Léo Mittaraquis (*)
Francesca Duranti, nascida Francesca Rossi, tornou-se uma figura proeminente na literatura italiana. Segundo críticos da sua obra, Duranti manifesta uma prosa notadamente perspicaz e emocional. Seus livros continuam a ser lidos e apreciados pelo público, tanto na Itália como em outros países, sendo muito bem aceita na França, na Alemanha e na Espanha. É muito pouco conhecida entre leitores brasileiros.
O que, desde o primeiro encontro, no início dos anos noventa, exerce, ainda, forte atração em mim, enquanto leitor e crítico, é sua sensível capacidade de capturar as complexidades das emoções e relacionamentos humanos.
O título que lhes trago, neste sábado, é “A Casa do lago da Lua”, publicado no Brasil, pela Paz e Terra, em 1988.
Eu a li com atenção e prazer. Leitura que me mesmerizou já nas primeiras páginas.
E do que trata o livro?
O personagem central, não necessariamente o principal, pois, o “peso” dos demais não se revela menor que o dele, é Fabrizio Garrone. Trabalha como tradutor, é genovês, mas atua com mais constância em Milão. É um experiente conhecedor da língua alemã. Acaba de entregar à editora a tradução de um livro de Theodor Fontane.
Em tempo: o autor traduzido é, ou, pelo menos foi real. Existiu e marcou época, com sua produção literária ombreando-se a Goethe e Thomas Mann [foi muito elogiado por este]. Recomendo, ‘en passant’, de Theodor Fontane, sua obra magna “Effi Briest”, editora Estação Liberdade, 2013.
Voltemos ao tradutor, Fabrizio Garrone e ao enredo básico de “A Casa do Lago da Lua”.
Após entregar o trabalho de tradução à sua namorada Fúlvia, funcionária da editora da qual Mário, seu amigo é proprietário, Fabrizio sai a passeio, por um parque, e busca distração, descanso mental, caminhando, sem destino determinado, por entre barracas que vendem livros usados. Funcionam de forma semelhante aos sebos.
Numa das barracas, o tradutor encontra um livro, publicado pela Elseviers’ Printing House, pouco volumoso, com textos ensaísticos de Giorgio Pasquali [especialista em História da Literatura, nota do articulista]. Sobre edições desta editora, ressalto, e posso afirmá-lo como crítico, que a qualidade das impressões e a seleção cuidadosa dos temas e autores, levaram que seus títulos também passassem a ser denominados elseverianos.
Retorno ao livro encontrado por Garrone e que traz um ensaio de Pasquale: de início pouco interessante. Mas, ao prosseguir, o tradutor toma ciência da existência de um romance intitulado “A Casa no Lago da Lua”, o qual foi publicado em 1913, por um autor vienense pouco conhecido, de nome Fritz Oberhofer.
Segundo Pasquali, o livro é uma pequena e perfeita obra-prima. A descoberta galvaniza Fabrizio que se propõe a encontrar o romance, traduzi-lo e divulgá-lo.
Esta é, de forma um tanto canhestra, a síntese de toda a história. Mas, bem o sabe o eventual leitor deste fastidioso artigo crítico, há sempre mais e mais.
E o mais segue pelo que tornar-se-á a obsessão de Garrone. E qualquer proximidade temática com “O Nome da Rosa” [Umberto Eco] e “A Caverna das Ideias” [Roberto Somoza], não será, de maneira alguma, mera coincidência.
Senão, vejamos: Pasquale menciona uma edição, na verdade, a única, de 1914, ou seja, no início da Primeira Grande Guerra. Não mais do que cem exemplares, dado ao sucesso incerto da obra.
Frabrizio Garrone, o tradutor, deixa-se levar pela possibilidade de ser ele a devolver ao mundo esta obra que libertará das trevas. Realização esta que o fará alçar o status de competente germanista. Mais ainda do que já é: “A casa do lago da Lua havia desaparecido, e de Fritz Oberhofer ninguém nada sabia. Poderia procurar em santa paz”.
