quarta-feira, 03/07/2024
Uma das obras de Susan Sontag

Imagens à sombra de Sontag – Quando uma musa quase me levou a ser “gauche na vida”

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Por Léo Mittaraquis (*)

 

“Nenhuma imagem se justifica por si mesma, mas na relação exata e específica que mantém com as imagens cronologicamente adjacentes — cuja relação constitui seu ‘sentido'”

Susan Sontag, A Vontade Radical

 

Como é possível ocorrer de um conservador, cultor da Tradição Ocidental, leitor e admirador dos grandes mestres do conservadorismo, se apaixonar platônica e perdidamente por uma figura feminina e militante à esquerda? Resposta: basta que esta seja Susan Sontag. E antes que algum incauto, à borda do vulcão, resvale cratera adentro ao repetir a velha, inócua, falsa frase de que “os opostos se atraem”, adianto que essa “lei” só encontra feedback empírico no mundo físico bipolar. Ideologicamente antípoda, quedei-me perdido de amor por aquela mulher ainda, na época, com rostinho de garota, a respirar os convulsivos e fascinantes ares universitários dos anos sessenta, contudo vincado pelas profundas leituras que fizera, principalmente de Platão e Aristóteles, somando-se sua percepção, toda particular, marxista-adorniana.

Tipo assim: não se configura exclusividade de anjos tortos poder de indução ao desviar do caminho. Quase o fiz, mas, deu-se apenas de raspão. Recorri, célere, ao proverbial alerta: “Os néscios são mortos por seu desvio, e aos loucos a sua impressão de bem-estar os leva à perdição”.

Mas o primeiro livro de Sontag que li, em português, publicado no Brasil, foi “Sobre Fotografia”, vindo à público em 1983.

Pouco havia, antes, ouvido algo sobre a filósofa, romancista, crítica literária e sagaz analista das expressões audiovisuais. Ou, talvez, teria sido eu mesmo a não prestar a devida atenção. Afinal, Susan Sontag já se tornara um fenômeno intelectual, também no Brasil, ao final da década de sessenta.

Mas foi a produção ensaística “Sobre Fotografia” que provocou um verdadeiro ‘flash’   diante dos meus olhos e da minha mente.

Em “Sobre Fotografia”, uma coleção de seis ensaios (sendo o primeiro dedicado ao Mito da Caverna), esta extraordinária produção literária, não aborda tão somente os aspectos técnicos da fotografia. Susan Sontag decidiu-se por investigar as referências filosóficas desta forma de arte.

Num contexto em que, apesar de se discutir a captura de imagens, pouco se pensava o que seria a imagem documentada para além dela mesma, Sontag põe sobre a mesa algumas questões incômodas: o que a fotografia realmente captura? A partir de quais critérios uma fotografia pode ser considerada de boa ou má qualidade? O exercício de produção fotográfica é um exercício estético? Ou seja: a fotografia faz parte do campo das artes?

Ao concluir, naquela época, minha primeira leitura de Sontag, percebi, maravilhado, que a atraente e intensa pensadora me prevenia quanto ao risco de limitar a reflexão às questões primeiras, as quais já mencionei.

Pessoalmente, solitariamente, sempre desconfiara da paupérrima tautologia: “uma imagem vale mais que mil palavras”. Uma ova!

Sontag provocou, em mim, algo como também ofereceu a possibilidade de que eu alcançasse (o que de fato ocorreu) uma compreensão mais acurada sobre a nossa relação com as imagens e como elas moldam a nossa compreensão do mundo.

E então, entre tantas taças de vinho, por anos e anos (vendo, lendo, registrando imagens), empreendi uma jornada que me impôs incessantes desafios. O que redundou na mudança das minhas percepções sobre o fotografar.

Diria eu que fui levado a aplicar uma nova maneira de apreciar a arte da fotografia.

Susan Sontag me empurrou em direção a uma perspectiva perene, a qual não pode, creio, ser descartada em nenhum momento, pelo menos enquanto estamos neste mundo: a imagem fotográfica torna-se uma afirmação da nossa própria existência. Entendam, não as imagens soltas, repentinas, aleatórias (ainda que estas, nestas condições, produzam também efeitos dignos de se levar em conta), mas a imagem fotográfica, a imagem intencional, produzida por nós ou por outrem. Seja o registro amadorístico, seja o registro profissional. Ambos, em suas especificidades, embebidos por algum sentimento.

