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João Ubaldo, quase conterrâneo

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Luciano Correia (*)

 

Quem conhece a obra do estupendo João Ubaldo Ribeiro sabe que num dos seus livros preguiçosos, aqueles relatos a que um grande escritor dedica-se (ou delicia-se) só por brincadeira – ou para cumprir contratos com editores – “Um brasileiro em Berlim”, ele dedica um improvável capítulo à sua passagem por uma de suas pátrias, o nosso pequenino Sergipe. Improvável, porque deveria tratar, tão somente, do relato de sua passagem pela capital alemã (ainda sem a unificação das duas), no período em que cumpriu uma bolsa para escritores latino-americanos. Não sei as razões, mas me surpreendi quando, ao ler o livro, me deparei com este capítulo de parte da sua vida em Aracaju.

Manoel Ribeiro, juiz em Sergipe

Todos os que fazem referências ao talento do escritor, logo citam a erudição de João Ubaldo. Esta marca do autor vem praticamente de um saudável despotismo, praticado pelo pai, Manoel Ribeiro, juiz por muitos anos em Sergipe, ele, por si só, responsável por tantas histórias. Quem quiser enriquecer seu repertório converse com gente como João Augusto Gama, um compilador de grandes histórias da província. O juiz Manoel Ribeiro, homem culto, rigoroso e conservador, obrigava o menino João à interminável leitura dos principais clássicos da literatura, tomadas depois como lição por um pai-professor, cioso do futuro de seu filho homem.

Eis aí um bom castigo, embora só o pequeno João pudesse mensurar a solidão a que era submetido no gabinete de leitura da casa na praça Camerino (se não me engano), torturado pela algaravia dos meninos da vizinhança e colegas de escola, extasiados com as brincadeiras de rua e o jogo de futebol. Ubaldo deu nisso: um dos melhores escritores brasileiros, imortal da academia, embora este último título pouco ou nada importe na biografia de um autor já imortalizado pela grandeza de sua profícua produção literária. Se a lenda da vida eterna valer, o velho Manoel Ribeiro hoje está sorrindo pela chegada de seu filho querido, fruto bem plantado e melhor colhido.

Ubaldo e Getúlio

O ator sergipano Orlando Vieira fez o motorista Amaro, em Sargento Getúlio   Foto: Rose Garcia

Há uma unanimidade, entre letrados, de que o melhor livro de João Ubaldo é justamente “Sargento Getúlio”, a famosa obra imortalizada no cinema pelo filme de Hermano Penna, filmado (gravado, não: filmado mesmo, numa câmera de 16mm) aqui nos nossos sertões de Canindé, Poço Redondo, um road-movie cangaceiro desde Paulo Afonso até as franjas da Aracaju do começo do século XX. O livro é uma denúncia das mazelas do Nordeste, uma realidade dominada por jagunços e coronéis, ambos confundidos com o próprio poder político. O protagonista, Getúlio, é figura de carne e osso e conheço gente em Aracaju que o conheceu. No filme de Penna ele é ninguém menos do que Lima Duarte, um dos grandes da dramaturgia nacional, que percorre as veredas sergipanas numa velha fobica (assim se chamavam os carros velhos de antigamente) ao lado do fiel motorista Amaro (o não menos grandioso Orlando Vieira).

A brutalidade de Getúlio não é maior do que a que prevalecia na sociedade brasileira da época, a mesma que permitiu, em Sergipe, o prolongamento do mesmo estilo com seu irmão Barreto Mota, o célebre e temido comandante da polícia estadual por décadas. Como jornalista, fui contemporâneo desses tempos, mas o que me vem à memória faz parte do ocaso de sua vida, dele, Barreto Mota, já aposentado, um velhinho bem-humorado e casca-grossa rebatendo piadinhas no cafezinho da Solanches, de Raimundo, no Calçadão da Laranjeiras.

O filme virou cult do cinema brasileiro, quase artesanal, com uma só câmera, fazendo planos e contraplanos (imaginem o trabalho que deu) e com uma penca de grandes sergipanos brilhando na telinha. Lá estão, além do nacionalmente consagrado Orlando, Amaral Cavalcante, Antônio Leite, Luiz Antônio Barreto e tantos. Amaral atuou também como produtor local. Foi ele quem conseguiu o revólver usado por Lima, emprestado, adivinhem de quem? Acertou quem pensou em Barreto Mota.

Mídia, Cultura e Ebulições
24 24America/Fortaleza outubro 24America/Fortaleza 2024Compartilhe:   Por Luciano Correia (*)   O primeiro turno das eleições em Sergipe movimentou como nunca as redes digitais com os erros e acertos que isto representa. Essa esfera pública digital cada vez mais substitui a antiga esfera, essa também já caracterizada por uma Ágora eletrônica, nas décadas em que rádio e televisão foram absolutamente hegemônicos na condução da sociedade. Do terreno concreto mesmo, só restaram as famigeradas carreatas com seus minidiscursos e a sujeira dos santinhos nas ruas no dia da votação. Todo o resto é disputa nas redes. A mudança de patamar, do analógico para o digital, por si só não representa avanços ou recuos. Nesse aspecto, a Internet é usada para o bem e para o mal. O importante na ascensão das novas mídias é a capacidade de cada um se tornar um emissor, cada cidadão pode ser uma voz, uma TV ou algo ainda mais avançado. Isso rompe com o monopólio da era eletrônica, quando um centro emissor, sem interações ou contrapartidas, gerava conteúdo para milhões. Por outro lado, o mau uso pode representar também a desgraça desse novo espaço público digital, como, aliás, estamos acostumados a ver. O primeiro turno em Sergipe aprofundou a banalização das pesquisas eleitorais, com cada freguês encomendando os resultados que lhe convinha, para fazer barulho com números impressionantes sobre sua pretensa superioridade. Não foi, portanto, uma “guerra das pesquisas”, mas o abuso irresponsável de um recurso legítimo e importante no processo político. Tava mais para uma guerra de fake news. Os tais institutos, pois, junto com seus partidos contratantes, foram os primeiros derrotados. Mas há um derrotado maior na primeira rodada das eleições, e esse nos é muito caro: o jornalismo propriamente dito. Se por um lado as redes permitem que cada ator social produza suas narrativas, essa liberdade não pode abusar dos princípios que definem a produção jornalística, tão simples e objetivas que são. Se fosse assim, que continuássemos dependentes do autoproclamado “jornalismo profissional”, uma pretensão da imprensa corporativa que busca assegurar seu domínio na opinião pública vendendo uma ideia de que os outros não fazem jornalismo, mas narrativas individuais e amadoras. Jornalismo não precisa ser “profissional”, porque esse conceito carrega interesses ideológicos e comerciais camuflados. Tampouco pode ser uma construção de narrativas a serviço de partidos, chefes políticos ou grupos privados cujas mensagens desprezam a realidade e distorcem a interpretação do mundo. Aqui se viu de tudo, anomalias como “jornalista de dados”, cientistas políticos cumprindo a missão de jagunços midiáticos a serviço de neocoronéis de uma esquerda sem discurso, analistas posicionados na folha de pagamento de candidatos se esforçando para provar que suas análises tinham um pingo de honestidade, aí sim, profissional. O resultado dessa patacoada eleitoral foi a desmoralização do sagrado direito à informação, a notícia como serviço público, o que, desgraçadamente, só confere ainda mais irrelevância a uma atividade que tem sido a maior vítima da proliferação dos canais “informativos” da Internet. As causas dessa desgraça contemporânea são muitas, mas não trataremos disso por ora. É até compreensível que, diante desse cenário de pulverização do mercado de trabalho jornalístico, os trabalhadores da área busquem sobreviver no patamar digital se adaptando aos novos formatos. Mas a mudança do ambiente jamais deve prescindir dos princípios éticos, tão básicos e simples, que constituem os protocolos jornalísticos no mundo inteiro. O jornalismo é uma conquista do Iluminismo e graças a ele temos conseguido o equilíbrio mínimo no funcionamento do mundo moderno, fiscalizando as ações dos poderes públicos e dos agentes privados. Fazer comunicação sem observar esses critérios é mais criminoso do que o silêncio das censuras, sejam quais forem os fins e os meios.   Compartilhe: [...] Saiba mais...
26 26America/Fortaleza setembro 26America/Fortaleza 2024Compartilhe:   Por Luciano Correia (*)   abe aquela cena da queima de livros em praça pública, protagonizada pelos nazistas em 1933? De todas as monstruosidades perpetradas pela Alemanha de Hitler, esta sempre é lembrada. E olhem que foram inúmeras, infinitamente mais bárbaras do que uma fogueira de ideias. Mas a imagem de um governo perseguindo livros e autores é muito forte, daí ela nos acompanhar até hoje, mesmo nesse mundo distópico em que estamos mergulhados e condenados. É o que penso, às vezes, quando lembro de um livro produzido em terras sergipanas, no recente ano de 2010, por um sociólogo/historiador/compositor/antropólogo/poeta/escritor/ensaísta, o baiano Antônio Risério. Trata-se de Uma História do Povo de Sergipe, publicação feita sob encomenda da então Secretaria de Planejamento e Gestão do governo de Sergipe, com o objetivo de trazer para os tempos atuais um compilado das obras dos grandes historiadores sergipanos, dos clássicos aos contemporâneos, preenchendo assim uma lacuna no rarefeito e precário ensino de História de Sergipe. Conforme diz o próprio autor em nota introdutória, o livro não tem a pretensão de buscar documentos novos ou visões inéditas sobre nossa história, mas, a partir da vasta historiografia disponível, promover um diálogo entre autores, oferecer novos contextos e entregar uma obra “para reforçar processos de conhecimento e autoconhecimento”, numa espécie de intervenção político-cultural num tom ensaístico. Cheguei ao livro pelos atalhos que a leitura me propicia a cada dia, cavando um poço e encontrando, além da prometida água fresca, novos tesouros. Antes de chegar ao livro, eu já era iniciado nos textos feicebookianos e nos livros do próprio Risério. Soava esquisita a omissão ou desprezo em relação ao livro no paupérrimo mundo intelectual da taba aracajuana. Da universidade e da maioria dos seus acadêmicos, pior ainda, afinal, como dizia o Barão de Itararé, de onde menos se espera é que não sai nada mesmo. Interessado na temática, e carente de abastecer minha histórica ignorância sobre nossa própria história, comecei uma caça ao livro ainda em 2021. Nas instâncias do governo estadual, ninguém tinha a mais vaga informação. Procurei contato com a gestora encarregada da encomenda ao historiador baiano, sem sucesso. Soube depois que ela vive já há alguns anos fora do Brasil. Voltei minhas buscas entre os moradores de nossa planície, especialmente junto ao ex-marido da mãe da ideia. Novamente, sem sucesso, com direito a um sonoro desprezo. Comecei a ficar intrigado com a incrível corrida de obstáculos para chegar à obra, afinal, se era ignorada pelos acadêmicos burro-cratas que infestam as universidades, ao mesmo tempo era referenciada por gente de opinião qualificada. O que se escondia por trás da negação de um trabalho cujo maior pecado, se pecado houvesse, seria o de ter chegado tão tarde às fartas e sortidas prateleiras literárias sergipanas, pra não dizer medíocres e modorrentas? Eis que um belo dia – e sempre há um belo dia no caminho, como as pedras de Drummond – resolvi arriscar a pergunta à coordenadora de uma biblioteca muito cara a mim, a Ivone de Menezes, mantida pela Funcaju. Qual não foi minha surpresa quando a bibliotecária Verônica me informa: “Sim, seu Luciano, nós temos dois exemplares”. Desde aquele mesmo dia mergulhei nas quase 700 páginas de Uma História do Povo de Sergipe, vencidas em menos de três meses, trabalho de fôlego, de leitura agradável, que vem cumprir uma função essencial na formação de estudantes, pesquisadores e mesmo professores. Ou, pelo menos, deveria vir para isso. Não veio, porque o livro mergulhou num nebuloso ocaso rumo à quase total invisibilidade. Mesmo atendendo aos objetivos pretendidos por quem patrocinou o livro na esfera governamental, a obra seguiu uma carreira maldita, ou pior, foi jogada no indesejável túmulo do esquecimento. Que funcionários de governos cumpram caninamente as “ordens superiores”, é de se esperar, mas estranhei o silêncio cúmplice da dita intelectualidade da província, alguns deles, inclusive citados – e bem citados – pelos seus trabalhos, historiadores contemporâneos sérios que acabaram ajudando a obscurecer o trabalho de Risério. Depois, foram surgindo possíveis explicações para o banimento do livro, mesmo por cima de sua extraordinária qualidade como texto histórico e literário. Revoltado pelo autor ser um historiador “de fora”, mesmo aqui da irmã Bahia, o governador da época enfureceu-se com a decisão de legar a tal forasteiro a tarefa de reescrever nossa história, no lugar de um sergipano da gema. O governador em questão, meu amigo, homem culto, leitor febril, conhecedor como poucos de cinema e de História, infelizmente se rendeu à torpe tentação do bairrismo. Pouco depois, passeando pela histórica Itaparica, avistei Risério no barzinho no Largo da Quitanda, possivelmente o mesmo em que bebia outro grande escritor com pés fincados em Sergipe, João Ubaldo Ribeiro. Como nunca fui de tietagens, até porque jamais cultivei ídolos, admirei meu grande escritor à distância, pelo fascínio que o conjunto de sua obra nos provoca, e pelo autor em si. Até fiquei com vontade de perguntar pelo livro, mas resisti à tentação e segui para outra bodega. Um dia finalmente troquei dois dedos de mensagens com Antônio Risério, dessa vez no conforto seguro e distante do Facebook. Ele confirmou a história do silêncio do livro, pela razão aqui apontada, mas queixou-se de outras imprecisões, aí não mais por culpa de censura. Disse que o trabalho fora publicado antes da hora, sem que ele tivesse dado uma forma final ao último capítulo. E o pior: sem sequer uma revisão, coisa que constatei na minha leitura. Também classificaram o autor como “publicitário”, atividade que Risério de fato já exerceu, mas que soa ridícula diante das outras áreas em que atua, ainda mais porque é a menos relacionada com a produção de um livro com essas características. Ponto positivo para quem encomendou o trabalho e alguns pontinhos negativos pela negligência na finalização da obra. Quanto à atitude do governador da época, é compreensível seu apego aos autores da terrinha, mas, se não queria que um estrangeiro recontasse nossa história, que o fizesse por mãos locais. Quem sabe a providência de destinar o livro à geladeira do esquecimento nem foi dele, talvez providenciada por um algum aspone querendo bajular o chefe. É também evidente que a comparação com a queima de livros é uma metáfora exagerada, ainda mais no contexto atual, de uma figura sensível, um intelectual refinado e cosmopolita. Mas toda vez que se investe contra livros, não deixamos de lembrar do pior exemplo da história.   Compartilhe: [...] Saiba mais...
