sexta-feira, 06/09/2024
prato de comida
Não depender, durante todo o tempo, de outrem para poder ter, em frente e sobre a mesa, um prato de comida, nos confere considerável poder. Pelo menos no tocante a um importante aspecto da existência

Em pratos limpos… Ou nem tanto – Reflexões esparsas, inúteis e em nada inéditas

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Por Léo Mittaraquis (*)

 

“Nosso relacionamento com a comida é complexo,  multifacetado e influenciado por uma série de fatores: cultura, tradição, emoções e gostos pessoais além de preferências nutricionais e dietéticas. Os tipos de comida que escolhemos e comemos, as maneiras como os preparamos e as ocasiões em que os consumimos são todos fortemente influenciados por contextos culturais e sociais. Muitas pessoas também recorrem à comida como uma forma de lidar com felicidade, tristeza, estresse ou outras emoções”

Phil Lempert, Food and Drink

 

A soma do saber cozinhar com o saber comer é muito mais que igual a dois. O resultado pode ser três, seis, nove… Consequências de uma vida, ou melhor, duma parte da vida às voltas com panelas, bocas de fogo e forno.

Fato: a comida, o cozinhar, é um dos pontos basilares da construção social na civilização. Fez também com que mitologias surgissem. A comida e, consequentemente, o comer, são pecaminosos, culpados, redentores, eróticos, deliciosos, amados, odiados, divinizados… Totem e Tabu… “A força ética da refeição sacrificial pública baseava-se em antiquíssimas concepções sobre o significado de comer e beber em companhia de outrem. Comer e beber com alguém era, ao mesmo tempo, um símbolo e um robustecimento do vínculo social e da adoção de obrigações recíprocas. A refeição sacrificial exprimia diretamente o fato de que o deus e os adoradores eram comensais”.

Se o indulgente leitor perceber alguma direção oblíqua a mal guiá-lo por referências filosóficas, sociológicas, antropológicas, psicológicas, psicanalíticas (fazêuquê?) e literárias, digo-lhe que estará correto. Há muito dispus a aceitar, em mim, o caruncho da intertextualidade. Ou um vício cultivado, como diria Marcelle Duffet, personagem de Jean-Paul Sartre, em “A Idade da Razão”. Sim, sim, reconheço: o tecido das minhas palavras traz uma nódoa de barroquismo. Não adianta deixar de molho em água sanitária, nem esfregar com sabão em barra. Não sai.

Memória afetiva — inda novinho, cheirando a vinho, isto é, cheirando a leite, fui recrutado por Dona Vilma. Ela e Seu Léo, meu pai, tinham de passar o dia fora. Alguém deveria assumir o de comer. Oia eu, mais velho dos quatro, pois.

Não que cozinhasse tudo. Tava mais, no começo, para um encarregado de deixar o que estava pronto em ordem. Algo assim como a finalização.

Era, como sou até hoje, fascinado pelos aspectos científicos, digamos, dos processos de cocção: a química, a física e a biologia, campos de conhecimento que sempre fizeram parte da minha formação cultural. Nunca os vi como antípodas às ciências humanas. Todas as vezes que estou a cozinhar ou a comer, recordo de uma frase muito perspicaz do escritor americano, Harold James McGee, que produz textos sobre química e a história da ciência alimentar e culinária: “Enquanto a ciência infiltrava-se aos poucos no mundo da culinária, a culinária foi se imiscuindo nas ciências puras e aplicadas”. O cotidiano também nos proporciona, se quisermos mesmo perceber e admirar, coisas extraordinárias.

Bem, ponhamos as coisas em pratos limpos… Ou nem tanto — qual o motivo de tão desinteressante revelação ao distinto público leitor?

Well… É aqui que nóis volta ao início do começo: soma multiplicada pelo fato de se saber cozinhar bem e comer bem. O que inclui o beber bem.

Coisa comum, eu, o marido, em casa, fazer café, almoço e janta. E ao obrigar-me a tal azo, por tantos anos, aprendi a fazê-los com mestria, seja a gororoba cotidiana, sem frescuras, seja o prato fru-fru, com bordadinhos, num arremedo de chef Michelin.

