“Prefiro morrer sozinho, a levar alguém comigo. Não quero mais trabalhar transportando passageiros, pois é muito arriscado, muito perigoso”. O depoimento é do ex-mototaxista, João Paulo de Jesus, 40 anos, conhecido como JP, que depois de um acidente com a moto que pilotava, em setembro de 2018, ficou paraplégico. Episódios graves como esses não inibem a proliferação do transporte clandestino de passageiros, tanto em motos, como em veículos. E a tímida fiscalização contribui para o crescimento no número de carros fazendo lotação com os motoristas, literalmente, tirando os passageiros dos pontos de ônibus. Esses tipos de transportes vêm causando sérios prejuízos à saúde e às finanças das pessoas.
Para a superintendente do Sindicato das Empresas de Transportes de Passageiros do Município de Aracaju (Setransp), Raíssa Cruz, o transporte clandestino, realmente, “desencadeia uma série de prejuízos que afeta diretamente a vida das pessoas e da mobilidade urbana”. Ela destaca a falta de medidas de segurança nos veículos. E quanto aos seus condutores, a incidência no aumento dos acidentes de trânsito, influencia no número de internações nos hospitais públicos.
O JP, que hoje trava uma contenda jurídica com a Prefeitura de Aracaju, porque precisa de fisioterapia; com o Governo do Estado, porque diz que um erro médico, numa anestesia na coluna, o deixou paraplégico, e com o motorista do carro que o atropelou e não prestou socorro, é um exemplo, do quanto é grande a ocorrência de acidentes envolvendo motocicletas em Aracaju. Usando fraldas descartáveis e recebendo apenas um salário mínimo, por mês, JP tem a ajuda de familiares e amigos.
O ex-mototaxista disse, ainda, que, por conta do acidente que sofreu não quer mais transportar passageiros e, também, por ter medo de assaltos. No entanto, defende a legalização do serviço de mototáxis. “Eu trabalhava como eles e não sou contra eles. Quero que eles trabalhem sem medo, porque o medo é que provoca acidentes”, reforçou. “Eu é que não quero mais trabalhar com passageiro, porque não quero que ninguém passe o que eu passei, nem todo mundo vai suportar esse tempo todo que estou aguentando. Todo mundo sabe que moto é perigoso”, frisou.
Embora o acidente de JP tenha ocorrido em 2018, ele afirma que até agora não recebeu o seguro DPVAT (Danos Pessoais por Veículos Automotores Terrestres). No ano em que ele sofreu o acidente, 320 pessoas morreram em Sergipe quando pilotavam ou iam de carona numa moto. Um levantamento do Hospital de Urgência de Sergipe (Huse), mostra que somente nos primeiros dias de janeiro deste ano, 152 pessoas foram vítimas de acidentes (número de 1º de janeiro até a manhã da quinta-feira, 16). Tanto a Líder como o Huse não têm como informar se as vítimas eram mototaxistas, passageiros ou motoboys.
Lucros e queda
Além dos clandestinos se envolverem em acidentes no trânsito da capital, os motorista e mototaxistas só atendem em áreas de interesse lucrativo. E, ao contrário das empresas, não dão direito à gratuidade. “Sem falar na contribuição de congestionamento nas ruas e, ainda, na queda significativa no número de passageiros no transporte, trazendo reflexos, inclusive na tarifa de ônibus”, explicou.
O aumento do transporte clandestino preocupa, além do Setransp, o Sindicato dos Trabalhadores em Transporte Rodoviário do Município de Aracaju (Sintra). Segundo o presidente do Sintra, Miguel Belarmino da Paixão, “a categoria sente a saúde financeira piorar anualmente, por conta dessa proliferação”, ao frisar que aumenta o desemprego e diminuiu o faturamento das empresas, sendo que “algumas delas já estão em dificuldade”.
Há 10 anos dirigindo o Sintra, Miguel Belarmino afirmou que nesse período percebeu que as profissões de motoristas e cobradores entraram em colapso. “Eram quatro mil motoristas e cobradores há 10 anos, mas hoje somos menos de 2.400”, lamentou. Com a categoria reduzida e as empresas, segundo ele, passando por dificuldades, a categoria vai enfrentar um problema, em março, quando negociar o piso salarial. “Há empresas agonizando e não sei como vai ser o diálogo para aumentar o salário de motoristas e cobradores, que hoje recebem em torno de R$ 3 mil”.
A superintendente do Setransp acena com números nada animadores para Belarmino. Nos últimos cinco anos, o número de passageiros pagantes em Aracaju caiu 31,49%, enquanto que a despesa, somente com combustível, subiu 45%. “Nesse mesmo período, o número de gratuidades aumentou 80,87%. O setor de transporte coletivo vive, então, uma realidade de desequilíbrio econômico, e isso acaba comprometendo a capacidade de investimento das empresas de ônibus. Muitas capitais estão contando com a desoneração dos custos do serviço do transporte por parte do Estado e do município para contribuir com o desenvolvimento do setor”, explicou Raíssa.
Ela adianta que o Setransp aguarda um posicionamento da Prefeitura Municipal de Aracaju para o aumento da tarifa, hoje custando R$ 4. “O reajuste tarifário não é um desejo das empresas de ônibus, até porque elas sabem que o valor da tarifa pode ser um implicativo na atração do passageiro ao transporte coletivo, mas é uma necessidade para que o sistema possa continuar cumprindo com suas obrigações junto a fornecedores e funcionários, inclusive com a renovação da frota para melhor servir a população”, explicou.