7 07America/Fortaleza setembro 07America/Fortaleza 2024Compartilhe:   Por Luciano Correia (*)   esses dias deixei o litoral para mergulhar no interior do Nordeste, dessa vez a propósito de ir a Campina Grande ver meu time jogar, com um pit stop de dois dias em Caruaru. Desde um pouco antes da pandemia, fiz esse percurso mais de uma dezena de vezes, sobretudo o roteiro que inclui Caruaru, Santa Cruz do Capibaribe e Toritama. Não se trata ainda de um Nordeste profundo, levando em conta outras microrregiões desses dois estados muito mais intensas, do ponto de vista do clima, da geografia e da cultura, mas, de qualquer forma, difere muito da cultura dos nossos litorais, um outro Brasil tão pasteurizado que Milton Nascimento já cantava (ou denunciava?) há décadas. Totalmente contra o fluxo, tenho sistematicamente ignorado praias e marchado para lugares como Petrolina, Juazeiro, Juazeiro do Norte, Recôncavo Baiano, Canudos, Caldas do Jorro, Paulo Afonso, Triunfo, além dos já mencionados. E quando digo que não dá pra enquadrar a maioria dessas cidades nas categorias de rincões tradicionais, que ainda guardam nos seus limites certos amálgamas do barro sertanejo que os forjaram, é porque se tratam de notáveis centros urbanos vivendo extraordinários surtos de desenvolvimento econômico. Em horários de muito movimento, a exemplo do final do dia e começo da noite, essas cidades se enchem das luzes dos carros e de suas largas vias, numa elétrica movimentação que dá conta de sua transformação em verdadeiras metrópoles. São centros regionais dotados de enormes anéis viários, obras que só vemos nas maiores capitais, com viadutos, pontes e pistas duplicadas e com uma joia rara no país da indústria de multas e pouco planejamento: sinalização vertical e horizontal funcionando sob critérios técnicos. Nas estradas, idem. Enquanto nós mendigamos por recursos federais para terminar a duplicação de uma rodovia que já duram 30 anos, essas cidades são servidas de boas estradas, algumas duplicadas. No entorno de Caruaru a face árida das colinas está sendo tomada pelo verde de condomínios horizontais e espigões que furam o céu de cidades como Toritama, polo têxtil que acompanha o boom realizado por Caruaru e que hoje se espalha para Santa Cruz do Capibaribe, gerando empregos, tirando muita gente da pobreza, abrindo uma variedade de novos negócios e criando uma poderosa classe média e uma nova classe de ricos que moram em apartamentos tão sofisticados como os encontrados na região dos Jardins, em São Paulo. O Futebol Futebol, como digo sempre, é muito mais do que a peleja nas quatro linhas e a paixão das arquibancadas. É também uma questão de identidade, onde as pessoas, na falta de outros fatores de coesão social, se encontram nas cores de um time. Num país de fraca cidadania, com instituições apodrecidas e cada vez mais obsoletas, nada mobiliza as multidões. Como dizia um antigo poeta de rua nos muros de Aracaju: “só uma bola me consola”. É claro que ele aí estendia a dimensão para outras bolas, sobretudo as que abrem as portas da percepção. E foi movido por esses sentimentos que me joguei na estrada para ver com meus olhos os 90 minutos de um espetáculo épico, desses que certamente só temos muito raramente. O Itabaiana representa a cidade onde fui viver ainda criança, começando ali uma relação de pura paixão, onde clube e cidade se confundem na mesma coisa. Em 1998 tivemos quase na Série B do campeonato brasileiro, e só não conseguimos por conta de uma pendenga entre jogadores e a diretoria, que na época foi intransigente em relação ao prêmio a ser pago aos vencedores. O resultado foi o que a história registrou: boa parte dos atletas passou a noite num fervilhante cabaré de Goiânia, entre copos e putas, preparando o terreno para a sonora goleada que tomamos do Anapolina por 5 x 0. Nesse ano glorioso de 2024 fizemos uma campanha ascendente, competente, bem dirigida por um treinador carismático que tinha o time na mão. Os jogadores, por seu turno, diferente do que é comum hoje em dia, deram o suor com amor, como se todos fossem filhos da velha Itabaiana-Grande. E depois de dois mata-mata, fomos para o duelo final com o Treze de Campina, uma equipe valente, também bem treinada, com uma torcida feroz, no melhor e pior sentido. Passei maus bocados pra entrar no campo vestindo minha farda tricolor, que tive de tirá-la, para minha segurança. Na saída, após a épica partida que resultou na nossa classificação, vi os itabaianenses um a um zarparem do local em carros particulares enquanto eu sobrava cada vez mais solitário num terreno ermo e sombrio. Por sorte, a Polícia Militar da Paraíba garantiu a saída dos últimos tricolores com segurança e dignidade, uma simples ação administrativa que me fez redobrar a confiança e admiração por todo o povo e governo paraibanos. À exceção dos violentos torcedores do Treze, evidentemente, de quem ouvi desaforos e impropérios, dedos médios esticados e ameaças berradas em tom selvagem. Estamos na série C do Campeonato Brasileiro, se não ainda um paraíso, mas seguramente uma estação bem próxima. Para alegria e festa desse velho e cansado coração.     Compartilhe: [...] Saiba mais...
22 22America/Fortaleza agosto 22America/Fortaleza 2024Compartilhe: Por Luciano Correia (*)   s ainda vivos e muito vivos dizem que não se deve falar mal dos mortos. Eu não estava presente na hora desse acerto, de modo que nunca me identifiquei muito com essa “ética” para com os que foram desta para uma pior, principalmente com os que já eram piores do lado de cá. Nem por isso eu fui mexer na paz e na solidão dos túmulos, não por medo de briga ou assombração, mas pela simples perda de tempo que resulta comprar algumas dessas brigas. Quem digitar meu nome no YouTube vai encontrar muitas entrevistas, programas de TV antigos e, logo no começo, uma fala de uma figura da política já fora de circulação. Trata-se de uma entrevista que a bocuda deu em uma emissora local, logo inserida no portal da empresa, pela natureza sensacionalista de suas vociferações, evidente logo na manchete: “Luciano Correia é mentiroso”. A verdade por trás dessa impostura não é nem de longe mencionada pelo portal nem pela verborrágica acusadora. Na verdade, eu é que acusara a dita cuja pela associação, senão nas coisas práticas e materiais, mas pelo menos em ideias e atitudes com determinado “produtor” cultural. Me referia a um produtor sem obra, de uma cadeia da cultura local, já viciado em receber dinheiros públicos sem nunca ter feito a necessária contrapartida. E isso é crime, aqui e em qualquer lugar. Num encontro com a socialista morena, alertei-a do perigo em misturar-se com gente assim, já que ela fazia do seu trabalho uma trincheira em defesa de um segmento que, pra variar, engrossava sua base eleitoral. Eu jamais pretendia remexer nesse caso passado, mas a história de falar sobre mortos me recolocou na raia, a propósito do ilustre morto dessa semana, o empresário e comunicador Sílvio Santos. Gerações inteiras se encantaram com seu programa dominical, desde a extinta Rede Tupi, depois na Globo, até ele fundar sua própria rede. Certamente um dos mais longos programas de TV do mundo, começava ainda nas manhãs de domingo, quando milhões de lares brasileiros ecoavam seu gingle: “Agora é hora/de alegria/Vamos sorrir e cantar”. E chamava o refrão mais simplório e conhecido de uma população: “Lá, lá, lá, hey, lá, lá, lá: Sílvio Santos vem aí”. SS era o rei das manhãs, tardes e noites. Quem não se encantou com o enternecido Boa Noite Cinderela e aquelas menininhas derramando inocência e sonhos diante do charmoso tiozinho? E a Porta da Esperança? Esse adulto aqui também foi uma dessas crianças iludidas com as promessas de tio SS. Não sei como, consegui o endereço do programa e remeti, desde o interior de Sergipe, uma singela cartinha, na qual eu confessava minha paixão e desejo de ganhar uma das maravilhas que a tecnologia nos apresentou naqueles anos: um gravador K-7. Jamais tive resposta, mesmo que fosse um desalentador e sonoro: não! Em matéria de sonhos mais fáceis de realizar, me dei melhor com o Clube Júnior, da Tia Nazaré Carvalho, na TV Sergipe, que publicou para todo o estado minha carta com aquela que era até então minha maior obra de arte, um desenho do Mickey Mouse. SS era o chamado animal comunicador, condição logo utilizada pra produzir o maior camelô eletrônico do Brasil, com sua rede de lojas do Baú da Felicidade e outros negócios, de modo que sua performance televisiva sempre se confundiu com as atividades comerciais. De alguém que ganhasse um prêmio de verdade no seu Carnê do Baú, pouco se sabe, além de inutilidades de plástico e coisas assim. Daí para a mosca azul do poder, foi um pulo. Em 1989, quando o país se livrava de mais de 20 anos de ditadura e se preparava para seu primeiro pleito direto desde a eleição de Jânio Quadros em 1960, a popularidade do comunicador Sílvio encheu os olhos da classe política e dele mesmo, que foi lançado candidato num episódio turbulento, cheio de reveses e polêmicas, até ser finalmente abortada. Assim sendo, apesar de nunca ter colocado os pés na política diretamente, esteve sempre cortejando o poder, os poderosos e as oportunidades. Seu partido foi sempre o mesmo: o do governo. Quando a frágil democracia brasileira começou a dar sinais da irrelevância a que chegou, inclusive e principalmente nos dias atuais, não hesitou em mostrar suas unhas preconceituosas, da extrema direita, apoiando o inominável Bolsonaro em todas as suas aventuras. Para piorar, uma de suas filhas casou com um belo rapaz egresso das oligarquias potiguares, Fábio Faria, tão bonitinho quanto ordinário, um jovem velho, corroído pelo que há de pior entre os políticos nordestinos, dissimulador, virulento, mesquinho. O riquinho genro de SS veio engrossar os níqueis e a ética da família. No ultradireitista ninho bolsonarista, sempre esteve entre os mais nefastos: a tropa de choque de um governo espúrio, eivado de corrupção, perseguição, mentiras e uso da máquina pública para os piores objetivos. É desse mundo que fazia parte o senhor Senor Abravanel. Se um dia foi o criador de uma linguagem que fundou a própria televisão no Brasil, os anos o transformaram numa espécie de velho gagá, com gafes, equívocos de toda sorte, preconceitos e vulgaridades que marcaram sua fase de idoso na TV. Enquanto os negócios seguiam bem, escorados na chamada classe C, pobres e miseráveis, sua televisão se tornou obsoleta como criadora de uma gramática audiovisual, diferente da Globo, sua arquirrival. Hoje, virou um baú de velharias, sem a mínima coerência de uma grade de programação, um Classificados ao vivo para vender de tudo e de todos, a começar pelas quinquilharias da casa, os açucarados perfumes Jequiti, cuja garota-chefe propaganda é a mesma Patrícia, a do tal Fábio. O melhor filtro para avaliar a grandeza desse bilionário que nos deixou no último sábado, aos 93 anos, seria a eleição de uma declaração qualquer, uma pequena frase que ele tenha pronunciado e que fosse digna de um epitáfio. No caso de Silvio Santos, que eu saiba, não há nenhuma.   Compartilhe: [...] Saiba mais...