Voz repetente: gosto de cozinhar para ela – notadamente o jantar, ao qual raro é faltar o vinho, este problema sensorial e transcendental que se estende para muito além do beber pelo beber. Faço minhas, sem merecer tal privilégio, as doutas palavras de  José Ortega y Gasset, registradas em seu livro “Ensaios de Estética”. Diz o filósofo, historiador e ensaísta: “É um problema tão sério o do vinho, tão verdadeiramente cósmico, que a nossa época não pôde passar por ele sem lhe dar atenção e resolvê-lo à sua maneira”.

Uma das consequências desta prática é, além do afeto, do carinho, dificilmente gostar da comida dos outros. Mais especificamente da comida de restaurante, de lanchonete, de biboca… Com as raríssimas e rarefeitas exceções.

No nosso caso, meu e da radiopatroa, tá difícil encontrarmos comida (muito cara, diga-se de passagem) que preste.

A coisa fica muito pior se recorremos ao delivery. Como não tomamos, ainda, vergonha na cara, não obstante já termos nos decepcionado inúmeras vezes, decepção que inclui o prejuízo financeiro, vez por outra pedimos fora. A comida medonha chega e… De tão ruim, não conseguimos comer. Então o que se pediu fora vai fora.

Comida encomendada – este é um dos pontos nevrálgicos destas muito mal traçadas linhas.

Quando tal apocalipse gastronômico ocorre, eu juro de pé junto, mãos postas em oração, que nunca mais recorreremos ao serviço de entrega no que tange às refeições, já que a comida que faço é muito melhor. Além de sair mais em conta.

Mas quá! O dia exige mais, trabalhamos até mais tarde e, exausto demais para passar um tempo na cozinha, concordo com a esposa e, depois dela procurar muito, arriscamos um lugar. Fazemos o pedido e aguardamos.

E aí, frequentemente, a coisa degringola: se é uma polenta com ragu de linguiça, chega um mingau, uma mistureba triste; se é um risoto de alho poró com corte alto de filé, chega uma massaroca grudenta de arroz parboilizado com um naco de carne esturricado; caso ousemos pedir gnocchi ao pomodoro, chega massa encruada afogada numa mistura de extrato de tomate, molho pronto e colorau.

EM TEMPO: não se trata, aqui, de uma crítica ao serviço de delivery. Este, em si e em geral, funciona muito bem, e nada tem a ver com a qualidade do produto solicitado. Sabem como é: a gente tem que levar em conta certas cabecinhas confusas. É necessário desenhar.

Portanto, se é pra fazer um prato mediano, ou até mesmo ruim, preferível fazer em casa, mesmo. O custo em dinheiro e em sanidade é menor. E sou eu a cozinhar, a pensar o prato. E devo ser por inteiro. Você leitor, quando na cozinha, deve estar totalmente ali, também. Afinal, como bem observou a exímia cozinheira e editora da Alfred A. Knopf, Judith Jones, “cozinhar é uma experiência sensual e você realmente deve permitir que todos os seus sentidos participem”.

Ah, seu Mittaraquis, não tem lugar que preste? Tem sim, claro que tem. Há bons lugares, por aqui, que oferecem boa comida… Pero no.

Louvor do quê, o tema? Estou a produzir este rascunho, como desimportante artigoleiro que sou, por falta doutro tema. A cachola deu tilt, que nem fliperama vintage.

Por sinal, era este escriba de meia-pataca muito bom no Pimball. Jogava apostado. Fingia não saber, insuflava a confiança do otário, deixava que levasse vantagem nas primeiras rodadas, elevava o valor da aposta e zás! Limpava a carteira do incauto e ingênuo jogador.

Mas, retornando ao assunto principal: defendo que o cidadão e a cidadã aprendam pelo menos o básico do cozinhar. Assim, com o pouco que se tem na geladeira e no armário, dá para elaborar um pratinho e acompanhar com um vinho, uma cerveja, um suco, um café, um chá ou apenas água.

Não é uma exortação nacionalista à independência e à dignidade culinária. Nada disso. Há quem não saiba e nem queira saber por não gostar mesmo de cozinha. É um inalienável direito.

O sujeito não tá nem aí tanto quanto, em relação a ele, não estou nem lá.

