E escritores, por sua natureza mesma, sabem mentir como ninguém. Não importa. A maneira como conta arrebata, incandesce a imaginação de quem o lê. Até porque há, nesta trágica narrativa canettiana, os emblemáticos elementos romanescos — descida ao fundo do poço, superação do desafio, recuperação moral, epifania… Atalhos para um significado mais profundo, símbolos que tornam a história mais interessante.
Canetti, então, é salvo, resgatado do lamaçal, por ninguém mais, ninguém menos, do que Georg Büchner.
A salvação se dá ao perceber, na prateleira, um volume, o qual, dentre outros escritos, traz a peça inacabada de Büchner, “Woyzeck” [ou “Vozzeck”, de acordo com Canetti].
Lerá a peça por toda noite, segundo ele, e não apenas uma vez.
Comum dizer-se que a peça é baseada em fatos. Houvera mesmo um Woyzeck, ocorrera um assassinato, e o processo judicial alongara-se.
Aos conhecedores da obra de Büchner, desta peça, em relação aos momentos angustiantes que assolavam a alma de Canetti, não há de causar estranhamento o fato deste encontrar suporte naquele. “Auto de Fé” é uma obra em que o corpóreo, o fisiológico, a iniquidade, a ingenuidade, a loucura operam em uníssono sobre os personagens e o leitor. Canetti nos impôs isso. Ao terminar o projeto, sente, como pai da criança, de forma muito mais íntima e ampliada.
Eu li “Woyzeck” bem antes de “Auto de Fé”. Não conhecia Canetti, até este me ser apresentado por um amigo, leitor altamente seletivo e qualificado e, neste sentido, muito superior a mim.
Ao inteirar-me das agruras de Canetti, e sua redenção moral e estética a partir de “Woyzeck”, peça que Büchner nem chegou a terminar, dada sua morte prematura, compreendi que Canetti não havia se deparado com um texto que confrontava o seu. Pelo contrário, a peça do dramaturgo alemão é como um prólogo perverso de “Auto de Fé”.
Recorde-se, e confira, o leitor de que, mais acima, mencionei, entre alguns fatores inerentes à estrutura narrativa de “Auto de Fé”, o corpóreo, o fisiológico.
O ponto temático, em “Woyzeck”, para onde toda trama converge, é a divisão entre corpo e espírito, uma divisão explorada pelo poder político como forma de oprimir e anular o indivíduo. Tal cisão se expressa em um processo de redução da pessoa apenas à realidade física. O ingênuo militar, Woyzeck, sendo explorado como cobaia, é tratado pelo “médico” como um corpo sem alma. É a esta absolutização do corpo. Tornar-se-á um assassino. Como bem assinala Julian Hilton, em “Büchner” [Coleção “Macmillan Modern Dramatists”] a vida de Woyzeck “é tão vazia que nem a vida nem a morte, muito menos justiça ou misericórdia, têm algum significado para ele”.
Eis o espelho em que se mira Elias Canetti, assassino de Peter Kien.
Após sucessivas leituras, noite adentro, Canetti, tomado de incontrolável entusiasmo, pegou o primeiro trem e foi ver sua esposa, Veza, que se mantivera à distância, enquanto ele escrevia “Auto de Fé”, em outra cidade. Ele a acordou, era manhã, muito cedo.
Longe de ocorrer um encontro amoroso, de superação de distância e saudade, dá-se um confronto. Canetti supõe que fará duas surpresas a Veza: finalizara a novela “Auto de Fé” e descobrira Büchner mediante a leitura de “Woyzeck”.
Mas Veza já havia lido Büchner, e não só “Woyzeck”. Elias interpretou como uma traição grave o fato de ela nunca ter mencionado “Woyzeck” ou qualquer uma das outras obras de Büchner.
Veza, com calma, explica que escondeu Büchner de Canetti porque sabia que seu companheiro poderia sofrer um bloqueio. Comovente esta consciência do poder inibidor que pode ser exercido por obras literárias monumentais. Mais comovente dois intelectuais de elevada estatura, Elias e Veza Canetti admitirem isto em relação a si próprios.