15 15America/Fortaleza agosto 15America/Fortaleza 2024Compartilhe: Por Luciano Correia (*)   ou descrente pero no mucho. Vai que as coisas são mesmo regidas por algum poder supremo… Euzinho não posso chegar desguarnecido no juízo final. Pelos dias que correm eu até escaparia do fogo do inferno, me garantindo, pelo menos, um purgatório em regime fifty fifty: metade reza, metade furdunço. Creio, por exemplo, que caminhamos de forma irremediável para a uma hecatombe universal, um mix de desgraças feito da tragédia ambiental e de uma iminente terceira guerra mundial. O estopim dessa guerra total evidentemente tem seu epicentro no conflito em Gaza, onde o estado racista judeu já matou, contados oficialmente, 50 mil civis, a maioria crianças. A virulência da máquina de guerra israelense é tão implacável que não se restringe aos territórios bombardeados sistematicamente há quase um ano. Judeus controlam também a máquina de propaganda, desde a mídia, cinema e plataformas da internet nos Estados Unidos, Europa e em vários países. A perseguição a vozes discordantes tem requintes de psicopatia. Um exemplo concreto, ocorrido num pequeno, pobre e isolado estado brasileiro, o insular Sergipe. Um amigo jornalista, militante da esquerda e colunista do Jornal do Dia, publicou há alguns anos um artigo tecendo críticas à política do estado judeu na questão palestina. O artigo era posicionado claramente contra a truculência do governo comandado por Benjamin Netanyahu, mas não fazia ataques pessoais a ele ou seus auxiliares, nem cometia qualquer forma de preconceito contra judeus. Mas o teor do texto não importou muito. O jornalista foi processado e caçado como um bandido, enfrentando um doloroso calvário na polícia federal brasileira, que é tecnicamente responsável pelo tipo processos em que se cometem crimes racistas. Só que não havia crime algum. Nosso jornalista se safou das armadilhas jurídicas interpostas uma após outra pelos advogados a serviço do estado judeu supostamente ofendido, mas só depois de uma maratona de sofrimento psicológico e, sobretudo, gastos financeiros. A morte de um líder diplomático do Hezbollah em Teerã, sem ligações com a atividade militar, foi uma provocação irresponsável dos israelenses, depois de todas as crueldades já impostas à população de Gaza. Mostra que Netanyahu não tem limites na sua psicopatia. Uma evidência disso é o pouco caso que faz da possibilidade cada dia mais concreta de o mundo arder literalmente em chamas num conflito generalizado. E é o que está na iminência de ocorrer a partir da anunciada reação do Irã. O espantoso nisso, em matéria de nonsense, é a posição dos Estados Unidos, que enviou para a região navios porta-aviões, mísseis e bombardeiros. Ao mesmo tempo, pasmem, faz um pedido ao Irã para desistir da reação. Entrou por um ouvido do Irã e saiu pelo outro. A movimentação dos americanos, mais os países europeus escudados na Otan, para responder energicamente ao Irã, vai dar encrenca na certa. Rússia e China não vão assistir de braços cruzados. Enquanto esse terrível cenário de fim de mundo se desenha num horizonte próximo, num país cada vez mais irrelevante no xadrez global a neo-esquerda identitária declara amor sincero à principal candidata do establishment norte-americano, a risonha Kamala Harris. Kamala é só um rostinho bonitinho e uma gargalhada fora de tom e de hora, sempre a tangenciar as questões sérias. Fazem-na uma pergunta que exige raciocínio complexo e ela irrompe numa risada retumbante, encerrando a resposta com a simples ausência de resposta. A grande maioria da esquerda burrinha que assumiu os partidos desse espectro no Brasil não tem mais raízes nas causas clássicas do velho marxismo nem nas lutas das classes trabalhadoras e operárias que legaram as únicas conquistas possíveis no século passado. É claro que não é só uma questão da extrema mediocridade de seus principais quadros, pois há muito de subserviência e cumplicidade com modelos estadunidenses e europeus. Há gente nesse campo, inclusive, ganhando muito dinheiro com essas posições. Todo o discurso e práticas identitárias que prevalecem de forma massacrante na esquerda brasileira atual foram importados desses países, em conexões informais ou institucionais, a exemplo das milhares de bolsas fornecidas pela Fundação Ford às universidades, contaminando de maneira tóxica o ambiente e a produção acadêmica no país, subordinando a elaboração do pensamento às lógicas do Império. Discutir se Kamala Harris é melhor do que Donald Trump é uma falsa discussão que jamais poderia ser feita num ambiente de uma esquerda séria e consequente. No caso em questão, o melhor é dizer: é difícil saber quem é o pior dos dois. E Trump, apesar do figurino caber com precisão no de um bandido, por incrível, é mais um outsider, um estranho no ninho na máquina de guerra do imperialismo americano, esse mesmo que comete um genocídio diário em Gaza, sob o silêncio escroto do resto da humanidade. Trump é um doido, um caipira com a cabeça enterrada na sua Flórida e nos interesses dos ricos, pouco preocupado com políticas expansionistas de um império em convulsão, prestes a derreter minado pela guerra contínua. Para os republicanos, a dinheirama derramada em lugares remotos como Iraque, Afeganistão ou nos conflitos arranjados pelo estado judeu é um desperdício tirado de seus próprios lucros, porque o que vale é fazer girar a roda de suas fortunas. Kamala, ao contrário, é uma hiena com dentes abertos para a falsa cordialidade de uma líder politicamente correta, negra, indiana, mulher, pró-minorias num país com uma realidade distante da nossa, sem nossa melhor herança, que é a mestiçagem. As brigas da sociedade americana não nos dizem respeito. Mas essa é a tintura que ela usa para iludir bestalhões de uma esquerda caolha, colonizada, entreguista e deslumbrada. Lembrem-se sempre do exemplo de Barack Obama, saudado por gente de esquerda aqui mesmo em Sergipe como um César negro, cujo governo foi o mais violento e repressor dos últimos anos. Enquanto o mundo como conhecíamos começa a acabar de verdade, a esquerdinha brasileira troca fricotes com a boca escancarada cheia de dentes da hiena pop americana, o novo anjo da morte para fazer o mundo sofrer.   Compartilhe: [...] Saiba mais...
11 11America/Fortaleza julho 11America/Fortaleza 2024Compartilhe:   Por Luciano Correia (*)   tempo e a perda das ilusões caminham juntos com nossa idade. À medida que vão avançando, vamos ficando mais pessimistas ou céticos. A prudência recomenda não se abalar com tudo, nem se empolgar com pequenas coisas. A vitória da esquerda na França no último final de semana não muda substancialmente o quadro sombrio que a política nos oferece na Europa e em quase todo o mundo. A líder fascista Marine Le Pen, inclusive, avisou: nossa vitória foi só adiada. E é bem possível. Mas isso são outros quinhentos. Antes que anoiteça novamente, temos quase que uma obrigação moral em celebrar a conquista do domingo, até para que seja brandida como recado simbólico para sociedades selvagens como essa que ora prevalece nesses nossos tristes trópicos. Os resultados desse segundo turno francês, ou a lição das urnas, como diziam os editorialistas de antigamente após a abertura das urnas, é o recrudescimento da disputa, tornado evidente no fortalecimento dos dois polos opostos: extrema direita e esquerda comunista. No meio disso, o governo de Emmanuel Macron, que encolheu enormemente de tamanho e se afunda ainda mais na sua barafunda. Macron encarna o que há de pior na política, esse arremedo de liberal que não pratica o liberalismo, senão as receitas do neoliberalismo que precariza a cada dia a vida de trabalhadores e da maioria da população. Uma direita velha e conservadora cinicamente disfarçada de centro, com eventuais flertes com os socialistas, que, na França, significa o nada vezes nada. Macron, além de tudo, é um terrorista que explora o medo como mecanismo de dominação e sobrevivência política. Já falou em guerra com a Rússia, mandou dinheiro e ajuda militar para o governo psicopata de Israel e endurece a cada dia a perseguição aos imigrantes. E o problema da imigração é que esses estados europeus, todos com uma população infértil e envelhecida, precisa dos latinos e dos negrinhos da África para a construção civil e para limpar suas privadas, coisa que um francês “puro sangue” não quer nem ouvir falar. O resultado disso tudo, para a França, Alemanha e Reino Unido, é que a velha e poderosa Europa perde protagonismo a cada dia, ainda mais tutelada pela Otan e Estados Unidos. Caminham rápido para a decadência, numa proporção ainda maior do que o próprio Império, os Estados Unidos, cuja arrogância não os fazem aceitar a hegemonia do novo grande ator mundial, a China. Velho e cansado de guerra, eu vinha como aquele célebre partido de esquerda cuja principal joia teórica consistia no enunciado “Quanto pior, melhor”. Em boa matemática: queria ver o circo pegar fogo, justamente a partir de onde a agonia se anuncia, o eixo Washington-União Europeia. Mas recentemente tomei a arriscada providência de botar mais um filho nesse mundo doido, de modo que agora tenho que engrossar o coro dos penitentes, rezando por alguma sobrevida para este Planeta doente e seus habitantes intoxicados. Isto significa que, como cantava Raul, já não tem como parar o mundo para eu descer. Os ocorridos na França nos trazem uma brevíssima luzinha no fim desse túnel de dissabores, sem muita certeza de que funcionará como centelha para um mundo carente de esperanças, nem que sejam só sonhos e esperanças. Porque, de fato, não temos planos B, C, D ou qualquer outro em cogitação.   Compartilhe: [...] Saiba mais...
13 13America/Fortaleza junho 13America/Fortaleza 2024Compartilhe: Por Luciano Correia (*)   revolucionário Leon Trotsky, um dos pseudônimos de Liev Davidovich Bronstein, teve uma vida que lembra os melhores filmes de ação. Nascido numa família de classe média da atual Ucrânia em 1879, sai de casa antes dos 18 anos para se dedicar à luta política, travada no campo intelectual, como jornalista e escritor, e na ação prática. Perseguido, vai preso, exilado e foge da Sibéria numa improvável jornada tão precária quanto arriscada, até se reerguer para a luta política nos países onde consegue visto, França, Inglaterra e Estados Unidos. Vitoriosa a luta, é, ao lado de Lênin, um dos comandantes da grande revolução russa de 1917, até hoje um dos mais importantes movimentos de transformação da ordem política vigente num país continental e que durou até a Perestroika de Mikhail Gorbachev, em 1991. No poder, esquiva-se de ocupar cargos, mas nunca do comando, que ele exerce na função de Comissário do Povo para assuntos militares, de onde cria e organiza o poderoso Exército Vermelho soviético. De temperamento explosivo, irredutível nas suas posições, não tarda bater de frente com outros camaradas revolucionários, sobretudo com o que vem a ser seu implacável adversário, inimigo e, por fim, responsável por sua morte décadas depois: Josef Stalin, secretário-geral do PC. Sua derrocada, de grande líder da revolução a expurgado do regime, se concretiza sobretudo após a morte do comandante maior, Lênin, que tinha nele a preferência para sucedê-lo. A partir daí enfrenta todos os tipos de dificuldades, sabotagem e perseguição, criando condições para cair em desgraça e ser submetido ao escárnio público. Bem verdade que ele também deu sua contribuição à própria ruína, seja em minimizar crises, desprezar aliados e subestimar adversários. Inicia então, já fora da URSS, um calvário de fugas que começa por uma ilha pertencente a Turquia, depois Noruega e, finalmente, o México. Temido pela direita nos países onde passava, era igualmente combatido pelos partidos de esquerda, na época, todos eles, de inspiração soviética. Portanto, é de se imaginar que ninguém queria conversa com um sujeito com essas posições para não se indispor com o secretário-geral do PC soviético. Enquanto Stalin implanta um dos maiores regimes de terror da história, com a morte de milhões de pessoas (estima-se em 20 milhões as suas vítimas), o líder bolchevique empreende uma batalha política através do jornalismo e da militância entre seguidores por todo o mundo. A história heroica e trágica desse ícone da esquerda no mundial é contada no livro Trotsky – Uma Biografia, do inglês Robert Service, professor de história da Rússia da Universidade de Oxford, um calhamaço de quase 800 páginas que, ao fazer um recorrido sobre a vida do revolucionário, percorre paralelamente a própria história da revolução que mudou o mundo. Mergulhar em tanta história e nas querelas e disputas que precederam a derrubada do regime dos czares na Rússia e, depois, no turbulento desenrolar de uma das mais importantes transformações da história, significa ter que esmiuçar as ações de cada ator participante do processo. Para isso o autor precisou de tantas páginas e de 52 capítulos. A leitura às vezes cansa, com tantos detalhes, vai e vens de posições, nomes, datas, lugares etc. Principalmente se o leitor for pouco familiarizado com o assunto ou não tenha muito interesse em História. Mas vale a pena, sobretudo se ele desejar compreender mais o trepidante século XX e o cenário que preparou o disléxico século atual. Logo depois das primeiras 100 páginas, tem-se a impressão de que o biografado é um ser todo feito de egoísmo, focado sempre e tão somente na militância política. Casa muito cedo com Alexandra, companheira de luta política, tem duas filhas e logo as abandonam na Sibéria, cumprindo um exílio interno motivado pela sua militância revolucionária. Ao fugir, durante o périplo por vários países, se envolve com uma russa de nome Natalia numa dessas paragens e se casa novamente em Paris. Esta será sua mulher até o fim da vida, com a qual tem mais dois filhos, ambos homens. Desde cedo, alcança notoriedade pelo trabalho intelectual, escrevendo em jornais, publicando panfletos, ensaios e teses políticas. Tem uma boa formação cultural, exercendo a função de crítico de áreas como literatura e teatro, dono de um estilo único, de texto contundente e literário. Ao longo da vida, fundou ou participou da fundação de diversos periódicos, entre eles o Pravda, em português “A Isca”, o grande veículo impresso da extinta União Soviética. O excessivo gosto pela atividade intelectual tomava parte do tempo útil, ainda mais porque exercido por um caprichoso perfeccionista. De vida simples e espartana no plano doméstico, na vida pública cultivava uma imagem milimetricamente construída, projetada para exibir a figura do guerreiro, incansável e, sobretudo, incorruptível. Por tudo isso, por abandonar a mediocridade do cotidiano da política na manutenção dos espaços e por descuidar da capacidade dos seus inimigos, perdeu a cabeça. Perder mesmo não, mas foi com um golpe de picareta desferida em seu crânio que morreu na cidade do México em 1940, aos 60 anos, por um espião comunista contratado por Stalin para caçá-lo onde estivesse. Um livro fundamental para entender a história e conhecer de perto um homem de natureza essencialmente humana, em suas virtudes e defeitos.   Compartilhe: [...] Saiba mais...
30 30America/Fortaleza maio 30America/Fortaleza 2024Compartilhe:   Por Luciano Correia (*)   láuber Rocha disse certa vez que o cinema bastava em si, que não precisava de nada em particular para prendê-lo a uma cadeira sob a luz mágica projetada desde o fundo da sala. E assim sendo, tudo no cinema é simplesmente encantador. Quando disse isso, podia estar fazendo teatro, falsa modéstia ou deboche, mas, vá lá, tudo é possível, até mesmo que ele estivesse sendo sincero. Na sua lógica, não existe filme ruim. De Gláuber, damos um pulo até um filme de Hollywood, com sua Los Angeles como pano de fundo. O filme era Short Cuts – Cenas da Vida, dirigido por Robert Altman, de 1993. Me encantou nele a impressão de que não havia um argumento bem amarrado, quiçá não havia nem mesmo um roteiro prévio. Não estou dizendo que o filme não tinha argumento nem roteiro, mas tive essa impressão. Um filme sem dramatização, como se a história fosse o fato de não haver história, no sentido estrito. Era como se a banalidade do cotidiano fosse a matéria-prima capturada pelo diretor. Se em Gláuber a maquinação cinematográfica, do roteiro aos enquadramentos, efeitos e outros ingredientes, independente do conteúdo, lhe dá o prazer de consumir o cinema pelo cinema, seja ele o que for, em Altman a importância da linguagem chega a um nível de sofisticação tão refinado que a pura ausência de narrativa é também uma forma de narrativa. Foi pensando nessas coisas que vi Dias Perfeitos, de Wim Wenders, esse celebrado mágico que já nos deu Paris, Texas, Asas do Desejo e Buena Vista Social Clube, entre outros. Não se trata dessa história de cinema independente, ou anti-Hollywood, até porque Wenders é um diretor do mainstream. Mas é de uma delicadeza que nos faz pensar em outro tipo de cinema. Imagino essa geração da cultura fast food, habituada aos streaming e aos jogos eletrônicos, já distantes mil anos da TV tradicional, vendo um trabalho desses. A narrativa se passa lenta, silenciosa, cheia de claros não preenchidos. Se o cinemão comercial dramatiza radicalmente a vida real, aqui a realidade ganha para o filme em calor e sofreguidão, emoção e intensidade. Nem por isso Dias Perfeitos deixa de emocionar. Aliás, esse sentimento nos assalta ainda no início, quando nos damos conta de que, de fato, nada de extraordinário vai acontecer, nenhuma bomba, mortes sangrentas ou carros se espatifando em penhascos. É justamente aí que nos emocionamos, com a simplicidade do personagem Hirayama, um solitário sessentão (?) caminhando diariamente para cumprir sua rotina de gari na cidade de Tóquio, retratada nos seus jardins, banheiros, becos e bodegas. Até a megalópolis aparece tranquila, singela e acolhedora, com seus moradores peculiares. A vida simples de Hirayama e a maneira suave com que se relaciona com as coisas e as pessoas são uma espécie de oração à beleza da vida sem os penduricalhos que inventamos para criar dependência e nos fazer sofrer. Hirayama carrega dentro de si a dor de grandes frustrações, mas essa dor nunca salta à vista de ninguém, nem dele mesmo. Pelo contrário, a dedicação com que desempenha sua humilde função não tira o prazer das pequenas coisas, de jogar conversa fora no boteco onde bebe o mesmo drink todos os dias, como não deixa de se espantar com a frieza dos habitantes da selva de pedra que é Tóquio, como a mãe da menina que ele ajuda. A menina, comovida, dispara tchauzinhos de gratidão e carinho para aquele homem de bom coração, enquanto a mãe, ríspida, foge dele como se fosse um molestador. Do nada, como começa, o filme termina. E aí reside sua força e magia. Wenders, esse bruxo de olhar e alma grandiosos, mais uma vez captura nas suas lentes o lirismo do cotidiano.   Compartilhe: [...] Saiba mais...
