Perto do meio-dia, quarta-feira, 09, vejo uma mensagem no celular. Era Patrícia, jornalista de São Paulo, informando que Gal Costa acabara de partir. Patrícia, dileta amiga, produtora cultural, conheci em Malta. Patrícia, assim como eu, é andarilha.
Paro tudo, ligo a TV, leio os jornais na internet. O anúncio de sua morte empurrou todos os assuntos para segundo plano, colocando Gal em destaque. O comunicado da assessoria de imprensa dizia que Gal Costa morreu em casa, aos 77 anos, de causa não divulgada. Em setembro havia se submetido a uma cirurgia, estava reclusa, longe da mídia e dos palcos.
A ida do presidente eleito Lula a Brasília falar com os presidentes dos poderes, as eleições americanas, os bloqueios de protestos pelas estradas brasileiras, tudo ficou em segundo plano. A hora era de falar e reverenciar a memória e o riquíssimo legado da baiana soteropolitana Maria das Graças Costas Penna Burgos, nascida em 26 de setembro de 1945.
Cantar foi a vocação única de Gal Costa; foi o que ela fez de melhor.
Nascida no bairro da Graça, em Salvador, a pequena Gracinha, filha de Mariah e Arnaldo, seu pai ausente, levava uma panela ao banheiro para ter o retorno da própria voz. Ainda criança, estimulada pela mãe, queria ser uma estrela de rádio. Em 1958, sua técnica vocal mudaria com a experiência de ouvir João Gilberto, em “Chega de Saudade”.
No início da década de 1960 a sorte bateu à porta. Convocada às pressas pelo colunista social Sylvio Lamenha, Gal teve seu primeiro encontro com o ídolo João Gilberto. “Gracinha, você é a maior cantora do Brasil”.
Rebatizada de Gal Costa, ela não demoraria a confirmar a profecia de João: do começo na Bossa-nova, Gal adentrou o Tropicalismo ao lado de Caetano Veloso e Gilberto Gil, seguiu pelos caminhos da MPB e do pop, e se estabeleceu como uma das maiores vozes femininas em um país de enormes vozes femininas.
Consagrada por sua interpretação cristalina, que pôs a serviço dos maiores compositores da música brasileira (Dorival Caymmi, Ary Barroso e Tom Jobim mereceram dela álbuns inteiros).
Em poucos anos, a cantora que estreara em LP em 1967 (com “Domingo”, ao lado de Caetano Veloso), ainda bossanovista e comportada, soltou voz e cabelos, aderiu às guitarras elétricas e adotou o ideário hippie nas areias de Ipanema, nas Dunas do Barato, que em 1971 passaram a ser conhecidas como as “Dunas da Gal”.
Ao lado de Caetano, Gil, Maria Bethânia e Tom Zé, seus colegas de Salvador, Gal estreou em 1964 o espetáculo “Nós, por exemplo…”, que inaugurou o Teatro Vila Velha. Logo ela estava indo para o Rio, nos passos de Bethânia, que em 1965 assumiu o posto de Nara Leão no musical “Opinião”. A primeira gravação em disco se deu naquele ano, no LP de estreia da irmã de Caetano, no duo “Sol negro” (de Caetano. Em seguida, Gal gravou o primeiro compacto, com “Eu vim da Bahia” (de Gil) e “Sim, foi você” (de Caetano).
Gal Costa também se destacou como um ícone da revolução comportamental. No Rio de Janeiro, a cantora foi um mito devorador, namorava homens e mulheres, caía no mar e expandia as fronteiras de uma mulher liberada. Suas vivências solares, virou sex symbol para a juventude dourada de Ipanema. Época do desbunde. Sem ser ativista, ganhava expressão política.
Gal Costa passou por diferente gêneros musicais, gravou desde baião, com o rei Luiz Gonzaga, a samba, bossa nova, MPB. Interpretou Roberto Carlos, Rita Lee, Lupicínio Rodrigues, Ari Barroso, Cazuza, Tim Maia, Pablo Milanez e Mercedes Sosa. Além de Chico Buarque de Holanda. E, sempre inovando, gravou ‘Vapor Barato’ com Zeca Baleiro, e ultimamente Criolo, Annita, Tim Bernardes e Seu Jorge. Até sofrência ela gravou com Marília Mendonça na deliciosa “Cuidando de longe”. Por uma dessas tristes coincidências, Gal morreu exatamente um ano após a trágica e precoce morte de Marília Mendonça em 2021, aos 26 anos.
Ela aguardava o lançamento de um filme baseado em sua vida, “Meu Nome É Gal”, dirigido por Dandara Ferreira e Lô Politi, protagonizado pela atriz Sophie Charlotte. O longa deve ser lançado em 2023. Gal Costa deixa o filho, Gabriel, e sua companheira e empresária, Wilma Petrillo.
Gal Costa tangenciou minha vida em diferentes épocas. Em 1973 com o disco “Índia” foi o primeiro que adquiri. O disco, na época LP, chamava minha atenção não só pelas músicas, mas também pela maravilhosa capa, mostrando as belas curvas e um minúsculo biquíni vermelho. Aos 13 anos, testosterona saindo pelos ouvidos, a fotografia da capa me fazia viajar na imaginação. A fotografia da capa é do falecido fotógrafo das estrelas Antônio Guerreiro.
Tive o prazer de assistir a um show do quarteto baiano “Doce bárbaros”, Gal no meio, no Canecão, no RJ. Um dos melhores shows a que assisti na vida.
Descanse em Paz Gal, Fatal, Legal, Tropical, Plural, enfim, Total. Seu nome é Gal. Meu bem, meu mal. Atemporal, fenomenal. Na vitrola toca Gal, a voz de cristal.
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(*) Luiz Thadeu Nunes e Silva é engenheiro agrônomo, palestrante, cronista, escritor e viajante. Autor do livro “Das muletas fiz asas”; o latino americano mais viajado do mundo com mobilidade reduzida. Visitou 151 países em todos os continentes da terra.