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História de um livro maldito

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Por Luciano Correia (*)

 

Sabe aquela cena da queima de livros em praça pública, protagonizada pelos nazistas em 1933? De todas as monstruosidades perpetradas pela Alemanha de Hitler, esta sempre é lembrada. E olhem que foram inúmeras, infinitamente mais bárbaras do que uma fogueira de ideias. Mas a imagem de um governo perseguindo livros e autores é muito forte, daí ela nos acompanhar até hoje, mesmo nesse mundo distópico em que estamos mergulhados e condenados. É o que penso, às vezes, quando lembro de um livro produzido em terras sergipanas, no recente ano de 2010, por um sociólogo/historiador/compositor/antropólogo/poeta/escritor/ensaísta, o baiano Antônio Risério.

Trata-se de Uma História do Povo de Sergipe, publicação feita sob encomenda da então Secretaria de Planejamento e Gestão do governo de Sergipe, com o objetivo de trazer para os tempos atuais um compilado das obras dos grandes historiadores sergipanos, dos clássicos aos contemporâneos, preenchendo assim uma lacuna no rarefeito e precário ensino de História de Sergipe. Conforme diz o próprio autor em nota introdutória, o livro não tem a pretensão de buscar documentos novos ou visões inéditas sobre nossa história, mas, a partir da vasta historiografia disponível, promover um diálogo entre autores, oferecer novos contextos e entregar uma obra “para reforçar processos de conhecimento e autoconhecimento”, numa espécie de intervenção político-cultural num tom ensaístico.

Cheguei ao livro pelos atalhos que a leitura me propicia a cada dia, cavando um poço e encontrando, além da prometida água fresca, novos tesouros. Antes de chegar ao livro, eu já era iniciado nos textos feicebookianos e nos livros do próprio Risério. Soava esquisita a omissão ou desprezo em relação ao livro no paupérrimo mundo intelectual da taba aracajuana. Da universidade e da maioria dos seus acadêmicos, pior ainda, afinal, como dizia o Barão de Itararé, de onde menos se espera é que não sai nada mesmo. Interessado na temática, e carente de abastecer minha histórica ignorância sobre nossa própria história, comecei uma caça ao livro ainda em 2021. Nas instâncias do governo estadual, ninguém tinha a mais vaga informação. Procurei contato com a gestora encarregada da encomenda ao historiador baiano, sem sucesso. Soube depois que ela vive já há alguns anos fora do Brasil.

Voltei minhas buscas entre os moradores de nossa planície, especialmente junto ao ex-marido da mãe da ideia. Novamente, sem sucesso, com direito a um sonoro desprezo. Comecei a ficar intrigado com a incrível corrida de obstáculos para chegar à obra, afinal, se era ignorada pelos acadêmicos burro-cratas que infestam as universidades, ao mesmo tempo era referenciada por gente de opinião qualificada. O que se escondia por trás da negação de um trabalho cujo maior pecado, se pecado houvesse, seria o de ter chegado tão tarde às fartas e sortidas prateleiras literárias sergipanas, pra não dizer medíocres e modorrentas? Eis que um belo dia – e sempre há um belo dia no caminho, como as pedras de Drummond – resolvi arriscar a pergunta à coordenadora de uma biblioteca muito cara a mim, a Ivone de Menezes, mantida pela Funcaju. Qual não foi minha surpresa quando a bibliotecária Verônica me informa: “Sim, seu Luciano, nós temos dois exemplares”. Desde aquele mesmo dia mergulhei nas quase 700 páginas de Uma História do Povo de Sergipe, vencidas em menos de três meses, trabalho de fôlego, de leitura agradável, que vem cumprir uma função essencial na formação de estudantes, pesquisadores e mesmo professores. Ou, pelo menos, deveria vir para isso. Não veio, porque o livro mergulhou num nebuloso ocaso rumo à quase total invisibilidade.

Mesmo atendendo aos objetivos pretendidos por quem patrocinou o livro na esfera governamental, a obra seguiu uma carreira maldita, ou pior, foi jogada no indesejável túmulo do esquecimento. Que funcionários de governos cumpram caninamente as “ordens superiores”, é de se esperar, mas estranhei o silêncio cúmplice da dita intelectualidade da província, alguns deles, inclusive citados – e bem citados – pelos seus trabalhos, historiadores contemporâneos sérios que acabaram ajudando a obscurecer o trabalho de Risério.

Depois, foram surgindo possíveis explicações para o banimento do livro, mesmo por cima de sua extraordinária qualidade como texto histórico e literário. Revoltado pelo autor ser um historiador “de fora”, mesmo aqui da irmã Bahia, o governador da época enfureceu-se com a decisão de legar a tal forasteiro a tarefa de reescrever nossa história, no lugar de um sergipano da gema. O governador em questão, meu amigo, homem culto, leitor febril, conhecedor como poucos de cinema e de História, infelizmente se rendeu à torpe tentação do bairrismo.

Pouco depois, passeando pela histórica Itaparica, avistei Risério no barzinho no Largo da Quitanda, possivelmente o mesmo em que bebia outro grande escritor com pés fincados em Sergipe, João Ubaldo Ribeiro. Como nunca fui de tietagens, até porque jamais cultivei ídolos, admirei meu grande escritor à distância, pelo fascínio que o conjunto de sua obra nos provoca, e pelo autor em si. Até fiquei com vontade de perguntar pelo livro, mas resisti à tentação e segui para outra bodega.

Um dia finalmente troquei dois dedos de mensagens com Antônio Risério, dessa vez no conforto seguro e distante do Facebook. Ele confirmou a história do silêncio do livro, pela razão aqui apontada, mas queixou-se de outras imprecisões, aí não mais por culpa de censura. Disse que o trabalho fora publicado antes da hora, sem que ele tivesse dado uma forma final ao último capítulo. E o pior: sem sequer uma revisão, coisa que constatei na minha leitura. Também classificaram o autor como “publicitário”, atividade que Risério de fato já exerceu, mas que soa ridícula diante das outras áreas em que atua, ainda mais porque é a menos relacionada com a produção de um livro com essas características.

Ponto positivo para quem encomendou o trabalho e alguns pontinhos negativos pela negligência na finalização da obra. Quanto à atitude do governador da época, é compreensível seu apego aos autores da terrinha, mas, se não queria que um estrangeiro recontasse nossa história, que o fizesse por mãos locais. Quem sabe a providência de destinar o livro à geladeira do esquecimento nem foi dele, talvez providenciada por um algum aspone querendo bajular o chefe. É também evidente que a comparação com a queima de livros é uma metáfora exagerada, ainda mais no contexto atual, de uma figura sensível, um intelectual refinado e cosmopolita. Mas toda vez que se investe contra livros, não deixamos de lembrar do pior exemplo da história.

 

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Luciano Correia

Jornalista e presidente da Fundação Cultural Cidade de Aracaju (Funcaju).

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