23 23America/Fortaleza maio 23America/Fortaleza 2024Compartilhe:   Por Luciano Correia (*)   futebol e sua magia. A Associação Olímpica de Itabaiana entrou em campo hoje à tarde na Arena Pernambuco, um dos estádios que vai realizar jogos pelo mundial feminino. Do outro lado, o Retrô, um time construído por um ex-dirigente do Sport Recife, um desses clubes planejados pela visão empresarial, de gente que sabe fazer futebol, ganhar títulos e dinheiro – sobretudo dinheiro – porque nesse país ninguém é de ferro. De um lado, um sofrido clube que resiste praticamente sem apoio do mesquinho comércio local, feito, pois, de homens mesquinhos. Resiste aos árbitros camaradas do futebol sergipano, que torcem, em estúpida maioria, pelo Confiança, enquanto os que não apitam para o Dragão, mexem suas palhas nos gramados para o Sergipe. Do outro, o Retrô, cada vez mais ranqueado no futebol pernambucano e nordestino, com uma folha salarial cinco vezes maior do que a do Tremendão da Serra. O futebol e suas artimanhas. O atleta Fernandinho, ex-São Paulo, Atlético Mineiro, Grêmio e clubes do exterior, é o maior salário de todo o Nordeste, mesmo se comparado com tubarões como Sport, Bahia e Fortaleza. Foi esse time que pegou o Tricolor da Serra em casa hoje à tarde. A cidade de Itabaiana está de alma em festa: seu querido e sofrido Tremendão bateu o poderoso Retrô por 2 a 1. O Retrô, sim, tem uma folha salarial maior do que a do glorioso Santa Cruz, aquele que, mesmo em peladas do estadual, bota 50 mil torcedores no Arruda. O futebol e suas manhas. O Itabaiana fez um a zero antes de dez minutos de jogo. O juiz anulou. Depois fez um gol daqueles que nem o saudoso Armando Marques anularia. Passo seguinte, teve dois pênaltis claros anulados, daqueles que nem os apitadores pró Sergipe e Confiança anulariam. Daí o Retrô se sentiu, de fato, em casa. Fez o gol de empate. O futebol e sua caixinha de surpresas. O time da Serra de Itabaiana foi melhor em 80 dos 90 minutos do jogo, isto se a partida, como em todos os quadrantes dessa terra plana, fosse jogada em 90 minutos. Como o rio só corre pro mar, em Pernambuco do rico Retrô a peleja durou 54 minutos. Mas os ceboleiros se lembraram que foram campeões do Nordeste em 1971, e essa memória foi decisiva para o gol aos 40 do segundo tempo. Como os pênaltis anulados e a marcação cruel contra o clube sergipano não funcionaram, um último recurso do amigo do apito: o juiz deu 6 minutos de acréscimo, como já citado. O futebol e a lei de Deus. Como essa prorrogação infame ainda acusava domínio sergipano, o incrível apitador resolveu dar mais três. Só que hoje foi daquelas tardes em que Deus entrou em campo, era o décimo segundo jogador fardado com as cores da gloriosa revolução francesa. A cidade e o time do Itabaiana fizeram história mais uma vez na enciclopédia do futebol nordestino. Em tempo: Eu mesmo não, que sou um pacifista e apaixonado pelo futebol sergipano. Mas o filósofo Mané Veneno, celebridade das ruas do Augusto Franco, vibrou com a derrota do Sergipe ontem, em casa, para o modesto Petrolina, confirmando sua posição na lanterninha. E mais ainda com a derrota do Dragão (Draguinha?) para a Ferroviária de Araraquara e se afundando na rabada da Série C. Sim, o Itabaiana é o líder de seu grupo, entre os quatro que passam para a fase seguinte. * Essa crônica foi escrita na tarde do domingo, pouco depois da partida narrada por este cronista esportivo da várzea, mas resolvi mantê-la no tempo do domingo, para não retirar o calor da hora que me moveu a escrevê-la.   Compartilhe: [...] Saiba mais...
25 25America/Fortaleza abril 25America/Fortaleza 2024Compartilhe: Por Luciano Correia (*)   jornalista Aparício Torelly, o célebre Barão de Itararé, dizia que de onde se espera é que não sai nada mesmo. Isso também pode ser dito de outra forma: aquilo que já começa errado, só pode terminar errado. Essa semana nos brindou com uma dessas peças produzidas para enriquecer nosso estoque de grandes bobagens, o famoso Festival de Besteiras que Assola o País, o Febeapá de Sérgio Porto, também conhecido por Stanislaw Ponte Preta. A pérola saiu aqui do lado, em Pernambuco, quando o presidente do TJ local, Ricardo Paes Barreto anunciou a implantação de uma Calçada da Fama, à imagem e semelhança daquela via glamourosa que eternizou as estrelas de Hollywood numa calçada de Los Angeles. Fiquei pensando como uma genialidade dessas consegue prosperar numa esfera tão sofisticada quanto a cabeça de um poder importantíssimo, sério, com tantas atribuições e desafios a cumprir na sua missão. Não sei se o desafortunado desembargador (desafortunado de bom senso, se me entendem, porque de resto…) consultou assessores sobre a conveniência de realizar seu projeto, quiçá saiu da cabeça de outra pessoa, um colega de toga, um publicitário em busca de uma causa e de 30 dinheiros. Já podíamos ver a comoção dos visitantes do mais novo ponto turístico do Nordeste diante das mãozinhas das vossas excelências. “Olha que forte a mão do doutor José dos Santos, de onde saíram tantas sentenças históricas”. E ainda: “Essas mãozinhas de doutor Antônio Silva bateram o martelo contra bandidos e salafrários, todos postos para ver o sol quadrado nas instalações de um xilindró”. Uma mais taradinha, quase suspirando: “Olha que mão grande tinha o doutor João. Imagino como era gostoso receber seus carinhos”. Mas isso nem importa tanto. O espantoso é saber que a ideia, entre sua concepção no cérebro do criador e o anúncio da implantação, correu trecho entre os burocratas que corporificam a inquebrantável cadeia dos trâmites no serviço público. É incrível pensar que não houve um mané qualquer, ou alguém mais crítico, com a coragem de avisar que aquilo ia dar… em merda, numa monumental cagada, data vênia. A extraordinária figura dos assessores. Esses, como as coisas e os seres, que podem pertencer aos reinos animal, vegetal ou mineral, se dividem em várias categorias. Há os Aspone, o sujeito que, como diz o nome, faz porra nenhuma em nenhum lugar. Só comparece mesmo na folha de pagamento. Há assessores capazes, mas se melindram de corrigir seus superiores. Há os covardes, que jamais vão contrariar uma ideia vinda do andar de cima. E há os bajuladores contumazes, que turbinam a ideia, botam pilha diante do seu autor, buscando acumular mais pontos nas milhagens de um puxa saco e achar um novo meio de agradá-lo. No caso do pobre presidente do TJ pernambucano, nenhum assessor ou amigo se ergueu contra a consumação de uma verdadeira ideia de jerico. Ele, por seu turno, desligou o desconfiômetro durante toda a gestação de sua cria e ignorou os apelos do seu anjo da guarda. O resultado foi o que vimos: a calçada, que já estava em execução, e vai custar alguns trocados ao rico povo pernambucano, foi abortada como uma dessas coisas que jamais deveria ter ido além das elucubrações de um magistrado em busca de uma causa. Uma diarreia mental para embotar a grandeza e o espírito do bravo e querido Pernambuco.   Compartilhe: [...] Saiba mais...
11 11America/Fortaleza abril 11America/Fortaleza 2024Compartilhe: Por Luciano Correia (*)   e vez em quando, a morte de uma pessoa nos impacta e nos impõe a constatação de que estamos cada vez mais pobres de grandes homens e mulheres. Ziraldo é o mais recente dos desaparecidos que nos traz essa sensação. Eu era um garoto que amava a música e a cultura de forma geral e começava a me interessar por política. Foi quando ingressei no curso de Engenharia Química da UFS, aos 18 anos. Logo nos primeiros meses entrei para o movimento estudantil e o Diretório Acadêmico se tornou minha segunda casa. Foi onde entrei em contato com outros discos maravilhosos, autores e livros, e com o semanário Pasquim. O Pasquim foi o esteio de toda uma geração crítica, aliás, mais que isso, de gente de todas as áreas que na época resistia à ditadura, razão pela qual sofreu sucessivas represálias e levou à prisão alguns dos seus colaboradores. O Pasquim fazia o jornalismo que os jornalões não tinham peito ou interesse em fazer. Por isso, renovou a linguagem dos jornais impressos, influenciando colunas e editorias a serem mais vibrantes, menos chatos e mais independentes em relação ao poder político. E era um esculacho só, do início ao fim. Os militares e seus serviçais jamais conseguiram turvar o excelente bom humor do jornal em qualquer situação. O Pasquim era informação refinada, feita por colaboradores de altíssima qualidade, com muitas fotos, cartuns e entrevistas absolutamente geniais. Ali conheci e me apaixonei de imediato pelo texto literário de Fausto Wolf, me encantei com Paulo Francis e Ivan Lessa e curti as tirinhas de Henfil. Nunca esqueço de uma entrevista com Elomar, ainda na década de 1980, uma verdadeira tese sobre nossa culta e bela língua portuguesa. E de outra em particular, com o antropólogo Nunes Pereira, uma das figuras mais geniais da cultura brasileira, infelizmente ofuscado pelos holofotes que só viram Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro. No centro e no turbilhão desse luminoso oásis na história da imprensa brasileira, a mão forte e bem humorada de Ziraldo e Jaguar, fazendo arte também nas edições semanais, mas cuidando, sobretudo, na manutenção do sonho. O velho Pasca sobreviveu até quando pôde, ou até quando foi possível, numa sociedade já livre da ditadura, mais aberta e com muitos novos atores emergindo na cena miditática. Calhou também que o tempo chegou para seus criadores. No caso de Ziraldo, além do Pasquim, trilhou desde cedo outros caminhos em revistas da grande imprensa, publicação de quadrinhos e de livros de prosa. Fui entrevistá-lo em Aracaju quando comandei um programa na extinta TV Caju, um canal por assinatura que desapareceu sem que nenhum intelectual, ou, vá lá, um reles jornalista, tenha acusado seu lamentável desaparecimento. Sempre fui avesso a paparicos com celebridades – já entrevistei vários artistas e três presidentes da República, sem sofrer do complexo de vira-latas. Mas não consegui reagir ao irresistível encanto pessoal de Ziraldo, uma figura brilhante, afetuosa, de inteligência rara e rápida. Ziraldo foi durante toda a vida, a exemplo de Millôr Fernandes, um grande ganhador de dinheiro, um homem que sempre soube dar seu preço e cobrá-lo sem concessões. E era ao mesmo tempo essa figura iluminada, como dizem alguns, uma pessoa espiritualizada. Talvez por isso tenha desde cedo compreendido a linguagem das crianças, criando personagens e fazendo histórias, com uma ternura que poucos poetas tradicionais alcançaram. Dentro desse oceano de obras infantis, do Menino Maluquinho ao Flicts, a invenção de uma cor, uma em particular me comoveu: o romance Vito Grandam, a comovente história de um sobrinho cujo herói é um tio um pouco mais velho. O tio já se encaminha para uma idade adulta, mas vive as últimas aventuras de uma criança fabulosa, cheia de histórias, estripulias e sonhos. Quando li, fiquei pensando como um homem já de meia idade, jornalista calejado pela perseguição da ditadura, conseguiu entrar daquela forma no universo psíquico e lúdico de duas crianças, criando uma coisa tão bela e simples ao mesmo tempo. Certamente foi por essas qualidades de Ziraldo, essa capacidade de ser sincero e ir tão fundo em tudo o que realizou, que fez a vida lhe soar como algo leve, sem mágoas guardadas e com uma capacidade incrível de extrair poesia das coisas banais do cotidiano. Para uma pessoa assim, até a perseguida (e difícil) arte de ganhar dinheiro vem na gravidade, sem nunca ter sido uma obsessão. No fim, nem importa muito, porque as coisas materiais, para gente assim, nunca são as primeiras coisas, sobretudo, como dizia Pessoa, quando a alma não é pequena. E a alma de Ziraldo era do tamanho do mundo. Compartilhe: [...] Saiba mais...