Tirando passageiros
Trabalhadores e empresários do setor de transporte veem, com perplexidade, o crescimento de motoristas e mototaxistas clandestinos em Aracaju. Traduzindo isso em números é que se percebe o tamanho do problema. Enquanto que na capital há 35 anos a frota é de 2.080 táxis, estima-se que os carros clandestinos chegam a 12 mil. E, enquanto sete empresas compõem o sistema integrado, com 102 linhas e 12 corujões circulando em Aracaju e região metropolitana, os mototaxistas somam cerca de 3 mil, distribuídos em 80 centrais que, via rádio os envia para uma corrida.
O número só é expressivo, em parte, para o Setransp, quando contabilizado o de passageiros transportados pelos ônibus: em 2019, o total de transportados correspondeu a mais de 181 mil passageiros por dia. Mas este número, comparado a 2014, mostra uma queda de 31,70% passageiros. Mesmo com essa queda e aumento dos clandestinos, o Setransp não retirou linhas. “A operação do serviço de transporte público coletivo continua regular, inclusive com novas linhas, mesmo com o número de passageiros apresentando queda”, garantiu Raíssa Cruz.
Despreocupados com o que acontece no setor de transportes – seja com os motoristas de ônibus, seja com os taxistas, os mototaxistas e motoristas clandestinos disputam, despreocupados, os passageiros, já que o combate da Superintendência Municipal de Transportes e Trânsito (SMTT) é ineficiente.
Um dos exemplos desta disputa ocorre, todos os dias, na avenida Otoniel Dórea onde há um ponto de ônibus próximo ao Mercado Municipal Antônio Franco. Com planilhas nas mãos, os motoristas de carros clandestinos chamam os passageiros para os mais diversos pontos da cidade. Eles ocupam as vagas nos estacionamentos que, em tese, deveriam atender aos consumidores que se dirigem aos mercados para as compras, gerando problemas para outras pessoas. Já os mototaxistas estacionam as motos atrás do ponto de ônibus e, à sombra de uma árvore, aguardam os passageiros.
A estudante Jéssica Souza de Oliveira foi uma das pessoas convencida a viajar com um clandestino e pagou R$ 4 para uma corrida da avenida Otoniel Dória até as proximidades do Parque da Sementeira, na avenida Beira Mar. Essa foi uma cena que deixou revoltado Gilvan Alves Santos, 55 anos, 16 deles como taxista. “Eu passo o dia inteiro para fazer duas ou três corridas, sou legalizado, pago imposto e esses caras (clandestinos) ficam tomando nosso lugar e ninguém faz nada”, desabafou.
“Os clandestinos estão deitando e rolando. Cada grupo tem um estacionamento na cidade. Na rua São Cristóvão tem dois, na rua Geru tem outro, mas ninguém fiscaliza, ninguém faz nada. Eles estão lá escancaradamente”, disse o presidente do Sindicato dos Taxistas, Manildo Costa.
A SMTT, por sua vez, disse que até outubro do ano passado, 100 motoristas foram multados por fazerem transporte irregular de passageiros, enquanto que em 2018 foram 114 autuações.
Colisões
Os prejuízos causados por mototaxistas e motoristas clandestinos são uma terrível rotina. Na quarta-feira, 15, à tarde, na praça João XXIII, centro, para não ser atropelada por um mototaxista ou motoboy, uma pedestre correu e se bateu na lateral de um carro, caindo desmaiada. Em poucos minutos, uma ambulância da Serviço Móvel de Urgência (Samu) chegou e a levou para o Huse. O motorista do carro acompanhou tudo, atônito.
A proliferação de motoristas clandestinos é em toda cidade. No bairro Jardins, por exemplo, um deles parou em todos os pontos de ônibus oferecendo-se para levar passageiros. Essa parada, ainda que rápida, causou engarrafamento na avenida Sílvio Teixeira.
O caótico trânsito de Aracaju por pouco não vitimou a estudante Maryana Peggy de Oliveira. Ela conta que no momento que ia entrando com seu carro no condomínio onde mora, “um mototáxi me surpreendeu ao ultrapassar com velocidade pelo lado direito de outro carro e atingir a frente do meu. Além de irresponsável na velocidade e na ultrapassagem pelo lado errado, ele estava com uma passageira, que foi lançada em cima do meu carro. Levei um susto enorme e também um prejuízo de R$ 1.300 reais, porque o mototaxista não se responsabilizou pelo ocorrido”.
Acidentes como o narrado por Maryana Peggy levam muitas pessoas, depois de medicadas ao Huse, a fazer fisioterapia no Centro Especializado de Reabilitação, da Prefeitura Municipal de Aracaju, especializado em reabilitação de fraturas e amputações. O fisioterapeuta e professor da Universidade Tiradentes, Felipe Lima de Cerqueira, disse que 24 dos seus pacientes no centro, 12 são vítimas de acidentes de moto.
No geral, de cada 10 pacientes que chegam para fisioterapia no centro, que fica no Siqueira Campos, oito são de acidentes de moto. Esses pacientes são distribuídos entre os demais fisioterapeutas na unidade. “A fratura de membros inferiores é a mais comum e deixa sequela”, disse Felipe.
Exatamente como aconteceu com JP que, mesmo paraplégico e próximo a se submeter a uma nova cirurgia, disse que se pudesse ainda teria uma moto nova, mas só para passear. Na sua experiência, como mototaxista e também entregador de pizza, ele tirou grandes lições e faz um alerta aos que ainda se aventuram pilotando uma moto pela cidade: “de moto, quando você não atropela alguém, alguém lhe atropela”. Ele lembra que saiu de uma rua vicinal para pegar a principal, foi colhido pelo carro, mas até hoje não sabe de quem era a preferencial, pois o local não era sinalizado. Independente de qualquer coisa, ele se resigna: “agora estou nessa situação”.