Canetti havia passado a noite a ler e reler Woyzeck. Ânimos acalmados, Veza lhe apresenta outra obra inacabada de Büchner, “Lenz”. Este, até onde se sabe, é o único texto narrativo de Büchner. Escrito em 1835, foi deixado inacabado em forma de rascunho, embora talvez relativamente próximo da conclusão. Provavelmente é uma narrativa biográfica sobre o autor do “Sturm und Drang”, Jakob Michael Reinhold Lenz.
Em tempo: Sturm und Drang é uma expressão alemã que significa “tempestade e ímpeto”. Com essa denominação, surgiu movimento literário e musical pré-romântico entre 1760 e 1780 nos países de língua alemã.
Quanto a “Lenz”, a exploração visionária de Georg Büchner sobre a descida à loucura de um dramaturgo do século XVIII, foi considerada o início da prosa modernista europeia. Elias Canetti, em “O Jogo dos Olhos” afirma que esta curta novela foi uma das experiências de leitura seminais de toda a sua vida.
O previsto por Veza, esposa de Canetti, aconteceu: o escritor não se sentiu, doravante, à vontade para escrever outra ficção.
Canetti, após as leituras das obras de Büchner, compreendeu o gesto da mulher que estava a seu lado de forma completa, inclusive como protetora, pois, Canetti, como ele mesmo admitiu, sentia-se seduzido pela loucura, pelos estados psicóticos, e sua forma de abordá-los era totalmente idealista. Veza percebera a armadilha na qual ele facilmente cairia.
Canetti passou, após esses acontecimentos, a trazer à baila o efeito direto, opressivo e nada ambíguo causado pela leitura de uma grande obra. E esse efeito num escritor é duplamente terrível. Há um certo pudor em voltar a escrever, e o escritor tem de se obrigar a isso, sob pena de sufocar sob o peso de autores que ele considera muito acima de si.
Quanto à impressão de Canetti sobre o estilo, o método de Büchner, chamou-lhe fortemente a atenção o fato de que “os personagens nos causam maior impacto (à exceção do personagem principal) apresentarem a si mesmos”.
Como eu disse antes, “O Jogo dos Olhos” é o terceiro volume da trilogia composta por “A língua absolvida” e “Uma luz em meu ouvido”.
Sei que, inexoravelmente, voltarei a elas, escreverei sobre elas.
Há, à guisa de apêndice, outra observação: a relação de Canetti com as obras do pintor alemão Matthias Grünewald. No pequeno domicílio, em que o escritor se fechou para escrever “Auto de Fé”, havia reproduções do “Retábulo de Isenheim” fixadas na parede.
A propósito, as telas de Matthias Grünewald, obras-primas do final da era gótica, estão a ser, desde 2022, restauradas. No caso do famoso retábulo, especialistas, após quatro anos, obtiveram êxito na sua recuperação.
O escritor Elias Canetti ficou um dia inteiro diante da obra-prima, quando a viu num museu em 1927. Para o escritor, a “condição horrível” do corpo de Cristo, retratada por Grünewald, era verdadeira.
Penso que a Crucificação de Jesus raramente foi retratada de forma tão drástica como por Matthias Grünewald. Seu Altar de Isenheim sempre comoveu pensadores. Além de Canetti, recordemo-nos de Paul Celan, poeta judeu, que viu, ‘in loco’, a obra em 1970. Segundo o notável pesquisador da História da Literatura, Gerhart Baumann, “Celan voltou sua atenção apenas para a ‘crucificação’. A presença do horror não o abandonou. Permanecemos em silêncio. Depois de algum tempo saímos da sala de silêncio onde o poder do talento trágico de Grünewald é reafirmado de forma chocante.”
Por isso Canetti mantinha consigo reproduções da obra. As imagens permitiram-lhe compreender a beleza e a transfiguração da crucificação.
Aos atentos leitores de Canetti, os reflexos estéticos e filosóficos desta experiência aparecem, ainda que de forma sutil, em seus escritos.
Indispensável retornarmos a elas com disciplinada regularidade.
Não conheço a obra de Canetti, mas o artigo acima me despertou curiosidade. Léo Mitarraquis vem demonstrando, através de uma crítica lúcida, a habilidade natural para análises consistentes e bem escritas. Em se tratando de estudo literário, do trabalho de crítica literária em uma época de vacas magras, vale aqui a sentença: a seara é grande e pouco são os ceifeiros.