4 04America/Fortaleza abril 04America/Fortaleza 2024Compartilhe: Por Luciano Correia (*)   uando contei para um amigo que minha mulher estava grávida, ele vaticinou: “Você vai rejuvenescer”. Não duvidei, apesar de que me assaltavam as inseguranças e incertezas decorrentes de ser pai depois dos 60, num mundo tão intoxicado, de retrocessos nas condições de vida, de guerras com risco de levar ao Armagedon e com a natureza pegando fogo, devolvendo toda sorte de violências cometidas desde que o homem foi avançando em cada conquista, do domínio do fogo à descoberta da roda, num crescendo até chegar nos perigosos dias atuais. Ouvia de gente mais velha uma queixa constante pelas perdas sucessivas de parentes e amigos, restando um vazio melancólico, a perda das ilusões e das utopias. Não sei se eles pensavam assim, mas comigo essa impressão chegou cedo. Aos 28 perdi um precioso amigo, Fernando Sávio, referência pessoal e literária que se considerava, como dizia ele, “um pai profissional”, parceiro de farras e infinitas e maravilhosas histórias. Depois veio Chico Mocó, um amigo irmão, genial, uma espécie de Nelson Rodrigues da crônica oral, que deixou este mundo antes dos 50. A partir daí, foi uma enfieira de grandes amigos, um atrás do outro. Alguns que imaginei insubstituíveis. E, de fato, são. Para escurecer ainda mais o cenário já desalentador, há a deterioração das amizades que ficam, pelos motivos mais diferentes, mas sempre embalada nessa aura de refregas, agressões, ironias e toda sorte de estranhamentos que a gente jamais esperaria vindos de pessoas queridas. Dos demais, dessa juventude cuja bandeira de vida é o “tudo já”, de todos os direitos e quase nenhum dever, a gente não esperava nada mesmo. É assustador ver que essa onda belicosa que rege as relações atuais, sobretudo no pantanoso terreno virtual, também contaminou nossos velhos e sábios amigos. Há que descontar, nesse inventário de perdas, aquelas que não resistiram à fadiga, conceito vindo da engenharia que denota envelhecimento, obsolescência e morte. De fato, algumas dessas amizades construídas com muita lógica e esmero em épocas remotas, relações que nos pareciam duradouras, foram perdendo o sentido, o interesse de uma pela outra. Como num casamento: basta que um não queira, morreu Maria Preá. Mas esse não é um processo indolor, que se dê com naturalidade e não deixe de acionar um certo saudosismo das coisas incríveis que vivemos com essas pessoas: conversas, viagens, bebedeiras e – claro – as incontáveis refregas. Desde que meu amigo falou do rejuvenescimento que o pequeno João traria para a minha vida, fiquei pensando em como isso deveria se materializar. Finalmente eu ficaria mais magro, pra calçar os sapatos com alguma dignidade, sem a obstrução de um infame calombo? Encerraria minha longuíssima carreira de bebedor, de tão nefasta que tem se manifestado nas décadas mais recentes? Tomaria vergonha e finalmente entraria numa dessas academias de ginástica para repor músculos perdidos em anos de inércia? As perguntas fundamentais nunca têm resposta, sejam elas trivialidades como essas ou inquietações existenciais mais profundas. Afinal, qual a chave do que é certo ou errado? Onde está o roteiro das coisas certas? É como imaginar que haveria um hipotético manual de instruções para a vida. Tudo é acaso e circunstância, já disseram. Talvez eu comece a tomar algumas providências, para meu bem e para que meu bebê tenha um pai por alguns anos, mas é fato que o simples compromisso de ajudar a criá-lo, de ter que estar próximo o máximo possível, já configura o cenário de um mundo novo para mim. Com as perdas que tive que aceitar, mais os distanciamentos impostos por amigos ainda vivos e, pasmem, de parentes, a chegada do João me flagra numa situação de disponibilidade, tempo e coração dispostos a construir com essa nova pessoa em meu mundo uma relação, talvez, menos propícia aos defeitos das outras, ou, pelo menos, livre das intoxicações que regem as sociabilidades na quadra atual. Na realidade, vejo que meu velho mundo, por tudo o que apresentei como causas e sintomas, foi ficando pra trás, sendo ocupado cada vez mais pelo mundo mágico de Jão Cabeça Quente, o Quebra-Tudo, o Berro Grosso que diariamente liga no automático às 5 da manhã e só desliga sabe-se lá que hora da noite.. O primeiro e maravilhoso ganho desse novo universo que se descortina é a minimização do mundo velho, suas certezas, verdades e mazelas. E, junto com a perda de importância das coisas, a das pessoas também, ou melhor, daquelas que as dobras do tempo tornaram irrelevantes ou as que fizeram questão de nos fustigar com algum ataque ou desprezo. No nosso filme do passado, essas imagens já não invocam boas experiências, despachando personagens dessas vivências para o limbo e esquecimento. Paralelamente, a chegada de uma pessoa por quem tenho total responsabilidade, e que terei de cuidar até quando for possível na extensão dos meus dias, traz de forma natural uma abertura de novos mundos, uma fantástica luminosidade sobre o banal cotidiano, minutos mágicos que valem, justamente, pela beleza da simplicidade. Compartilhe: [...] Saiba mais...
14 14America/Fortaleza março 14America/Fortaleza 2024Compartilhe: Por Luciano Correia   A Igreja Católica em Sergipe recebeu finalmente seu novo arcebispo. Já não era sem tempo, afinal, depois de alguns meses de vácuo total na liderança dessa secular instituição. Isto sem falar no ocaso provocado pela pior gestão de toda sua história, sob o comando do ex-arcebispo Dom João José Costa, marcada pela incompetência e desmandos na reforma do principal templo religioso do estado, a Catedral Metropolitana de Aracaju, até hoje inacabada. Acuado por todos os lados, por fogo interno e externo, o ex-arcebispo foi tragado pelas próprias contradições. Por um princípio da Física e da política, aqui estendido à religião, todo vácuo tende a ser ocupado. E foi. Vencido pelas críticas e denúncias relacionadas com a obra da catedral, o então chefe da Igreja permaneceu a maior parte da sua gestão na defensiva, na proporção em que outros sacerdotes subordinados ao seu comando desenvolveram bem sucedidas carreiras solo, pelo menos no campo midiático. Uns estrelaram programas de rádio, outros eram os donos da “hora da Ave Maria”, missas teatrais no melhor estilo pop. Aqui não vai nenhuma crítica ao desejo de líderes religiosos almejarem o status de celebridades, afinal, no atual mercado (ops!) religioso, quem não vende suas garrafas, não monta palanque para os fiéis. O tamanho do rebanho é proporcional à relevância com que cada igreja ou terreiro se afirma na sociedade. Reconheço que por trás de minhas observações talvez se esconda alguma má vontade com o desempenho medíocre do primeiro e segundo escalões da Santa Madre Iglesia em terras sergipanas, sobretudo quando lembro do imaginário construído na minha infância e juventude pelo desempenho de Dom Luciano Cabral Duarte. Dom Luciano, chamado por católicos sergipanos de “O Pastor”, foi um homem extremamente culto, único sergipano que alcançou a proeza de ser colunista semanal de um jornal de alcance nacional, a Folha de S. Paulo, um intelectual refinado, respeitado no país inteiro. Embora conservador, desenvolveu na região do baixo São Francisco um projeto (acreditem!) de reforma agrária. Eu mesmo, quando trabalhava no jornal Tribuna da Bahia, fui verificar in loco a dimensão desse projeto e publiquei matéria de página inteira no periódico baiano. Além de seu trabalho pastoral, foi um empreendedor extremamente competente, transformando a Rádio Cultura de Sergipe na emissora mais ouvida, com uma programação eclética, equilibrando jornalismo, música, variedades, cobertura esportiva e o trabalho evangelizador da instituição no estado. Papai não perdia sua célebre “A Hora Católica”, um sermão dominical que, mesmo para um menino ainda pouco interessado nas coisas do espírito, soava inteligível e interessante. Sem falar no exímio domínio da linguagem radiofônica, com uma voz grave, belíssima, uma das mais belas vozes que passaram pelo rádio sergipano. Nunca fui de igrejas, nem de religião, mas carreguei com orgulho o mesmo nome do pastor Dom Luciano, escolha de Papai para seu primogênito. Mais recentemente, conforme contei aqui no portal Só Sergipe (O batismo de João), tentei batizar meu filho João na única igreja que não se encontrava em recesso no final do ano, período em que os padrinhos, que moram na Suíça, estariam por aqui. Consegui até um padre que se dispôs a fazer a celebração, mas fui informado que o ato não poderia ser consumado, pois minha querida sobrinha Carol e seu marido Pierre não são casados no religioso, apenas no civil. Já ouvi de várias pessoas que isso não é regra geral e que pode ser flexibilizada conforme a vontade do padre celebrador, o que, no meu caso, não ocorreu. Mas não quis prosseguir com a polêmica. Para mim, com toda a honestidade da alma, não tenho dúvidas de que, ao perder a ovelha Jão Cabeça Quente, quem mais perdeu foi a Santa Madre. Aproveitei o ensejo, então, para encerrar minha interlocução com as celebridades eclesiásticas em questão. A chegada de novo comandante, quem sabe um pastor, como o saudoso Dom Luciano, talvez para poder trazer o alento às ovelhas abandonadas pelo circo midiático dos padres marqueteiros. Compartilhe: [...] Saiba mais...
22 22America/Fortaleza fevereiro 22America/Fortaleza 2024Compartilhe: Luciano Correia (*)   uas boas histórias contadas por um dos melhores contadores de histórias da imprensa, o jornalista baiano Sebastião Nery, filho de Jaguaquara, Bahia, aqui perto da gente. Em 1928, pouco antes da Revolução de 30, os conspiradores se articulavam dentro e fora do país. Oscar Pedroso Horta, jornalista do Diário da Noite, depois Estado de S. Paulo, faz uma perigosa viagem de monomotor de Santos a Porto Alegre e depois a Montevidéu, para levar uma encomenda de alguns mapas estratégicos para o movimento. Foi a pedido de Siqueira Campos, ele mesmo, o do movimento tenentista, herói do Forte de Copacabana e membro da Coluna Prestes, esse que dá nome a um importante bairro de Aracaju. Deveria entregar os tais mapas a Prestes, exilado no Uruguai. E agora é ele, Pedroso Horta, quem conta, a Sebastião Nery, no seu livro “Ninguém me contou, Eu vi”. Ainda do mesmo livro, conta Nery, de uma entrevista com Hélio Fernandes, da lendária Tribuna da Imprensa, do Rio de Janeiro. O irmão de Millôr conta que Golbery, o diabólico general que encantava até gente de esquerda (Glauber Rocha o chamou de gênio de raça, certa vez), era muito amigo de Carlos Lacerda. Mas brigaram no episódio do movimento para não dar posse ao presidente João Goulart. Jango, como se sabe, era o vice de Jânio, o tresloucado que renunciou pensando que o povo ia chamá-lo de volta. Como isso não se deu, e Goulart era temido pelos militares + UDN e a totalidade da burguesia nacional, começou uma conspiração para não permitir a posse de Jango, que, no dia da renúncia do presidente, estava em viagem à China. Como divergissem nas estratégias desse outro golpe, de amigos fraternos viraram inimigos figadais. Diz Hélio Fernandes, sobre o tal gênio da raça:   Compartilhe: [...] Saiba mais...
25 25America/Fortaleza janeiro 25America/Fortaleza 2024Compartilhe: Por Luciano Correia (*)   um dos programas que vejo no YouTube, o escritor Marcelo Mirisola faz um depoimento demolidor sobre o estado da arte da literatura, apontando para uma terrível conclusão: nessa quadra atual ela caminha apressadamente para a irrelevância. Quem fala isso não é um Zé qualquer, mas um nome bastante festejado nos caldeirões mais efervescentes da literatura brasileira, apesar de sustentar uma posição de maldito, uma espécie de outsider no mundinho bostífero das celebridades literárias que infestam as Flips da vida. E as Flips, como se sabe, tornaram-se quermesses comerciais para gozo & grana dos homens de marketing, das editoras puramente preocupadas em vender, vender e ponto final. Porque a literatura bruta, esteio da produção criativa das grandes narrativas, essa mesma corre em outros lugares, paralelo ao teatro bufão dessas feiras. Sim, há outra patacoada muito mais daninha à literatura: são as academias de letras que pululam em todos os cantos, como pragas, cumprindo uma missão justamente contrária ao que se propõe, ou seja, de promover a produção literária e, sobretudo, desenvolver políticas de incentivo à criação artística, de renovação das linguagens, valorização do livro etc. Em vez disso, esses ridículos clubes de comedores de empada, no dizer de Amaral Cavalcante, funcionam como túmulo da boa literatura, com sua cafonice e seu bolor incrustados nas batas de seus pretensiosos acadêmicos. Este longevo escrevinhador de crônicas pede desculpas por ter cedido ao falso culto literário e ter entrado em uma delas, na cidade onde não nasci, mas me criei e até hoje mantenho laços profundos. De Itabaiana me interessa tudo, a começar pela minha maior paixão entre as paixões de um homem, a Associação Olímpica de Itabaiana. De sua vetusta academia não quero nem saber, e fiquem à vontade os que se arvorarem a propor minha expulsão. No meu caso, não fui parar lá por vaidade ou pelo brilho efêmero de seus saraus, mas atendendo ao apelo de um velho amigo, o historiador e escritor Vladimir Souza Carvalho, este sim, autor de fôlego, inventivo, um dos últimos na galeria dos grandes de Sergipe D’El Rey. Voltando a Mirisola, cujos livros leio desde o final dos anos noventa, além de sua literatura às vezes ácida, ele também incorpora o papel de um encrenqueiro nato, com sua esculhambação e desprezo por gente como Caetano Veloso, Paulo Coelho e a própria Flip de Paraty, cuja edição de 2006 contou com sua apreciação de “escritor convidado”, um relato cáustico publicado na internet, porque o jornal que encomendara o texto, o Zero Hora de Porto Alegre, roeu a corda e se acovardou. Claro que essa atitude típica de franco atirador vende livros e rende bons lucros, sobretudo. Mirisola não joga para todos, mas para a plateia dele, da qual faço parte, mas sem o alarde dos macacos de auditório. Mas o que menos importa aqui é saber se ele age por marketing pessoal ou não. Eu nem creio nisso. O relevante é sua visão sombria sobre os rumos da literatura, tragada pela onda comercial e banalizadora do mercado atual, despejando nas prateleiras títulos baseados em temas, formatos e linguagens pasteurizados. Isso sem falar na farsa das autoajudas e, mais recentemente, da onda politicamente correta e dos identitários, implantando uma reducionista política de cotas em tudo, cerceando abordagens que destoam de suas cartilhas e, com isso, incorrendo em novas formas de fascismo. Que não deixemos de lembrar em cada artigo: a ação deletéria das bolhas, o ataque implacável e violento à figura do outro, a intolerância com as diferenças, isto não são propriedades da praga bolsonarista, mas também de uma certa esquerda que trocou as conquistas clássicas e a luta por justiça social pela fragmentação, pelas causas individuais e específicas em detrimento do todo, da totalidade, da busca de consensos. Num ambiente tão polarizado e patrulhado pelas minicertezas de cada facção, sobra para a criatividade artística, com a literatura sendo uma das primeiras vítimas. Contraditoriamente, justo no momento em que a humanidade dispõe de ferramentas que radicalizam as trocas de conteúdos, o mundo sofre um lastimável empobrecimento cultural, daí o alerta de Marcelo Mirisola. No andar das coisas, leitor de livros vai se tornando um personagem esquisito, de hábitos estranhos, um fora de moda deslocado do seu tempo. Trata-se do mesmo fenômeno que gradativamente vem precarizando o jornalismo e substituindo-o pelo vale tudo das redes midiáticas, que são tudo, menos sociais. Os jornais desapareceram no mundo inteiro e restam poucas empresas resistindo na medida do possível, após uma drástica redução do número de assinantes e de receitas publicitárias. O mesmo com as revistas. A própria radiodifusão, tão senhoras de si até ontem, com poder de erguer e destruir governos, definha entre os públicos mais jovens. Um teste rápido: quem, dessas novas gerações, ainda assiste a telenovelas? Programas de rádio? Enfim, sós: seus apresentadores sensacionalistas e seus espetáculos, cada vez mais sem público. Com a erosão desse velho mundo analógico, o valor da cultura é ressignificado, quando não banido. Ser intelectual não diz mais nada para essa gente que domina a esfera pública, nos seus diferentes níveis, nem confere mais certo charme aos que pousavam à frente de estantes. Os governantes, antes tão ciosos em manter pelo menos a aparência alguma erudição verbal, hoje só pensam nas selfies junto às multidões que lotam suas micaretas o ano todo. É desse mundo que Mirisola desembarca para sua literatura insular. E do qual eu também pretendo descer.   Compartilhe: [...] Saiba mais...
