Literatura&Lugares

Hermes-Fontes: um poeta e gênio atormentado

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Por Acácia Rios (*)

E saber que eu julguei que essa insensível 

pudesse amar-me como a um seu irmão! 

e possibilitei nesse impossível 

dar forma eterna à minha aspiração! 

Esfinge, esfinge! desgraçadamente.

maior, mais vasto que o deserto ambiente 

é o deserto que tens no coração.

Esfinge, Hermes Fontes

O nome Hermes-Fontes atravessa a vida dos aracajuanos. As inúmeras placas ao longo dos seus 4 quilômetros, aproximadamente, não deixam esse sergipano de Boquim passar despercebido. Ainda mais para uma criança que acabara de aprender a ler. O mundo se me abria e as placas se tornavam parte do meu jogo do contente, que, no trajeto da antiga Cohab ao Centro, consistia em admirar as belas casas da avenida e memorizar os outros nomes com os quais a longa via fazia esquina. 

Avenida Hermes Fontes Fotos: Saulo Vilella

Anos depois, Hermes-Fontes (o autor grafava seu nome com hífen, sintetizando assim o de batismo: Hermes Floro Bartolomeu Martins de Araújo Fontes) saltaria da placa para a página de um livro. Eis que me vejo diante de ‘A taça’ (título pelo qual ficou conhecido), um poema visual que faz uma ode a esse objeto. 

Tornou-se o poema mais conhecido dele, presente em várias antologias, uma delas a de José Costa, que foi meu professor de Literatura Brasileira na UFS e organizou o livro Antologia poética de Hermes Fontes, editada pela Secretaria de Estado da Cultura em 2004. 

A descrição da taça, que vai se confundindo progressivamente com uma mulher, é carregada de sensualidade e musicalidade. Começa e termina com versos dodecassílabos (doze sílabas), mas a métrica varia ao sabor do desenho da taça, estreitando a rima na haste, de forma que temos versos de apenas uma palavra, como o leitor pode observar. 

A característica heterométrica (métricas diferentes) é o que o aproxima da poesia moderna. Essa sua versatilidade (e criatividade poética, diga-se de passagem), permitia-o transitar entre escolas.

Pouco acima daquela alvíssima coluna

que é o seu pescoço, a boca é-lhe uma taça tal

que, vendo-a, ou vendo-a, sem, na realidade, a ver,

de espaço a espaço, o céu da boca se me enfuna

de beijos — uns, sutis, em diáfano cristal

lapidados na oficina do meu Ser;

outros — hóstias ideais dos meus anseios,

e todos cheios, todos cheios

do meu infinito amor…

Taça

que encerra

por

suma graça

tudo que a terra

de bom

produz!

Boca!

o dom

possuis

de pores

louca

a minha boca!

Taça

de astros e flores,

na qual

esvoaça

meu ideal!

Taça cuja embriaguez

na via-láctea do Sonho ao céu conduz!

Que me enlouqueças mais… e, a mais e mais, me dês

o teu delírio… a tua chama… a tua luz…

                                                                             

Multifacetado, era considerado ao mesmo tempo parnasiano (ou neoparnasiano, segundo Otto Maria Carpeaux), simbolista e pré-modernista. Esse hibridismo estético o caracterizava. Também pudera, viveu num momento não só de grande efervescência cultural o Rio de Janeiro como também de mudança estética na literatura, proporcionada pela Semana de Arte Moderna de 22. 

No Rio de Janeiro, conviveu com poetas de diferentes correntes e o ambiente de interlocução impregnou-o de diversas maneiras. A sua estreia, com o livro Apoteoses, projetou-o nacionalmente e chamou a atenção de João Ribeiro, Silvio Romero, Rocha Pombo e Olavo Bilac, só para citar alguns. “É Hermes-Fontes um moço, quase um menino, cujo livro Apoteoses é uma revelação de força lírica.”, disse Bilac, conforme menciona Assis Brasil em seu livro A poesia sergipana no século XX (1998).

Além de poeta, jornalista e cronista, era caricaturista e letrista. Suas caricaturas apareciam nos jornais O bibliógrafoTagarella e Brasil Moderno. Por meio dessa linguagem, satirizou a vacina obrigatória, a lei do Expurgo e o Código Civil. Também se posicionou em relação à Campanha Civilista em favor de Rui Barbosa e, posteriormente, da Revolução de 30. Quanto às suas composições ‘Luar de Paquetá’ e ‘À beira mar’, foram gravadas por Vicente Celestino e podem facilmente ser acessadas na internet. 

