Desde ontem passou a vigorar no Brasil, o salário mínimo de R 1.045, que significa R$ 6,00 a mais do que havia sido anunciado no dia 1º de janeiro, que era de R$ 1.039. Para o professor doutor da Universidade Tiradentes (Unit) e procurador do Ministério Público do Trabalho, Ricardo Carneiro, esse impacto é pequeno dentro do ponto de vista financeiro. Essa questão salarial foi, apenas um dos assuntos discutidos com Ricardo Carneiro, que fez uma análise das reformas previdenciária e trabalhistas, também em vigor no país. Ele constata que, somente no futuro é que a população brasileira, quando estiver prestes a se aposentar com essas novas regras, é que vai se dar conta do que aconteceu e aí, será tarde. Para ele, nós “exercemos muito pouco a nossa cidadania”, pois reformas como estas deveriam ser amplamente discutidas. Nem mesmo quando há consulta popular a determinado projeto de lei, através da internet, poucos participam. “Na Espanha, onde fiz meu doutorado, os canais de televisão debatem exaustivamente esses assuntos”, observa. Esta semana, no intervalo entre um compromisso e outro na Unit, Ricardo Carneiro conversou com o Só Sergipe.
RICARDO CARNEIRO – Do ponto de vista econômico muda muito pouco ou quase nada, pois o que R$ 6 interfere na mesa de um trabalhador é bem pouco diante do custo de vida. Mas existe um aspecto psicológico, social, que é o seguinte: verificado que o índice do INPC não era originalmente o que o governo imaginou, ele fez a adequação do valor para que, pelo menos, esse índice que historicamente nos últimos anos quando nada se dá em matéria de salário mínimo, pelo menos se atualiza pelo INPC, e foi mantido. Fica a sensação da população de que perda do poder de compra não aconteceu.
SS – Isso aumenta para quem paga o salário mínimo? Os empregadores?
RC – Para os empregadores privados vai haver repercussão dos encargos sociais, mas é bem pouca. A não ser para os grandes empregadores, para estes vai haver uma repercussão. Mas para o governo federal, dentro do ponto de vista pecuniário, é bem maior porque os vários benefícios sociais concedidos são atrelados ao salário mínimo. Quando o salário aumenta, todos os benefícios – de prestação continuada, alguns de ordens securitárias do INSS – também são reajustados. Especialmente para o governo federal esse aumento, por mínimo que seja, tem uma repercussão significativa. Para os empregadores são R$ 6 mais os encargos sociais que deles serão derivados, mas não se pode dizer que é algo tão significativo.
SS – O Dieese divulga o valor do salário mínimo baseado na Constituição. O ideal, agora, segundo o Dieese, seria um salário de R$ 4.342,57. Nesse aspecto, nunca se cumpriu a Constituição no Brasil.
RC – É. Inclusive, dentro do ponto de vista formal, há alguns anos, o Supremo Tribunal Federal (STF) foi instado a se manifestar sobre a constitucionalidade do salário mínimo que nunca atendeu aos propósitos para os quais foi criado. Mas, efetivamente, em muitos países, o salário mínimo não atende a esses propósitos. E se firmou dentro do STF uma jurisprudência de que como se trata de um direito fundamental, social, do tipo prestacional, ou seja, que depende de uma intervenção ativa do Estado, não haveria como declarar a inconstitucionalidade da norma. Na época, o que o STF fez foi remeter ao Congresso Nacional para que apreciasse, editasse e efetuasse os trabalhos legislativos a fim de gerar uma outra norma que implementasse um salário mínimo maior. O que na época não foi feito.