23 23America/Fortaleza dezembro 23America/Fortaleza 2023Compartilhe: Por Luciano Correia (*)   Vaticano aprovou a bênção a casais do mesmo sexo. Uma mudança radical no anacronismo e intransigência da velha Madre Iglesia? Nem tanto. Num contexto em que o teatro midiático é mais importante do que a essência das decisões, a jogada de marketing põe a Igreja em sintonia com o frisson de um mundo pautado pelas redes digitais. O Papa Francisco é, sem dúvidas, o mais progressista e tolerante dos últimos tempos, mas não deixa de flertar com o sucesso na opinião pública. O Papa, agora sim, é pop. Na Folha de S. Paulo dessa sexta, o colunista Marcos Augusto Gonçalves diz que a iniciativa não vai além de uma passada de pano na hipocrisia reinante na instituição, marcada ao longo da história, segundo ele, por acusações de sodomia e incesto, dentre outras que pontuam a alegre vida sexual do papado e sacerdotes no mundo inteiro. Os registros estão aí, disponíveis na mídia e persistentes até os dias atuais. Volta e meia nos deparamos com um novo e rumoroso escândalo envolvendo padres, bispos e religiosos de maior coturno em situações de abuso a menores, principalmente. No Canadá, desde o século 19 até praticamente o dia de ontem, uma monstruosidade foi perpetrada pela organização, sem qualquer condenação ou repúdio da opinião pública mundial. Leiam a mesma Folha, de 22 de julho de 2022: “Aproximadamente 150 mil crianças indígenas foram separadas de suas famílias e matriculadas à força em 139 internatos do país durante o final do século 19 até a década de 1990. Investigações posteriores revelaram que muitas delas foram espancadas e abusadas sexualmente por diretores e professores. Estima-se que aproximadamente 6.000 alunos tenham morrido de doenças, negligência e desnutrição.” Ateu mais ou menos convicto desde os 15 anos, não levei em conta esse histórico para alimentar restrições à Santa Madre Iglesia. Pelo contrário, para atender ao apelo da mãe do pequeno João, concordei em batizá-lo sob a liturgia que caracteriza esta cerimônia há séculos. Para tanto, consegui a boa vontade de um padre amigo, também advogado e intelectual, um homem arejado e tolerante, na linha do simpático Papa Francisco. Para padrinhos, escolhi minha sobrinha Carol, uma menina de ouro, das pessoas mais íntegras que conheço, ao lado do marido Pierre, franco-português que há muito tempo caiu nas graças de nossa grande família pela retidão de caráter, generosidade e inteligência. De onde vive, em Genebra, acompanha com interesse e fervor os jogos da nossa querida Associação Olímpica de Itabaiana, fardado a caráter com a camisa tricolor. Como os padrinhos só dispunham de escassos 15 dias nesse cajueiro dos papagaios, consegui a generosidade do padre Zé Lima, da paróquia de Santa Dulce dos Pobres, para celebrar o batismo em 7 de janeiro próximo. Eis que, no primeiro movimento para cumprir o périplo dos protocolos necessários para consumar o sagrado ato, somos barrados no primeiro obstáculo por uma exigência medieval da vetusta Igreja: os padrinhos, desgraçadamente, mesmo sendo gente de bem, professando as leis de Deus, fazendo caridade e cultivando os melhores valores da família, não possuem na gaveta um papel que atesta seu casamento nos mandamentos da embolorada instituição. Como diziam os samangos de qualquer cidade nordestina nos anos de chumbo da ditadura: ‘ordis são ordis’. Sem a devida comprovação do matrimônio religioso na firma em questão, nada feito. Entre triste e desapontado, não deixo de constatar que mesmo uma organização que se esforça para melhorar sua imagem, fazendo mea culpas e permitindo pequenas aberturas, dirige seu foco para as ações que dão ibope, para ficar bem no caldeirão das bolhas das redes, qualhadas dos identitários, politicamente corretos e outros quejandos, enquanto reivindicações inexpressivas como um simples pedido de batismo são ignoradas pela pauta absolutamente midiática da patrocinadora da Inquisição e de outros crimes contra a humanidade. O pleito do inocente João, em meio ao burburinho dos padres marqueteiros e cantores de TV, não comove o dito sentimento cristão anunciado pela Igreja Católica: João seguirá pagão.   Compartilhe: [...] Saiba mais...
14 14America/Fortaleza dezembro 14America/Fortaleza 2023Compartilhe: Por Luciano Correia (*)   ui a Cuba pelo prazer do lugar, das suas gentes, sua música maravilhosa e a luz especial que brilha em toda a ilha. Da primeira vez, a estudo; da segunda, a trabalho; e desta vez, a passeio. Pernas então pra que te quero, se estamos de férias? Assim, equilibramos visitas a museus, parques e locais históricos com a velha e boa vida mundana, leia-se: rum, charuto, música e boas conversas. Como a excursão percorreu boa parte do país, gastamos um bom tempo também em longas viagens de ônibus, o que, para mim, é uma delícia. Sempre gostei de viajar de carro, olhando a paisagem e parando para comprar iguarias do local. Isso, quando vou a Caruaru, Campina Grande ou Itaparica. Em Cuba, não há muitas iguarias nas paragens. Mas Deus existe nos detalhes, não é? Entre Camaguey e Santiago de Cuba há um ponto de parada para comida que, acreditem, não havia água mineral para eu cumprir minha meta matinal recomendada por médicos e pelo mundo todo (no turno vespertino eu tenho acerto com outras religiões). Na falta de água… havia um chope no caminho. Isso mesmo: uma bruta caneca de 500 ml do melhor chope do mundo, a módicos 200 pesos, algo como quatro modestos reais. Mas a viagem só se faz completa com seus personagens. E, nesse caso, foram muitos. Figuras que, além de terem cruzado nossa vida numa situação especial, de acolhimento, parceria ou em encontros fortuitos, iluminaram um pouco nossa passagem pelo país, com fortes indícios de que se tornarão amigos para sempre. Começando por Havana, no apartamento onde fiquei com o amigo aracajuano Ricardo Nunes, sob as graças e a guarda do simpaticíssimo casal Tony-Irma. Ele, professor de História das graduações e mestrados da Universidade de Havana; ela, uma dona de casa muito culta e antenada com as coisas do mundo. A casa do casal, a menos de 500 metros do Capitólio, tomamos o melhor café de toda a Cuba, aliás, um desayuno completo, com especialidades preparadas com esmero e carinho pelos dois. Em Trinidad, dando uma última banda pelas ruas para tomar uma saideira, dei de cara, literalmente, com a ruiva Yoanei, uma bailarina que se apresenta com um grupo de dança cubana em hotéis e pontos turísticos pelas principais cidades. Vinha ela por uma rua e este pobre rapaz sedento de cerveja pela outra, quando quase trombamos nossas ventas no encontro das ruas. “Que pasa chica, donde vas asi demasiado apurada?” A muchacha: “para aquela festa ali”, e apontou uma escadaria onde, no alto, um show maravilhoso da melhor música cubana acontecia num palco iluminado. Foi minha primeira grande aula de salsa, com cerveja e charutos até a madrugada. Na mesma Trinidad, na manhã seguinte, topei com outra diaba em forma de gente, a morena Liany, funcionária de uma lojinha de guayaberas e souvenirs. Usava um vestidinho florido, tão belo quanto curto, que fez a festa dos olhos de quem nesta manhã pousou na modesta lojinha. À noite, novamente em busca da última cerveja, meus solitários pés e o infalível Deus do Acaso me fizeram encontrar com a guapa morena na rua principal da cidade. De novo, música e mojitos dentro da noite veloz. De Trinidad a Santiago, longa marcha, fizemos uma parada em Cienfuegos, cidade elegante, bem conservada, com belos edifícios. Como o país está em regime de contenção total de energia, a recepção foi à luz da lua nova, ou seja, no breu da noite. Nem deu tempo de conhecer gente local. Foi parada técnica com jantar e retirada na manhã seguinte. Santiago de Cuba. Jamais imaginei que esta cidade me reservava tantas surpresas agradáveis, com uma arquitetura imponente e bem cuidada, falando a linguagem das cidades internacionais, sempre visitadas por turistas. Aqui no Brasil, é raro, raríssimo. São poucas as cidades que recebem turistas estrangeiros. não que ter estrangeiros nas ruas seja puramente um indicador, mas para a economia, sim. Em Santiago, a porta de entrada para me apaixonar pelos seus encantos foi a música, nas ruas ou casas de espetáculos. Ali, na Casa da Trova, conheci a serelepe Alina, uma negra de 55 anos, um foguete dançando os ritmos locais, alegre como uma criança, pobre como um franciscano (os de antigamente, se me entendem). De dia, andando à toa pelas calles, um amigo que me acompanhava foi vítima de uma daquelas ciladas cruéis que apronta o destino, digo o intestino. Vendo sua cor ganhar um tom de amarelo-verde, fruto da agonia das tripas em plena revolução, fui pedir ajuda justamente na casa de… Alina. Santa coincidência, numa cidade de mais de 600 mil habitantes. Fiquei comovido com o estoicismo de uma moça com quase 60 anos, vivendo numa espécie de casebre, mas celebrando a vida todas as noites em seus vestidos brilhantes na pista da Casa da Trova. Alina foi um dos destinatários das dezenas de presentes humanitários que levei numa mala à parte. Foi uma alegria poder vê-la contente com meus agrados. Sim, o buraco nos fundos da casinha que servia de banheiro à família de Alina foi mais que suficiente para resolver todos os problemas do meu apertado amigo. Na Casa da Trova também conheci outra exímia bailarina, Daniela, filha de pais médicos que atualmente vivem no Rio de Janeiro. Negra bela e fogosa, Dani é um sucesso na pista e no coração dos frequentadores da noite santiagueira. Outra personagem marcante foi a proprietária da casa onde ficamos, Yolanda, mulata muito parecida com Omara Portuondo, também apreciadora de boleros mortíferos, que interpreta num timbre forte e dramático. Despachada e escrachada, foi logo avisando a mim e ao Ricardo assim que baixamos as malas na sua varanda: “Não dou a chave da casa a homens, porque eles perdem por aí, por cachaça ou pelas putas. Outra coisa: mulheres aqui, não! Se arranjarem alguma pela rua, fiquem por lá mesmo.” No dia seguinte eu brinquei: “Yolanda, vou precisar de uma chave. É que eu conheci umas meninas ontem na calle Boulevard”. Yolanda quase me expulsa quarto à fora. De volta a Havana, conheci Javier, dono de uma bicitáxi que me levou para um périplo por lojas estatais de charutos, cigarros e rum. Já avô, não exibia cansaço em conduzir seu meio de transporte e de vida pelas ruas de Centro Habana, desviando de gente, carros e outras bikes com uma maestria chapliniana, sempre com uma boa história pra contar. Na despedida, quando paguei a conta e deixei com ele um par de sapatos de couro de carneiro e algumas de minhas camisas floridas Made in Toritama, abriu um gigantesco sorriso com a boca escancarada cheia de dentes. Numa amena noite de domingo, peguei um táxi para a Fábrica de Arte, um diversificado centro cultural no bairro de Vedado, com salas de teatro, cinema, música, exposições e gente circulando e praticando o universal esporte do levantamento de copos. Ali conheci também María, atleta de basquetebol, segundo ela, da seleção cubana. Tímida, simpática e muito bonita, me levou por várias salas da Fábrica, contando coisas de sua vida, de amigos e parentes e da vida de esportista pelo mundo. Nos despedimos horas depois nas imediações do Capitólio, com a promessa de cerveza-e-rum na manhã seguinte, jamais cumprida graças a uma última olhada que fui dar no velho e querido Hotel Nacional, joia da cultura, história e arquitetura cubanas que me abrigou por três meses em 1989. Os cubanos dizem sempre: “asi es”. E esse tio, modestamente, declara: assim foi! Compartilhe: [...] Saiba mais...