Participou da organização da Academia Sergipana de letras e foi fundador da cadeira 16, cujo patrono foi Pedro de Calasans. Em seu Dicionário Biobibliográfico sergipano (1925), Armindo Guaraná nos informa que ele também foi membro correspondente da Academia Piauiense de Letras.

Um pouco do homem 

A biografia de Hermes-Fontes é comovente. Nasceu em Boquim, região sul de Sergipe, em 1888. Aprendeu as primeiras letras em pouco tempo e foi levado para estudar em Aracaju aos 8 anos. Sua genialidade chamou a atenção de professores e figuras conhecidas, notícia que logo se espalhou pelo estado. De acordo com Ana Medina, em Cartas de Hermes Fontes: angústia e ternura (2006), “aos oito anos já era uma revelação, um prodígio de memória, lia jornais como se fosse um adulto e possuía grande talento para a música e o desenho”.

Tanto talento junto chamou a atenção do então presidente do Estado, Martinho Garcez, que o adotou, levando para o Rio de Janeiro com apenas 10 anos. Na capital federal, os estudos avançaram às expensas da família Garcez, mas tão logo pôde buscou a sua independência. Fez um concurso para os Correios, passando em primeiro lugar. Entrou na faculdade de Direito e foi morar numa pensão, onde conheceu Alice, o amor da sua vida, que representa um capítulo à parte na sua história.

O poeta perdeu a mãe nos primeiros anos da infância e foi arrancado do seio familiar muito jovem. Se a capital sergipana já era uma separação da cidade natal, imagine o Rio de Janeiro. Nas cartas dirigidas à família (com quem manteve longa correspondência epistolar), relatava a saudade da terra. Isso está demonstrado no livro Despertar! (1922), que ele dedica a “Sergipe, terra dos meu berço” e aos pais. 

As cartas, que estão no Museu Raimundo Fernandes da Fonseca, em Boquim, revelam também que ele era arrimo de família. Sistematicamente, enviava quantias junto com as correspondências, em que sempre pedia notícias dos familiares, vizinhos e amigos.

Apesar de boa recepção crítica (publicou 11 livros em total) e de uma vida profissional intensa, Hermes-Fontes foi acumulando alguns dissabores ao longo da vida. Tentou entrar para a Academia Brasileira de Letras cinco vezes e, em todas elas, foi rechaçado. Também desejava ser Príncipe dos Poetas Brasileiros. No campo político, tentou ser deputado, mas não conseguiu. 

Casou apaixonado, mas o sentimento não era correspondido à mesma altura. Sua mulher engravidou, mas perdeu a criança. Anos depois, soube que havia sido traído por ela e por pessoas próximas. Separaram-se, mas ainda nutria sentimentos por Alice. Além de tudo, tinha complexo de ‘físico acanhado’, pois media pouco mais de um metro e meio. Uma autorreferência à sua altura é o pseudônimo P.Q. Nino. Às vezes assinava com as iniciais H.F., ou F.H., invertidas. Leo-Zito, Leléo, Léo-Fábio, Rems, Rins e Roms também eram usados pelo poeta. 

O poema ‘Esfinge’, cuja estrofe encabeça esta crônica, foi escrito por ele com o coração dilacerado. Era um homem romântico e, mesmo depois da separação, ainda se preocupava com o bem estar da sua amada, apesar de o coração dela ser um deserto, como diz o último verso.

Toda essa solidão, expressa na sua obra, culminou em uma profunda tristeza. Antes de suicidar-se com um tiro na cabeça, aos 42 anos, queixara-se com os amigos acerca do seu envolvimento na Revolução de 30. Mas diante da sua baixa autoestima e de tantas decepções, a amorosa sendo a pior de todas, tudo leva a crer na desilusão em relação à própria vida.

Cruzo diuturnamente a avenida Hermes Fontes, essa artéria sem a qual Aracaju não seria a mesma. Atravesso também as doze letras que compõem o seu nome e chego ao homem, esse poeta e gênio atormentado repleto de ternura.

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Acacia Rios

Acácia Rios é jornalista, escritora, professora, mestra em Memória Social e Documental pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e doutora em Ciências da Documentação pela Universidade Complutense de Madri. Leciona na Escola de Artes Valdice Teles.

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