Mas a impressão modesta se deu, como já observado, no primeiro ano da Primeira Grande Guerra. O terrível conflito armado apagou os traços de existência deste autor. Então, Garrone propõe-se a recuperá-lo. Para tanto, empreende viagem até um local distante da Áustria em busca do lugar que inspirou Oberhofer.
Neste ponto, o leitor, se atento, percebe a sutil manobra da escritora, Francesca Duranti. Ao invés de manter Garrone numa bem fundamentada realidade, faz com que ele se veja enredado numa busca um tanto insólita.
Ora, o autor alemão, Fontane, que teve uma de suas obras traduzidas por Garrone, a qual já está, mediante as mãos de Fúlvia, nas mãos do editor, é um escritor realista. O escritor alemão traduzido pertence àquela tradição amplamente definida do realismo do século XIX, que visava a representação de indivíduos de origens sociais identificáveis dentro de um tempo e lugar específicos. Em geral, os temas de Fontane, segundo estudiosos, evoluíram da representação do conflito pessoal de seus primeiros romances para a representação do meio social. Ou, do modo crítico como vejo, uma mescla das duas perspectivas.
Eis, então, o jogo narrativo da autora – quase imperceptível transição.
Ah, o livro é dividido em três partes: Fúlvia, Maria e Petra.
Sugiro que o privilegiado leitor que possua ou venha a possuir a obra leia com atenção e busque entender os delicados fios que interligam esses nomes.
Fúlvia, cujo nome remete ao amarelo, ao dourado, ao loiro, de fato, traz luz às circunstâncias que acompanham a narrativa. É segura, dotada de, apesar de jovem, grande maturidade. É o contraponto amoroso e existencial de Garrone. O tradutor é instável, inseguro e alimenta algo de fobia quanto a relações conjugais duradouras.
Francesca Duranti faz dos seus personagens instrumentos precisos. Constrói, para todos, inclusive a personagem Petra, inventada pelo personagem Garrone, sintéticas genealogias, trajetórias paralelas de vida, distribuindo, com equidade, partes destas ao longo do romance. Note-se que Duranti apresenta todos os atores, mas, no que concerne a Fúlvia, não obstante comentar, descrever o perfil desta em diversos trechos, preocupa-se em, ao fim das primeiras quarenta páginas, defini-la com ênfase:
“Era o passo, seguro e vigoroso, revelador de uma profunda autonomia, mas não abrandado pela sola de borracha das protofeministas; era a solidez arrogante dos seus membros; era a luminosidade de seus cabelos; era a propriedade infalível dos seus gestos”.
O conceitual equilíbrio entre corpo e alma desta personagem ressalta a moderada frieza de Mário, o editor, amigo de Garrone, a visceral indefinição quanto a tudo deste último e as características, em menor ou maior grau, dos demais perfis presentes na história.
Quero dizer: todos os demais o são em si a partir de Fúlvia.
Até mesmo Fritz Oberhofer [e Petra, sobre quem tratarei adiante], o autor do livro “A Casa do lago da Lua”, ou, no original alemão, idioma que Garrone domina com mestria, “Das Haus am Mondsee”, ainda que morto no início do século vinte, no teatro de guerra que tomava forma, é elaborado, pela autora, Duranti, a partir de Fúlvia.
E quanto a Maria Lettner? Personagem inventada pela mente um tanto doentia de Fabrício Garrone, tradutor de Oberhofer e, por insistente sugestão de Mário, o editor, também biógrafo do autor alemão?
Sobre Mário, teço breve reflexão: proprietário da editora que publica as obras traduzidas, por Garrone, de outros idiomas para o italiano, está convicto de que uma biografia do autor, Fritz Oberhofer, escrita pelo tradutor da obra deste, promoverá ainda mais o romance, consequentemente, aumentando as vendas que já se mostraram mais que satisfatórias.
Mário detém sensibilidade e experiência para reconhecer uma obra produzida ao nível da excelência, mas está longe de se deixar levar pelo idealismo, pela estética romântica, ao modo germânico, num, como diria Henri Peyer, “pelo tumulto revolucionário, promovido por jovens temerários, e de curta duração”. Tanto assim que reprova, sem reservas, o prefácio escrito por Garrone para “A Casa do Lago da Lua”.