1 01America/Fortaleza dezembro 01America/Fortaleza 2023Compartilhe: Por Luciano Correia (*)   uba respira, para desgosto dos ignorantes. As redes sociais digitais abriram a tampa do inferno e empoderou cada idiota que passou a dar opinião sobre tudo. Nelson Rodrigues já havia preconizado isso, décadas antes do surgimento da Internet. No Brasil esse fenômeno ganhou tintas especiais com a ascensão do movimento político mais estúpido em 129 anos de república, o bolsonarismo-miliciano. Assim, se já era arroz-de-festa falar mal de Cuba antes da eclosão das redes, onde cada imbecil é uma TV própria, com seguidores, imagine atualmente. Para decepção dos analistas de calçada, aviso que não vi mais sinais da revolução e muito menos do comunismo em Cuba. Nem eu nem grande parte da população. No meu DataLuc das ruas, é raro encontrar defensores fiéis, como o senhor Tony, dono do apartamento em que fiquei em Havana Velha, professor de História da Universidade de Havana. Se na primeira vez, em 1989, encontrei uma sociedade acomodada com os subsídios da pátria mãe do mundo socialista, a União Soviética, em 1997 assisti ao desespero e fome do chamado “período especial”, quando o governo da ilha teve que caminhar com as próprias pernas, sem ajuda internacional. Sem pernas pra andar, sucumbiu a uma das piores crises humanitárias do século passado. Desde a morte de Fidel em 2014, e o crescente apagamento da mística em torno dos heróis da Sierra Maestra, uma nova geração ascendeu ao poder, oriunda da velha burocracia partidária incrustada no Estado, sem carisma político e com alguma capacidade administrativa. Alguma. O suficiente para entender que, se não abrir a economia, não há saída num horizonte próximo. A novidade que encontro nessa minha terceira viagem é uma incipiente classe empreendedora, de micros e pequenos negócios, desde restaurantes caseiros, hostals ou pizzarias, dentre outros. Isso tem gerado renda, muita, para alguns. E empregos, para outros, com salários muito baixos, mas quem somos nós para falarmos de baixos salários da classe trabalhadora? Um enorme sopro nesta nova fase na vida da ilha vem dos chineses, esses onipresentes investidores que, embora oficialmente comunistas, praticam um avançado capitalismo de mercado. Para um país proibido de buscar relações com os capitalistas americanos, o investimento chinês é sopa no mel. Uma boa amostra pode ser vista no fabuloso canteiro de obras que restaura prédios inteiros de Havana Velha, com uma qualidade que faz as obras públicas de Pindorama corarem de vergonha. Da China também vêm os milhares de novos carros e motos elétricas que tomaram as ruas de Havana e das principais cidades, um alento para quem praticamente não dispunha de transporte público com mínima qualidade há décadas. Se os chineses são hoje o principal parceiro econômico da ilha, a Rússia, histórica parceira, vem retomando aos poucos o comércio com o país, ilustrado, entre outros insumos, nos novos Ladas que desfilam nas ruas, ao lado dos velhos automóveis símbolo da era soviética com seu design quadrado, retangular, registro de um tempo passado. O táxi que me levou de volta ao aeroporto José Marti foi um desses, moderno e confortável, comprado pelo taxista Alfredo em regime de comodato com o governo. Por falar em restaurantes, há os estatais e os privados. Vi bom atendimento e melhor comida tanto em uns quanto em outros. E, eventualmente, alguns problemas, também nos dois modelos. Para se ter uma ideia, nos 15 dias que viajei pelo país o lugar que comi com menos qualidade foi justamente num resort à beira mar, o espanhol Ibero Star de Cayo Guillermo, um gigante confortável no mar do Caribe, mas com má gestão. Nos demais dias, fiquei entre casas de famílias e pequenos hostals, todos eles com um serviço de primeira, o carinho imenso dos proprietários, coincidentemente a maioria mulheres. A exceção foi o banho de chuveiro, mas, quem somos nós, com nossas Desos e Sabesps, pra falarmos de pouca água nas torneiras? Nas duas semanas pelo país, andei de noite e de dia, só ou com amigos, indo ou voltando de baladas ou eventos. Não sofri sequer uma só situação de risco ou assédio, embora muitos dos nossos anfitriões se repetissem em alertas e relatos de perigos. Um estraga prazeres da excursão perguntou ao nosso guia oficial, de curioso nome Alain Delon, a razão de tantas grades em portas e janelas do país inteiro. Ele desconversou e saiu-se com essa inusitada resposta: “é uma questão de preferência dos proprietários, de decoração”. Verdade ou não, quem somos nós pra falarmos de segurança? Compartilhe: [...] Saiba mais...
22 22America/Fortaleza novembro 22America/Fortaleza 2023Compartilhe: Por Luciano Correia (*)   Voltei a Cuba 26 anos desde a última vez. Primeiro foi em 1989, ainda sob o signo da Cortina de Ferro e da estrela da União Soviética, responsável então por uma banda do mundo. Ali vivi três meses no tradicionalíssimo e lendário Hotel Nacional, depois de duas semanas no subúrbio de Machurrucutu. Fui para uma pós-graduação intensiva, uma especialização em economia e relações internacionais na Universidade de Havana, por um programa da Flacso, e mítica Faculdade Latinoamericana de Ciências Sociais, onde pontuou, lá atrás, gente como Fernando Henrique Cardoso. Foram três dos melhores meses de minha vida. Primeiro, por ser pago para estudar, que é a melhor coisa do mundo. Depois, pelo contentamento com a primeira viagem para fora do Brasil, ainda mais num país celebrado pela minha geração de esquerda, pelas ditas conquistas da revolução e pelo irremediável charme que ainda emanava dos barbudos da Sierra Maestra. Na época, claro, o Che já não vivia, abatido que foi na selva boliviana em 1967, e Camilo tampouco, morto num acidente aéreo que os “contra” cubanos especulavam ter sido provocado. Mas Fidel sustentava bem a mística em torno dos guerrilheiros que fizeram uma revolução que deixou o mundo entre fascinado e incrédulo. Fidel ainda portava um charme que encantava não só a esquerda e mídia mundiais, mas, sobretudo, o povo cubano, em sua maioria. Orador extraordinário, fazia qualquer um admirá-lo por horas nos seus intermináveis discursos, mesmo que por baixo do tapete corresse já uma onda de críticos, dissidentes e prisioneiros. Foi essa Cuba que experimentei, numa fase militante de minha vida, na época engajado no velho PCB, O Partidão, entre defesas ainda eloquentes do regime e muita boemia entre os colegas de curso. No fim, creio eu, venceu a vida mundana, alcoólica, musical e cheia de amores pelas calles do bairro Vedado. A segunda viagem foi em 1997, para participar de um evento internacional de Televisão, onde apresentei um trabalho (os bossais da academia chamam: paper) no famoso Capitólio de Havana. Aqui uma pausa para um registro: os guias turísticos locais dizem com orgulho que o belo edifício é um metro mais alto do que o equivalente americano. Já sem muito entusiasmo pela política, conheci muita gente de imprensa e televisão, alguns deles claramente insatisfeitos com o regime. Foram só sete dias, dividido entre as belas colunas do hotel Inglaterra, em Centro Habana, os painéis do evento, um calor senegalês e a maviosa música de uma banda feminina que se apresentava no terraço do velho hotel. Por uma dessas decisões que a gente não explica, resolvi voltar agora em novembro, numa excursão pilotada pelo gaúcho Thomaz, um advogado que resolveu apostar nesse turismo pela ilha. São roteiros diferentes, seguindo uma espécie de narrativa ou curadoria que explora vários aspectos da vida e da história. Topei o arriscado desafio de passar 15 dias em um ônibus lotado de senhorinhas petistas e outras menos atentas aos movimentos da política no mundo, mesmo que isso custasse dissabores eventuais, impaciências e o inevitável cansaço. Sim, teve também o concurso do paulista João, pé de cana de quatro costados, e do amigo arquiteto Ricardo Nunes, dos nossos Aracajus. Ao fim e ao cabo, sobrevivemos com poucos arranhões. A primeira razão que despertou em mim a vontade de voltar à ilha, além de sua extraordinária cultura, com uma das três melhores músicas do mundo, foi o cumprimento de um roteiro pelo interior do país, passando por cidades como Trinidad, Camaguey, Santiago de Cuba, Cayo Guillermo e Santa Clara, além de Havana. Pesou também a certeza de encontrar um dos povos mais felizes e cordiais do planeta, mesmo com todo infortúnio que se abateu sobre sua vida após o colapso da União Soviética e do chamado socialismo real. Enfim, com uma agenda assim e a alma leve para não achar nada chato, como diz Gil, mergulhei num honesto mergulho pelas dores e delícias de uma Cuba que também sinto minha, voltando com novas impressões na mochila, além de uma garrafa de rum e um punhado do charuto pé-duro vendido nas lojas estatais. É o que contarei no próximo artigo. Compartilhe: [...] Saiba mais...
28 28America/Fortaleza outubro 28America/Fortaleza 2023Compartilhe: Luciano Correia (*)   A passagem do tempo tem me feito mal, e isso se manifesta em mim numa situação de ansiedade permanente, medos e incertezas talvez sentidos numa medida exagerada. Vim do mundo da militância política, do movimento estudantil e dos partidos de esquerda onde, não raro, as manifestações de solidariedade e empatia ou não existiam, ou aconteciam como farsa. Sabe aquelas imagens clássicas de políticos de esquerda passando a mão na cabeça de meninos da periferia ou se comprazendo dos sofrimentos do chamado povo? Pois quase tudo era teatro. Já no ambiente da direita conservadora, nem esse teatro simbólico. Ali é pau puro, do pescoço pra baixo. Salvo raríssimas exceções aqui ou acolá, continuo pensando o mesmo de figurões de toda ordem, não só os públicos, mas também, e principalmente, dos que estão fora do poder público. Mas o tempo resolveu me castigar enchendo de dores esse peito onde batia um coração, que hoje só apanha. Se eu disser que a chegada de um pobre e abandonado gato em minha vida, fruto de uma algaravia de bichanos na minha porta, há exatos onze anos, mudou minha vida, vão dizer que estou falando besteira. E pode ser, a depender de quem vê a situação. Tudo isso vem a propósito da carnificina que ora varre do mapa o território de Gaza, depois dos ataques brutais do Hamas em Israel. Aprendi minha solidariedade à causa palestina no antigo jornal Pasquim, numa época em que a imprensa brasileira ignorava a pauta estado Palestino, com jornalistas como Fausto Wolff, autor de um livrinho oportunamente chamado “Os palestinos – judeus da 3a. Guerra Mundial”, no qual ele descreve os horrores do massacre de Sabra e Chatila, no ano de 1982 em Beirute. De lá pra cá, só piorou, com os palestinos vagando pelo mundo, como os judeus por séculos e séculos. Num mundo sem pátria, ou mais recentemente espremidos nas faixas de Gaza e Cisjordânia, sofrem as mesmas dores dos judeus na terrível 2a. Guerra. O terror no Oriente Médio a grande mídia chama de “guerra entre Hamas e Israel”, como se os dois lados estivessem equilibrados numa disputa. Encerrados os ataques covardes do Hamas em Israel, aí o jogo é de um contra ninguém, como se diz no futebol, linha contra defesa. Os terroristas do Hamas, com sua frieza escrota em nome de Alá, se escondem em túneis inacessíveis, inclusive aos palestinos, e deixam inocentes serem massacrados sob bombas, crianças despedaçadas, crianças órfãs com suas vidas interrompidas para sempre. Às vezes esse ateu comovido pensa que o melhor mesmo é a destruição final, como preconizou Nostradamus, naquele livro cheio de coincidências terríveis. Às vezes penso que, talvez, quanto pior, melhor, pra interromper tanto sofrimento com o castigo de todos. Penso, não: pensava. Desde que botei no mundo, há oito meses, o pequeno e também intrépido João, o Jão Cabeça Quente, Berro Grosso do Mosqueiro, já nem tenho direito de pedir fogo no circo. Que os que creem em Jesus ou Jeová, em Kardec ou nas divindades de Oxum, Oxóssi ou Oxalá rezem pelas minhas dores e pelo futuro de Jão. E os de Alá também, claro. Isto, se os degoladores de crianças, considerarem que Alá teria algum tempo e atenção para com um pobre ateu pessimista dos trópicos americanos. Compartilhe: [...] Saiba mais...
5 05America/Fortaleza outubro 05America/Fortaleza 2023Compartilhe: Luciano Correia (*)   Quem conhece a obra do estupendo João Ubaldo Ribeiro sabe que num dos seus livros preguiçosos, aqueles relatos a que um grande escritor dedica-se (ou delicia-se) só por brincadeira – ou para cumprir contratos com editores – “Um brasileiro em Berlim”, ele dedica um improvável capítulo à sua passagem por uma de suas pátrias, o nosso pequenino Sergipe. Improvável, porque deveria tratar, tão somente, do relato de sua passagem pela capital alemã (ainda sem a unificação das duas), no período em que cumpriu uma bolsa para escritores latino-americanos. Não sei as razões, mas me surpreendi quando, ao ler o livro, me deparei com este capítulo de parte da sua vida em Aracaju. Manoel Ribeiro, juiz em Sergipe Todos os que fazem referências ao talento do escritor, logo citam a erudição de João Ubaldo. Esta marca do autor vem praticamente de um saudável despotismo, praticado pelo pai, Manoel Ribeiro, juiz por muitos anos em Sergipe, ele, por si só, responsável por tantas histórias. Quem quiser enriquecer seu repertório converse com gente como João Augusto Gama, um compilador de grandes histórias da província. O juiz Manoel Ribeiro, homem culto, rigoroso e conservador, obrigava o menino João à interminável leitura dos principais clássicos da literatura, tomadas depois como lição por um pai-professor, cioso do futuro de seu filho homem. Eis aí um bom castigo, embora só o pequeno João pudesse mensurar a solidão a que era submetido no gabinete de leitura da casa na praça Camerino (se não me engano), torturado pela algaravia dos meninos da vizinhança e colegas de escola, extasiados com as brincadeiras de rua e o jogo de futebol. Ubaldo deu nisso: um dos melhores escritores brasileiros, imortal da academia, embora este último título pouco ou nada importe na biografia de um autor já imortalizado pela grandeza de sua profícua produção literária. Se a lenda da vida eterna valer, o velho Manoel Ribeiro hoje está sorrindo pela chegada de seu filho querido, fruto bem plantado e melhor colhido. Ubaldo e Getúlio Há uma unanimidade, entre letrados, de que o melhor livro de João Ubaldo é justamente “Sargento Getúlio”, a famosa obra imortalizada no cinema pelo filme de Hermano Penna, filmado (gravado, não: filmado mesmo, numa câmera de 16mm) aqui nos nossos sertões de Canindé, Poço Redondo, um road-movie cangaceiro desde Paulo Afonso até as franjas da Aracaju do começo do século XX. O livro é uma denúncia das mazelas do Nordeste, uma realidade dominada por jagunços e coronéis, ambos confundidos com o próprio poder político. O protagonista, Getúlio, é figura de carne e osso e conheço gente em Aracaju que o conheceu. No filme de Penna ele é ninguém menos do que Lima Duarte, um dos grandes da dramaturgia nacional, que percorre as veredas sergipanas numa velha fobica (assim se chamavam os carros velhos de antigamente) ao lado do fiel motorista Amaro (o não menos grandioso Orlando Vieira). A brutalidade de Getúlio não é maior do que a que prevalecia na sociedade brasileira da época, a mesma que permitiu, em Sergipe, o prolongamento do mesmo estilo com seu irmão Barreto Mota, o célebre e temido comandante da polícia estadual por décadas. Como jornalista, fui contemporâneo desses tempos, mas o que me vem à memória faz parte do ocaso de sua vida, dele, Barreto Mota, já aposentado, um velhinho bem-humorado e casca-grossa rebatendo piadinhas no cafezinho da Solanches, de Raimundo, no Calçadão da Laranjeiras. O filme virou cult do cinema brasileiro, quase artesanal, com uma só câmera, fazendo planos e contraplanos (imaginem o trabalho que deu) e com uma penca de grandes sergipanos brilhando na telinha. Lá estão, além do nacionalmente consagrado Orlando, Amaral Cavalcante, Antônio Leite, Luiz Antônio Barreto e tantos. Amaral atuou também como produtor local. Foi ele quem conseguiu o revólver usado por Lima, emprestado, adivinhem de quem? Acertou quem pensou em Barreto Mota. Compartilhe: [...] Saiba mais...