E o que tem a ver com vinho, além do ato de bebermos enquanto lemos e/ou olhamos? Estou a contar sobre mim, sobre como, sempre que possível, procurei documentar, ainda que de modo tosco, o rótulo que estava a ser consumido enquanto mantinha diante de mim, além da taça, a obra pela qual, naqueles momentos, meu interesse havia se manifestado.

Sei, por íntimos testemunhos, que outras pessoas, partícipes desta irmandade, também levam adiante o ritual.

Ao lado da garrafa de vinho, qual obra? Um livro, um filme, uma tela a reproduzir um motivo neoclássico, uma história em quadrinhos.

Quando “eternizo”, mediante fotos, os momentos do vinho somado à fruição de um objeto pertencente ao universo da Arte, direciono ao provável visualizador do fato um discurso prévio sobre o que tenho a intenção de dizer. Sobre o que sou, em parte, diante do mundo.

Sontag, vale dizer, seu pensamento, não se resume apenas, evidentemente, ao que ela documentou em “Sobre Fotografia”. Ela foi e, imortalizada por sua obra, ainda é, uma crítica muito lúcida que observou serem as imagens não nos oferecem tanto para que, tão somente vendo-as, possamos, de fato, aprender e entender alguma coisa.

Li e estudei outras de suas produções filosófico-literárias. Sou reticente, no caso dela, em indicar esta ou aquela leitura. A mim, técnica e esteticamente se impôs instrumental.

E eis o mote: é necessário que tenhamos outras referências para que saibamos, minimamente, o que estamos vendo.

A imagem que vejo e na qual, por instantes, vivo, composta por vinho, algum prato elaborado e um livro, um vinil, uma tela (filme ou pintura), e a partir da qual produzo a foto, elevam aos escassos interlocutores algo de discurso. Longe de ser neutro, diga-se de passagem. Como bem observa Susan Sontag: “Não há superfície neutra, discurso neutro, tema ou forma neutras. Uma coisa é neutra apenas com relação a algo mais — como uma intenção ou uma expectativa”.

Sim, em nada de neutralidade, esta condição que contradiz a si mesma dado o sufixo, “-dade” ou “-ade”, e sua intenção formadora a priori.

Componho a cena, intento publicá-la em alguma plataforma estruturante das redes sociais e (a parafrasear Georges Didi-Huberman, outro ícone à esquerda) ao expô-la, perco a tão cara e rara unidade de um mundo fechado. Lanço a imagem, e a mim, como imagem-conceito, e me encontro à solta no desconfortável universo flutuante, entregue a todos os ventos dos diversos e possíveis sentidos.

Poderia incluir, também, Vilém Flusser, György Lukács, István Mészáros e tantos outros congêneres. Afinal, discurso conservador algum se sustenta de forma funcional sem os fundamentos, as estacas hegelianas e marxistas, que evitam o soçobrar, o afundar no lamaçal das contradições.

O que pretendo, pois, ao expor imagens em que objetos, aparentemente dispostos ao acaso manifestam uma estrutura lexical? O que quero dizer ao, sistematicamente, publicar composições visuais em que o objeto vinho e os demais objetos referentes à alta cultura são expostos como parte do meu mundo e da minha representação?

Susan Sontag tornou-se uma das linhas-mestras no tear desta minha inquietude. Mas não fez com que eu me afastasse da margem scrutoniana. O dedicado amante dos Montrachet prevaleceu. Ainda bem.

Contudo Susan Sontag permanece essencial. Sigo com ela mediante seus livros. Mantenho-me em conserva, picles a fermentar na acidez antisséptica dum vinho branco sustentado pela mão direita.

Em tempo: Sontag tinha preferência por tequila e por Chardonnay barricado.

Santé!

 

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Sobre Leo Mittaraquis

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Léo Mittaraquis é graduado em Filosofia, crítico literário, mestre em Educação. Mantém o Projeto "Se Comes, Tu Bebes". Instagram: @leo.mittaraquis

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