Em junho de 1985, a menina Betina Anton ficou perplexa quando soube, por alguém da escola onde estudava, que a então professora Tante Liselotte não iria mais trabalhar ali. O que motivou aquela saída abrupta da sua professora, a quem seus pais a confiavam na escola germânica, em Santo Amaro, interior de São Paulo? A curiosidade da garota descendente de alemães cresceu e a acompanhou até que ela se tornou adulta. Cursou jornalismo, depois fez Mestrado em História, e decidiu tirar essa história a limpo. Depois de seis anos de pesquisas, milhares de entrevistas e leituras, eis que Betina Anton lançou, em novembro de 2023, o seu primeiro livro, chamado “Baviera Tropical – a história de Josef Mengele, o médico nazista mais procurado do mundo, que viveu quase vinte anos no Brasil, sem nunca ter sido pego”, da editora Todavia.
“Eu acho que já era uma jornalista mirim”, diz Betina sobre sua curiosidade a respeito dos mistérios que cercavam a professora Liselotte. Um dia, conversando com um chefe na Rede Globo, onde ela trabalha como editora de internacional do Jornal Hoje e é comentarista de internacional da Globo News, Betina disse “que tinha uma história que podia virar um livro”. E virou. O livro vem fazendo tanto sucesso de público e crítica que, no ano passado, ela ganhou em primeiro lugar na categoria biografia e reportagem o Prêmio Jabuti.
Neste tempo de pesquisa, Betina Anton conta que viajou bastante, vasculhou documentos, leu as cartas de Josef Mengele, em alemão, entrevistou dirigente do Mossad, o serviço secreto israelense, ex-diretores da Polícia Federal, para montar a história do médico nazista no Brasil. E muitas informações que apurou a deixaram impressionada, a exemplo das histórias dos sobreviventes que sofreram bastante nas mãos de Mengele, conhecido como o Anjo da Morte, com seus experimentos terríveis. Também a surpreendeu o fato de o fugitivo nazista ter passado tanto tempo no Brasil sem nunca ter sido preso.
Há também relatos cruéis das experiências que Mengele fez com gêmeos, isso sem falar que o médico jogou bebês vivos em fogueiras. “Realmente eu não estou querendo acreditar por ser muito absurdo, mas ele fazia isso”, disse Betina ao se referir a esse ato de Mengele com os bebês. Para ter certeza de que essa informação não era sensacionalista, Betina apurou a fundo. Um trabalho de jornalismo investigativo impecável. E aí decidiu colocar a informação no livro.
Além do prestigiado Prêmio Jabuti, Baviera Tropical foi selecionado no Prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA) como melhor biografia do ano de 2023. Aos 45 anos de idade, o sucesso como escritora a motiva a escrever mais. Ela já está preparando num novo livro, mas preferiu não adiantar nenhuma informação sobre esse trabalho.
Mas, de volta ao começo: qual mistério envolve a professora Tante Liselotte? Você vai ter pistas para essa resposta, ao ler esta entrevista que Betina Anton concedeu ao Portal Só Sergipe. E vai encontrar uma série de questionamentos instigantes, que só vai descobrir de duas maneiras. Lendo esta entrevista e depois correndo à livraria mais próxima para adquirir Baviera Tropical. Você vai se surpreender.
SÓ SERGIPE – Ao começar a ler Baviera Tropical, fiquei com a impressão de que, desde criança, você já era jornalista. É isso mesmo?
BETINA ANTON – (Risos). Que legal! É verdade, eu acho que era uma jornalista mirim. Fiquei com a antena ligada quando aquelas coisas aconteceram.
SÓ SERGIPE – O que lhe motivou a escrever este livro?
BETINA ANTON – Eu sempre quis escrever. Sou editora de internacional há muitos anos e quis me aprofundar numa história que envolvesse jornalismo e história, pois tenho mestrado nessa área. Um dia eu estava conversando com um chefe meu, falando de história de um nazista que virou filme e o livro foi escrito por um jornalista. Eu disse a ele que tinha uma história e poderia virar um livro. Era a história do Mengele, que sempre estava na minha cabeça. E aí na conversa com ele, eu decidi me dedicar a esse projeto.
SÓ SERGIPE – Quantos anos você passou entre pesquisa e o livro ficar pronto?
BETINA ANTON – Foram seis anos, e viajei bastante. Fui para vários lugares aqui no Brasil, onde Mengele esteve, onde ele morou em Serra Negra; fui ao lugar onde ele foi enterrado com o nome falso; fui à casa, em São Paulo, onde ele morou por alguns anos. Enfim, fui a vários lugares frequentados por ele e aproveitei algumas viagens que estava fazendo a trabalho. Fiz entrevista em Israel, com o comandante do Mossad, que participou das tentativas de sequestro do Mengele aqui no Brasil.
SÓ SERGIPE – Você chegou a ir a Auschwitz?
BETINA ANTON – Não.
SÓ SERGIPE – Quando você estava fazendo a pesquisa teve dificuldades? E falar vários idiomas, facilitou?
BETINA ANTON – Falar idiomas facilitou bastante, porque esse é um livro internacional, pois envolve pessoas de diversos países. Fiz pesquisas nas cartas do Mengele, todas escritas em alemão, e eu tinha essa facilidade porque venho de família alemã e aprendi o idioma desde pequena. Mas, também, havia muito material em inglês. Por exemplo, para fazer pesquisa num material do Mengele, em Auschwitz, eles tinham em alemão ou polonês. Eu não leio polonês, mas em alemão tive acesso. Em vários momentos, precisei usar outras línguas e, claro, o português. Porque o inquérito policial está em português. Então, tive que usar vários idiomas para compor o quadro todo.