Sabe do valor histórico, cultural, estético, do movimento, o Romantismo. Não o despreza, em absoluto. É culto o bastante para compreender o papel do fenômeno na história da nossa civilização ocidental, mas também é um crítico, com sóbrias inclinações para o realismo tão bem representado por Theodore Fontane, autor, como já observei antes, que manifesta em suas obras a necessidade de retratar a vida, os problemas e costumes das classes média e baixa não inspirada em modelos do passado.
Fabrício Garrone escreve a biografia. No processo depara-se com um pequeno problema: não há informações sobre os últimos três anos de vida de Oberhofer, justamente os anos durante os quais escreveu “A Casa do Lago da Lua”. Por conta própria, Fabrizio decide fantasiar os detalhes, concebe uma figura feminina, Maria Lettner. Afirma ser ela a inspiração do romancista.
Eis, no modo como entendo, o artifício da representação: o inventor de Maria Lettner parece crer que sua criação manter-se-á circunscrita ao corpo de texto produzido por ela. Ledo engano. Tal como Hamlet, de Shakespeare, na acurada observação de Harold Bloom, Lettner torna-se “um espírito que se estende por toda a parte, um espírito ao qual nada nem ninguém consegue impor limites”.
Francesca Duranti, ciente da realidade operatória também presente na relação autora e obra, demonstra cuidado em elaborar a manufatura ‘ser’ Maria Lettner por Garrone, e ei-la, metapersonagem, por pouco Lettner não se torna autoconsciente. Quando da publicação da biografia, a “inexistente” amante do desconhecido Oberhofer suscita polêmicas, leitores comuns e teóricos da literatura tomam partido. A biografia provoca desejo intenso de se conhecer mais sobre a mulher. Surgem absurdas notícias nos jornais sobre pessoas que afirmam tê-la conhecido. Garrone, cada vez mais temeroso sente que ela está ganhando vida própria. Lettner ameaça ofuscar Fritz Oberhofer e, consequentemente, perturbar o fluxo de venda do romance traduzido que viera a público.
E eis que, quando o tradutor pensa que as coisas não podem se tornar mais estranhas, recebe o telefonema de uma antiga moradora de Mondsee, local onde se encontra o “lago da Lua”, a qual afirma que Maria Letnner fora sua avó. E que, pasme-se, detém consigo a correspondência [cartas] de Oberhofer e Lettner.
Provavelmente é um truque, possivelmente uma chantagem, mas Garrone decide vê-la mesmo assim.
O que se seguirá, daí por diante, surpreende e emociona o leitor. A trama dar-se-á em, digamos, plano distintos, no tempo e no espaço. Uma certa e bem moderada dose de irrealidade sem que se perca a coerência. Vale dizer: sem pretensões. E recorrendo este crítico, aqui, às sensatas observações de José Guilherme Merquior, não se nota, na obra, coisa alguma do enigmatismo benjaminiano.
Minha leitura crítica da obra, notadamente dos dois últimos capítulos, me leva a concluir que Francesca Duranti não joga com o leitor de forma a tão somente o lançar no entediante e desgastado labirinto de significados sem o esteio adequado. Duranti não se entrega ao mero exercício formal. Quem se dispor a lê-la deve, e recomendo com veemência, evitar “entender” o livro como coisa pertencente ao gênero [se é convincente denominá-lo assim] realismo mágico. Creia-me o leitor, isto não cabe.
E mais: os fundamentos morais e psicológicos se fazem sentir, é certo. Porém, não é uma característica original deste livro. Os valores de conduta são aspectos comuns nas produções literárias. A parafrasear, desajeitado, Umberto Eco, digo que “A casa do Lago da Lua” é, antes de tudo, uma história de livros e não de tão somente torpezas ou delírios cotidianos.
Os dois últimos capítulos testemunham a preocupação e a competência da autora em conceber, com máxima habilidade, um desfecho inesperado. Nada, ao longo das páginas anteriores, nos induz a especular sobre o final. E, caso o façamos, nos equivocaremos miseravelmente.
É isto.