SS – Resolvida essa questão do mínimo, já tivemos reformas previdenciária e trabalhista que dividiu opiniões, e falta a tributária. Será que ela sai? RC – Está em debate no Congresso Nacional. Eu vejo essas reformas como necessárias, mas, infelizmente, algumas soluções apresentadas a partir dos textos normativos são incoerentes. Por exemplo: na reforma trabalhista há uma facilitação na legislação aprovada para a informalidade. Ou seja, você facilita a contratação de pessoas fora da malha regular de empregados, e quando você autoriza muita gente autônoma, sem vínculo empregatício, na mera condição de prestador de serviço, para fins previdenciários, sem desmerecê-los, você vai ter um recolhimento muito menor. Então, você tem uma reforma trabalhista que dialoga pouco com a previdenciária, pois ela apertou os benefícios que os trabalhadores brasileiros receberiam, em grande medida, porque não tinha receita. O problema é que essa receita é formada, na maioria das vezes, pelo emprego formal. E quando você cria facilitadores para esse emprego formal deixar de existir, cria um sistema incoerente. O emprego formal é a principal fonte de receita para previdência. Se você facilita que o emprego formal seja reduzido, diminui a receita e a conta vai continuar a não fechar. SS – E quando essa conta não fecha, a população é cobrada e sofre… RC – Provavelmente, daqui a cinco ou 10 anos teremos uma nova reforma da previdência. Porque outro aspecto pouco trabalhado é a falta de ênfase na empregabilidade profissional. Por exemplo: quando a legislação incentivou que a terceirização seja ampla e irrestrita. Quando faz isso, cria um grupo de trabalhadores terceirizados pouco treinados. Porque a empresa terceirizada só treina seus trabalhadores quando tem um contrato. Enquanto não tem contrato, não tem trabalhadores porque é inviável tê-los. Quando você tem o contrato, tem trabalhadores que não foram devidamente treinados. Eles são muito mais suscetíveis a doenças e acidentes de trabalho do que os já preparados. E uma pessoa que sofre um acidente ou uma doença do trabalho, vai parar de produzir, de recolher a previdência e receber os benefícios. Muitas vezes, até 75 a 80 anos. Quando se diz que a previdência é deficitária, uma das grandes fontes do déficit é o número gigantesco que se paga por conta de acidentes e doenças do trabalho. Nós somos campeoníssimos nisso. Automaticamente, se coloca alguém em tenra idade para receber esse benefício, deixa de ter recolhimento e paga benefício antes da hora. Isso desequilibra a balança. SS -O senhor tem esses números em Sergipe? RC – Eu não os tenho em mãos, no momento, mas posso lhe dizer que o retrato de Sergipe não é muito diferente com relação ao do Brasil. Há ainda um número muito grande aqui de acidente e de pessoas que adoecem. E o que é pior, em idade muito jovem, quando poderiam estar contribuindo, teriam numa sequência laboral natural, um acréscimo salarial. Porque, quanto mais tempo você trabalha, a tendência é ter um salário melhor. Em Sergipe temos, infelizmente, um índice bastante grande de acidentes de trabalho.
SS – Por falar em terceirização, o governo de Sergipe faz isso na Secretaria de Justiça, com presídios terceirizados. E há uma guerra muito grande do Sindicato dos Policiais Penais para reverter essa situação.
RC – Que fique claro que eu não sou refratário às mudanças que o mundo do trabalho propicia. E a terceirização nasce com a ideia de que empresas especializadas em determinadas áreas substituam, dentro de determinadas atividades econômicas, a zona que não seja de expertise de quem as explora. Por exemplo: eu sou dono de uma indústria que produz carro e não faz sentido que quem faça serviços gerais, sejam empregados meus. Então, eu terceirizo. O grande problema é quando começa a terceirizar sua própria área essencial, a atividade fim. O STF disse que não há vedação no nosso ordenamento jurídico para que essa atividade fim seja terceirizada. Mas você cria verdadeiros campos de guerras em algumas atividades, principalmente, quando se tem pessoas contratadas diretamente e pessoas terceirizadas fazendo o mesmo serviço. Ao invés de ter uma consciência de classe naquele espaço, você tem trabalhadores separados que fazem o mesmo serviço, sempre com remunerações de treinamentos distintos.
SS – O presidente Jair Bolsonaro, logo quando voltou da Índia, já sinalizou reforma tributária. O senhor acredita que ela saia, ainda este ano?