SÓ SERGIPE – O que mais lhe surpreende no livro, mais lhe impacta?
BETINA ANTON – O que mais me toca são as histórias das pessoas, dos sobreviventes. Como eles conseguiram sobreviver em situação tão adversa, sendo tão oprimidos, tratados com tanta crueldade. As pessoas deram uma grande lição de vida. Mas me surpreendeu, também, lendo as cartas de Mengele, ver como ele desfrutou a vida aqui no Brasil. Ele viajou para vários lugares, tomava banho de cachoeira, passeava com os cachorros, encontrava-se com os amigos. Ou seja, uma pessoa normal e que tinha uma vida; senão em todos os momentos, mas uma vida boa. Talvez não tenha sido a vida que ele idealizou, mas as cartas deixam claro que ele fazia coisas legais, digamos assim. Tinha uma vida aprazível.
SÓ SERGIPE – Ao apurar essa história, você não sentiu um certo desleixo das autoridades brasileiras na busca de Mengele?
BETINA ANTON – Não senti pelo seguinte: hoje em dia, olhando para trás é fácil identificar isso, mas na época ninguém sabia que ele estava aqui. Os caçadores de nazistas achavam, em primeiro lugar, que ele estava no Paraguai. Hoje seria impossível ele escapar durante tanto tempo, com internet, redes sociais. Não acho que foi um problema das autoridades brasileiras, mas das pessoas que viviam com ele e não falaram com essas autoridades, ficaram quieta, o protegeram.
SÓ SERGIPE – No dia que ele morreu afogado na praia de Bertioga, ao ler o livro, senti uma certa ingenuidade daquele policial que foi ver o corpo, por ter se convencido logo no primeiro documento que a moça o entregou etc.
BETINA ANTON – De novo. A gente olhando para trás agora, fica fácil. Mas na época, aquilo era fácil acontecer. Quando a gente conhece a história fica óbvio. Para época, são coisas que acontecem. Eu consultei um legista para saber se tinha muita diferença num corpo de uma pessoa com 14 anos de diferença e até coloco isso no livro, o médico falou que, dependendo da faixa etária, 14 anos não fazem muita diferença. Faz mais diferença como o morto viveu a vida. Tirando o fato de ser uma criança ou velhinho, a faixa do meio não faz diferença. Ainda mais, morte por afogamento que a pessoa fica com os tecidos muito enrugados.
SÓ SERGIPE – Tem passagens no seu livro que, para mim, foram bastante impactantes, como as experiências bizarras em humanos, coisas de filme de terror. Jogar um bebê vivo numa fogueira, por exemplo. Quando você descobriu essas atrocidades, qual foi o seu sentimento?
BETINA ANTON – Para falar a verdade, já tinha ouvido falar dessas atrocidades quando eu era criança. Tinha programas de TV, no domingo, que falava disso. E uma das coisas que eu queria fazer era, realmente, pesquisar para saber se aquilo era ou não sensacionalismo. E cheguei à conclusão de que não era sensacionalismo, porque muitas pessoas fazem relatos. Quanto à essa coisa de jogar bebê na fogueira, fui meio resistente, no começo, de colocar isso no livro porque achei muito absurdo. Mas depois do relato de várias pessoas que contaram a mesma história, inclusive, uma médica que trabalhou com ele, que era uma judia ultra ortodoxa, uma pessoa com credibilidade altíssima, contou que Mengele fazia isso, eu falei: realmente, eu não estou querendo acreditar por ser muito absurdo, mas ele fazia isso. E acabei incluindo no livro. Eu não assumi tudo de uma vez. Tive muito cuidado para pesquisar o que ele tinha feito, com as fontes, com as leituras. Muita gente que aparece no livro já tinha morrido, mas eu fui atrás de documentos, de livros, de depoimentos gravados para poder compor esse quadro de quem era o Mengele lá em Auschwitz.
SÓ SERGIPE – Há detalhes importantes do seu livro que quase ninguém sabia. Muitas perguntas.
BETINA ANTON – Talvez as pessoas não tenham tanta dimensão de que Mengele foi o nazista mais procurado do mundo e que ele viveu quase 20 anos no Brasil sem nunca ter sido preso. Isso é uma coisa muito impactante, e se discutiu muito pouco na nossa história. Então, acho isso muito importante. E o livro busca responder estas perguntas: Como ele conseguiu ficar tanto tempo aqui? Como nunca foi descoberto? Por que as pessoas o apoiavam? Por que ninguém o denunciou? Enfim uma série de perguntas que me moveram a pesquisar e a escrever e que estão livro. Espero que as pessoas tenham curiosidade para descobrir essas coisas.
SÓ SERGIPE – Seu livro já está traduzido para vários idiomas.
BETINA ANTON – Ele vai ser traduzido para 13 línguas, em alguns países já foi lançado, como Estados Unidos, Polonia, Hungria, Portugal, Holanda e vai ser lançado na Itália, Rússia. Como eu te falei, é uma história que tem esse interesse internacional.
SÓ SERGIPE – Você pretende fazer lançamentos pelo Brasil?
BETINA ANTON – A editora não faz lançamentos em cidades. Mas o que eu faço é participar de eventos em várias cidades. Se vocês tiverem um evento, que já esteja organizado, eu consigo participar. Não vou para o lançamento exclusivo do livro, isso a editora não faz, infelizmente.
SÓ SERGIPE – Esse é o seu primeiro livro?
BETINA ANTON – Sim, é o primeiro. Sou jornalista há mais de 20 anos, mas é o primeiro.
SÓ SERGIPE – Já pensa num segundo livro? Pode dizer sobre o que irá escrever?
BETINA ANTON – Estou pesquisando sim.