Minhas singelas, olvidáveis e deléveis palavras são dirigidas a quem interessar possa. Mais como garrafas ao mar. Deste modo, deixo-as à mercê do acaso, das correntes imprevisíveis deste imenso e caprichoso mar que é a vida.

Não depender, durante todo o tempo, de outrem para poder ter, em frente e sobre a mesa, um prato de comida, nos confere considerável poder. Pelo menos no tocante a um importante aspecto da existência.

Vindos, meio que inesperadamente, à superfície da memória, três nomes de peso (infame trocadilho), creio que haverá por bem citá-los.

David Hume, em “Tratado da Natureza Humana”, reflete sobre “um homem que contrai o hábito de comer fruta comendo peras ou pêssegos, contentar-se-á com melões quando não puder encontrar a sua fruta preferida”. E também sobre “aquele que se tornou um ébrio consumindo vinhos tintos, o qual será arrastado quase com a mesma violência para o vinho branco, se este lhe for apresentado”. Ora, eis a natureza do hábito a operar com toda intensidade – Provoco um tantinho a você, leitor: que ‘habito’ é mais hábito do que o hábito de comer e beber?

 

Immanuel Kant, em “Antropologia de um ponto de vista pragmático”, aborda o ritual do bem servir uma boa refeição. Entendia, o filósofo, que os convivas devem ser dotados de perspectivas estéticas e éticas semelhantes. E não estejam interessados tão somente no comer, mas, sim, no usufruto das nobres qualidades intelectuais dos demais presentes. A refeição em comum contará com mais um tempero essencial: a conversa fundamentada e educada.

Jean Anthelme Brillat-Savarin: “Diga-me o que você come e eu lhe direi o que você é”

O genial Jean Anthelme Brillat-Savarin, autor de “A Fisiologia do Gosto”, cunhou uma frase que se tornou emblemática: “Diga-me o que você come e eu lhe direi o que você é”. Todas as vezes que como mal, por preguiça de cozinhar minha própria comida, sei no que me transformo: um mastigador, um engolidor, um empastador impulsivo e infeliz. E a responsabilidade é toda minha.

Brillat-Savarin soube, como poucos, brilhar no campo da culinária. Sua abordagem à comida foi inovadora, tratando o ato de comer de forma científica e, ao mesmo tempo, estética.

Saber e querer cozinhar, segundo Brillat-Savarin, é um modo de viver, de encarar o mundo. E isso pode ser aprimorado se melhor compreendido for.

As ideias deste grande pensador, continua a inspirar cozinheiros domésticos, chefs, pretensiosos gourmands, escritores e filósofos.

Brillat-Savarin demonstrou que o comer de maneira decente é participar de uma das alegrias mais essenciais ao nosso espírito.

Ao vincular o ato de comer a temas culturais e filosóficos mais amplos, Brillat-Savarin preencheu a lacuna entre o mero ato de levar à boca uma colherada e o mundo mais rico e complexo do prazer culinário/gastronômico.

Ora veja só: a comida, o comer, foram pensados por grandes pensadores.

Estes gigantes, dentre outros, da meditação e da práxis, fazem sombra acima da minha velha carcaça. Pois que dos meus ossos faça-se bom brodo.

Ao me pôr na cozinha todos os dias, pela manhã, logo cedo, entendo que repetirei gestos, receitas, métodos… Tradição… Sabedoria ancestral…

Café da manhã e almoço. O primeiro consumimos juntos; o segundo ela leva na lancheirinha. Come no trabalho.

Vez por outra invento de inventar. Pode dar certo ou não. Costumo acertar, mas o erro faz parte… Oh, como o faz…

Mandar buscar fora, como se costuma dizer, é uma opção. Há riscos e vantagens. O ponto é que só realmente sabemos o que veio e como veio após receber e abrir a embalagem.

Suspense hitchcockiano… Com uma pitada de pessimismo sem redenção de um Sam Peckinpah.

Hum… Em se tratando de comida, entre outros tópicos de peso universal, nos acossa a esfinge gastronômico-shakespeareana: “Delivery or not Delivery? That is the question”.

Santé 🍷

 

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Sobre Leo Mittaraquis

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Léo Mittaraquis é graduado em Filosofia, crítico literário, mestre em Educação. Mantém o Projeto "Se Comes, Tu Bebes". Instagram: @leo.mittaraquis

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