RC – Seguramente, lhe digo, que para a reforma tributária acontecer, o governo terá que trabalhar muito no Congresso Nacional. Grande parte do seu capital vem sendo gasto nessa reforma. Primeiro, será um trabalho de aproximação muito forte. Acho que não sairá tão rápido como a trabalhista e previdenciária, porque naturalmente, elas desgastam o capital político do governo federal. A tributária é uma necessidade, mas será mais maturada do que foi a trabalhista, fruto de muito pouca discussão.
SS – Não houve um diálogo aberto para as reformas trabalhista e previdenciária.
RC – A reforma previdenciária foi um pouco mais discutida. Acho que o presidente do Congresso Nacional, Rodrigo Maia, trouxe para si um certo protagonismo na reforma previdenciária e, por conta disso, foi melhor trabalhada. No caso da reforma trabalhista, ela é basicamente talhada por uma lei ordinária pouco discutida (a 13.467 de 2017) e por medidas provisórias. Tanto que algumas medidas provisórias, fruto dessa pouca discussão, como a 808, não virou lei.
SS – O que mais se vê no governo Bolsonaro são medidas provisórias que caducam. E parece-me que fica nisso uma insegurança jurídica.
RC – Verdade. Um absurdo. Lembro-me dos garçons que trabalham com gorjeta, cuja legislação vai e volta o tempo todo e hoje a matéria é regulamentada por acordo e convenção coletiva dos restaurantes e dos hotéis com seus profissionais. Hoje o que temos do texto da CLT é uma grande lacuna, já que a medida provisória 808 que regulamentava isso, caducou.
SS – Além disso, vemos também a interferência constante do STF no Governo Federal.
RC –É, mas essa interferência do STF tem previsão na Constituição e, em certa medida, se faz necessária diante de tanta provocação. O STF não age de ofício, mas sim provocado. Temos uma cultura um tanto imediatista: questionamos uma lei pouco discutida e se espera ser publicada para conseguir a inconstitucionalidade dela no STF. Falta, talvez, um processo de discussão mais ampla das normas que são aplicadas no país. O Congresso Nacional tem um poder muito grande; o país produz muita norma. Ninguém me diga que o Congresso não trabalha. Você pode questionar se ele trabalha sempre bem. Talvez seja o caso da sociedade fazer com que as leis saiam com um pouco mais de maturidade, de reflexão, como acontece em outros países. Quando uma legislação vai ser aprovada na Espanha, onde fiz meu doutorado, programas de rede aberta discutem um projeto de lei. Aqui no Brasil, não temos essa cultura, mas que pode ser implementada. O povo precisa participar, levar mais a sério quando tem a possibilidade de se manifestar na internet, sobre determinado projeto de lei. O número de adesão ou rechaços, quando se tem consulta pública, é muito pequeno. Exercemos muito pouco a nossa cidadania.
SS – Quando o senhor fala da participação popular, vemos na França a mobilização por conta da reforma da previdência. O senhor acha que falta mais consciência política do brasileiro?
RC – Eu acho que falta divulgação. Por exemplo, a reforma da previdência é altamente complexa. Estamos fazendo um serviço de utilidade pública, quando tornamos mais palatável em relação esses problemas. Talvez, antes mesmo de ser aprovada, a reforma da previdência deveria ser debatida. Por isso que na França, quando se cogita uma modificação, já tem mobilização, greve, porque isso é difundido. As necessidades do Brasil eram prementes, mas deveriam ser discutidas com o povo brasileiro. O brasileiro ainda não percebeu os eventuais benefícios, mas, principalmente, não teve noção dos prejuízos que ele há de ter por conta da reforma previdenciária.
SS – Quais são esses prejuízos?
RC – São muitos. Criamos a visão de que quem entra no serviço público terá uma aposentadoria maravilhosa. Mas quem entra agora terá uma aposentadoria que cairá no regime geral. O prazo para se aposentar aumentou muito, baseado em aspectos etários que foram fixados em debates curtos. Esse aumento da faixa etária foi baseado em algum estudo, de algum órgão de saúde, que comprove um ganho na média etária da população brasileira? Ou número que foi possível aprovar? Acho que a reforma da previdência deveria ser mais discutida. Há tantas perguntas que, seguramente, só vão calar no fundo do cidadão quando a aposentadoria se aproximar. Mas aí, talvez, seja tarde.
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