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ENEM 2020: uma crônica da tragédia anunciada

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Christian Lindberg (*)

Hoje, 07/02, é o segundo dia de aplicação do ENEM digital, inovação que o Ministério da Educação criou para realizar o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Não obstante a nova iniciativa ministerial, pode-se constatar que a edição 2020 do exame converteu-se em uma espécie de pesadelo para os mais de 5,5 milhões de inscritos na prova impressa e 93 mil na digital. Como se sabe, o ENEM 2020 é realizado no meio da maior crise sanitária do país e que tirou a vida de mais de 230 mil brasileiros até o presente momento.

Faço esta afirmação tendo como pressuposto a elevada taxa de ausência na prova. No caso do formato impresso, 55,3% dos inscritos não compareceram para fazê-la. No digital, o primeiro dia de aplicação da prova registrou a ausência de 68,1% dos inscritos. Ora, o que pode explicar esse elevado índice, o maior da história do ENEM?

Desde o início da pandemia do coronavírus e da suspensão das aulas presenciais em março de 2020, o comportamento do governo federal é de total desprezo com a vida. Primeiro foi dito que a COVID-19 era uma gripezinha, depois disse que todo mundo morrerá de qualquer jeito e que não era coveiro. No caso do Ministério da Educação (MEC), o repertório negacionista acabou retardando a adoção de políticas públicas para minimizar os impactos da pandemia na educação e, principalmente, imobilizou o papel de coordenador que o ministério é obrigado a exercer na coordenação do sistema nacional de educação.

Pode-se somar a questão da desigualdade social que aumentou, no último ano, por conta da crise econômica, realidade que acabou tirando milhares de jovens das escolas. Por conta da estrutura desigual da sociedade brasileira, esse quadro de agravamento social foi maior entre os estudantes mais pobres, pretos/pardos e matriculados em escolas públicas.

Além disso, mesmo com o empenho das secretarias estaduais e municipais de educação, o ensino remoto não cumpriu os objetivos almejados. A dificuldade para acessar a internet, o fato de ter um computador ou tablet no próprio domicílio, problemas de ordem emocional e a falta de formação por parte dos/as professores/as para o exercício profissional de forma remota foram apontados, de acordo com diversas pesquisas, como os principais fatores que prejudicam a relação ensino-aprendizagem no período da pandemia.

Recordo que, no meio do ano passado, foi discutido a possibilidade de cancelar a edição 2020 do ENEM, a exemplo do que outros países, como os EUA e a China, fizeram com suas provas similares a nossa. O MEC, para sair da sinuca de bico no qual se encontrou, promoveu uma enquete entre os inscritos no exame e o resultado apontou que 49,7% prefeririam que a prova fosse realizada em maio de 2021, 35% em janeiro desse ano e os demais votantes optaram por outras opções. Nem a própria enquete, que poderia dar maior legitimidade à deliberação do ministério, teve validade.

De igual modo, sabe-se que o ENEM, desde o governo do ex-presidente Lula (PT), é uma espécie de passaporte para o ensino superior. O resultado da prova permite que os/as estudantes concorram a bolsas do FIES e do PROUNI, além de ser instrumento para o preenchimento do SISU, sistema que organiza o processo de ingresso nas universidades e institutos federais do país. Pois bem, o MEC decidiu que o ENEM 2020 não será utilizado pelo SISU, nem como instrumento para solicitar bolsa do FIES, já que as inscrições foram abertas agora em janeiro, o que inviabiliza o uso da nota do exame realizado esse ano.

Soma-se a esses motivos o fato de a prova ter sido realizada em uma época marcada pelo crescimento no número de casos e mortes de coronavírus no país inteiro. Diante da realidade, diversos órgãos solicitaram o adiamento da prova, a exemplo do TCU, das entidades estudantis, sindicato de professores/as, secretários/as estaduais e municipais de saúde. Nem a morte por COVID-19 de Carlos Roberto Pinto Souza, diretor do INEP responsável pela realização do ENEM, sensibilizou o ministro Milton Ribeiro. O MEC preferiu manter a data a todo custo.

Pelo visto, mesmo tentando remediar a situação caótica que o próprio Ministério da Educação criou, a impressão que se tem é que o MEC deseja reconfigurar os atuais objetivos do ENEM, no melhor estilo “vamos primeiro destruir para depois construir”. Talvez isso explique a quantidade de “barbeiragens” que a pasta fez nos últimos 10 meses quando o assunto foi Exame Nacional do Ensino Médio.

(*) Christian Lindberg Lopes do Nascimento é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Graduado em Filosofia (UFS), doutor em Filosofia da Educação (UNICAMP) e pós-doutor em Educação (UNICAMP).

**Esse texto é de responsabilidade exclusiva do autor.  Não reflete, necessariamente, a opinião do Só Sergipe.

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