21 21America/Fortaleza setembro 21America/Fortaleza 2023Compartilhe: Por Luciano Correia (*)   Nos cinco anos em que pelejei com o mestrado e o doutorado, no Rio Grande do Sul, não li uma só linha que não fosse dos textos voltados para as demandas acadêmicas. Em compensação, esse período, que foi luminoso sob vários aspectos, me legou uma abertura para os livros, a leitura densa e intensa e a capacidade de dialogar com meus autores. Findas as tarefas, voltei para terrinha, para outros trabalhos que não só o acadêmico e, principalmente, para as leituras escolhidas sob um livre arbítrio. Vai daí que tenho lido muito, e pelas minhas mãos têm passado clássicos da literatura, outros nomes mais modernos nacionais e internacionais, além das publicações sobre os descaminhos desse nosso mundo virado. Foi assim que, numa das leituras recentes, o autor da hora falou de Sobre a Tirania, de Timothy Snyder, um professor de história de Yale, nos Estados Unidos, sucesso editorial no mundo inteiro, certamente porque sabe dosar bem as ferramentas acadêmicas com a capacidade de falar para todos os públicos, com rigor e estilo. Snyder é um desses autores atuais que começaram a explicar o mundo pós-Muro de Berlim, após o marasmo em que mergulharam os teóricos e movimentos de esquerda desde que o chamado socialismo real se desmanchou no ar. É certo que demorou muito para essa nova safra de intelectuais começar a botar as manguinhas de fora, até porque a ressaca pós-comunista paralisou também o mundo das ideias, ao ponto de terem imaginado o próprio fim da História. “Vinte lições…” não é dessas leituras metidas a impressionar com voz empostada. Pelo contrário, é tão despretensioso que se apresenta simples até na forma, um pequeno livro de bolso, com curtas e diretas lições para uma nova ética nesse complicado século 21, a partir da experiência de um turbulento século 20. Mas é profundo nos diagnósticos e preciso nos conselhos para construir valores comuns e universais nesses tempos que correm. Saio um pouco do texto para considerações paralelas sobre um dos melhores filmes da minha vida, Sunshine, O Despertar de um Século, de István Szabó, um estupendo diretor húngaro que se baseia no drama da própria família para contar a saga de três gerações, desde a aurora ao crepúsculo do século passado, sofrendo os horrores dos três elementos que ele considera as grandes tragédias dos anos de 1900: o fascismo, o nazismo e o comunismo. O filme é um comovente depoimento do sofrimento das vítimas desses três regimes, contado sob os pontos de vista de três gerações que assistem à ascensão e derrocada desses totalitarismos marcados pela barbárie. Nesse aspecto, o livro de Snyder também percorre o século 20 desde o colapso da democracia na Europa nas décadas de 1920 e 1940 até a vitória de Donald Trump e o ressurgimento da extrema direita no mundo inteiro. As lições são apresentadas sem pompa nem delongas, como a primeira, que diz simplesmente: “Não obedeça de antemão”, onde o autor lembra que em grande parte o poder do autoritarismo é concedido voluntariamente. Abusando também da simplicidade, resumiria esse autor que vos escreve: o silêncio e a inércia são os melhores aliados da tirania. Ou buscando nas antigas lições do bom jornalismo: duvidar, duvidar sempre. São questões distintas, mas que convergem para a construção da democracia como um valor universal, feita de contradições, turbulenta em si, instável, mas firme, inquebrantável e perene. Lições como a defesa das instituições, os riscos do partido único, a coragem para assumir responsabilidades para com o mundo, a ética profissional, a rejeição aos grupos paramilitares, a defesa da língua e da verdade sem adjetivos, a preservação da vida privada e o diálogo com gente de outros países. Recomenda ainda o cuidado com as chamadas “palavras perigosas”, a defesa da pátria, mas sem os pieguismos contaminantes, a adoção da política corpo a corpo e do diálogo sobre generalidades, cultivando relações amistosas. Trata-se, pois, de um livro breve e de linguagem direta, que se lê num fôlego, mas a cujas páginas devemos voltar sempre para nos certificar do andamento das coisas, uma espécie de check list individual frente às boas causas, por mais que as “boas causas” sejam um conceito aberto, capaz de abranger subjetividades para os vários lados. Nesses tempos de polaridades emburrecidas e consensos estéreis pautando a grande mídia, vale muito passar pelas breves considerações de Timothy Snyder.   Compartilhe: [...] Saiba mais...
15 15America/Fortaleza setembro 15America/Fortaleza 2023Compartilhe: Luciano Correia (*)   A propósito da tragédia que se abateu sobre o Marrocos, exatamente em Marrackech e região, trago essa semana um tbt de uma matéria que fiz em 2010, quando vivia na Espanha, fazendo o doutorado sanduíche. Para contrastar um pouco com a tristeza trazida pelo terremoto, um pouco da alegria de uma curta viagem pelo seu lindo território. Lá em Marrakech Antes de deixar Madrid, fui ao Marrocos, dessa vez com três amigos brasileiros que vivem em Barcelona. O continente africano sempre me fascinou e, em duas ou três vezes antes, tentei ir ao Marrocos, a partir da cidade do Porto ou de Granada, em diferentes momentos. Para terem uma ideia do preconceito europeu: em 98, o funcionário de uma agência de viagem do Porto me desaconselhou a fazer um circuito sozinho por este país, segundo ele, “pelos perigos que representava”. Curioso: no momento em que escrevo este texto, a bordo da segunda pior companhia aérea do mundo, a Tap, com seu atendimento de quinto mundo, folheio jornais portugueses que dão conta de uma violência que não vi no Marrocos nem nos países europeus onde estive ultimamente. Portugal tem uma bela comida, bons vinhos… e o fado. Não podemos generalizar, mas vejo que grande parte das mulheres são demasiadamente duras no trato. Fado sim, fodas não. Cheguei a Marrakech com uma hora de atraso, graças à pior companhia aérea do mundo, esta, sim, a campeã, Ryanair. É um pau-de-arara voador, com uns vinte meninos de colo chorando desde a sala do embarque em Barajas até o controle de passaporte nesta cidade linda e avermelhada. Fico com certa pena das aeromoças, obrigadas a circular pelo corredor vendendo bugigangas e perfumes, como fazem os bancos brasileiros, inclusive os estatais, para que os funcionários atinjam metas e cotas. O Marrocos é lindo, envolvente, uma experiência radical, mas às vezes abusa de nossa paciência. Reza a tradição que toda compra deve ser negociada. Já sabia disso, mas não imaginava que era tão irritante. Não existe tabela de preços. Tem-se que negociar tudo. Minha estreia foi no táxi que me levou ao pequeno hostal situado nos limites da Medina, na parte de dentro, onde já se encontravam os colegas de Barcelona. Já sabia o preço da corrida antecipadamente, mas fui obrigado a entrar numa absurda negociação para regatear o que, para mim, parecia apenas justo. Por fim, batemos o martelo: dez euros, por uma corrida de menos de cinco quilômetros, o que é caro, mesmo para os padrões europeus. No hostal, sou recebido pelo sorridente Ali, que, além de não falar espanhol, arranha um inglês na velocidade 5, de modo que compreendo uma outra palavra. Ele oferece a bebida que, a partir de então, vai ser minha pedida nesse país muçulmano: o chá de menta. É impressionante, porque, embora se consiga álcool em hotéis e restaurantes, no restante do país é impossível molhar o bico. Sempre que pergunto por uma cerveja, um rabo de galo que seja, mas eles riem e dizem que “álcool não”. O segundo dia foi consumido nas vielas e no mercado de Marrakech, travando uma luta titânica com o vendedor toda vez que pretendia comprar um pequeno regalo. Para não negar a fama de bicho-grilo, no dia seguinte encarei um programa radical: eu e mais doze pegamos uma van e subimos as montanhas que circundam Marrakech e avançamos por todo o dia sobre o território berbere até chegarmos a Zagora no final da tarde. Uma cidade bonita e organizada situada nas franjas do Saara. Mais meia hora de carro e paramos num povoado, para compras necessárias no ambiente off-civilização: basicamente papel higiênico e água. A van avançou mais alguns quilômetros e, finalmente, trocamos seu desconforto pelo desconforto elevado ao cubo oferecido por um camelo. Pode ser bonito no cinema, mas é um troço estranho, com uns solavancos bruscos que ameaçam nos jogar pelos ares, ralando a bunda, coxas e pernas, condições ideais para assaduras pelos dias seguintes. O deserto radical   Uma hora e meia e algumas piadas depois, chegamos num acampamento berbere, tribos nômades que habitam o Saara desde que Maomé vestia fraldas. Somos recebidos com uma rodada de…. chá de menta. Pergunto a Hassan, um dos simpaticíssimos rapazes condutores dos camelos e responsável por toda infra, se não há um goró por perto, só para eu matar saudades da mardita. Ele aponta para a bela chaleira e tira uma chinfra com minha pergunta: “uísque berbere”. Isso tudo na tenda principal, com todo o grupo sentado em tapetes e ao redor de duas mesinhas rebaixadas, onde depois, numa grande panela, foi servido o jantar: frango cozido com legumes, pão e… chá de menta. Um dos meus amigos fez cara feia e disse que não comia em prato coletivo, com todo mundo enfiando seu garfo. De minha parte, como é sabido, nada acho chato. Comi feito um sultão do deserto. A noite terminou na beira de uma fogueira, madrugada adentro, com os cânticos berberes e – já era mais que hora! – um uísque espanhol, meio safado, que o impagável Pepe, espanhol de Mallorca, sacou sabe-se lá de onde. O tal Pepe foi uma atração à parte na viagem: cheio de histórias, tinha jeito pra tudo. Nunca um uísque vagabundo foi tão curtido e cultuado. A gripe que depois me fez companhia foi apanhada aí, na frieza da noite saariana, tomando o tal xarope e cantando a melhor música brasileira: Gil, Caetano, Luiz Gonzaga e… Bartô Galeno, sucesso, como diria Rossi, em todos os motéis e cabarés das cidades nordestinas. “Eu vou pedir à lua/ Pra iluminar a rua…” É poesia pura sob a lua cheia e as constelações do deserto. Uma argentina que integrava o grupo deu uns balanços e depois pediu: “Não sabe uma de Cássia Eller?”. Não. Todos os brasileiros da aventura eram nordestinos. Honestidade árabe Com toda a fama de ligeiros nos negócios que os marroquinos carregam, achei que tinha contratado um pacote turístico numa agência falcatrua. Pela cara dos sujeitos, cheirava às organizações Tabajara. Mas tudo foi cumprido com simplicidade, mas sem falhas. A agricultura sustentável No Brasil, a palavra “sustentável” ainda está na fase do modismo de congressos e ambientes acadêmicos, mas no deserto vi a sabedoria das tribos do Saara aplicada nos modos de cultivar a terra, de usar os recursos, irrigar, guardar água, enfim, viver com uma dignidade surpreendente. O melhor suco do mundo Até então, tinha no nosso maravilhoso suco de cajá a melhor bebida do mundo, tirante as alcoólicas, evidentemente. Em Marrakech, sobretudo na praça central, fazem um suco de cítricos, mistura de laranja, umas tangerinas e toronjas que resultam num suco incrivelmente saboroso. É a melhor bebida da minha vida. Se o Marrocos não fosse a riqueza que é, valeria uma viagem só pra beber essa delícia. Compartilhe: [...] Saiba mais...
25 25America/Fortaleza agosto 25America/Fortaleza 2023Compartilhe: Luciano Correia (*)   O último filme do grego  Costa-Gavras é uma aula de política. O tema da película, a luta do então ministro das Finanças da Grécia, Yanis Varoufakis, contra o establishment das finanças mundiais no processo de renegociação da dívida externa, é também uma aula de esperança. Quebrada por seguidos governos corruptos e gastadores, a Grécia mergulhou numa crise sem precedentes em 2008. Em 2015, todas as esperanças da população dali foram confiadas à eleição de um jovem engenheiro de 41 anos, Alexis Tsipras, carismático líder do partido de esquerda radical Syriza. Eleito primeiro-ministro, coloca na pasta das finanças Yanis Varoufakis, jovem brilhante, militante de organizações sem fins lucrativos para a geração de renda para os pobres, um intelectual refinado e professor de importantes universidades de países como Inglaterra, Estados Unidos, Austrália e a própria Grécia. O filme baseia-se no relato que Varoufakis faz no seu livro “Adultos na Sala: Minha Batalha Contra o Establishment”, o passo a passo do duríssimo enfrentamento das feras dos governos e bancos europeus, um jogo bruto e violentamente desequilibrado em favor dos donos do capital. Habilidoso, preparado como pouquíssimos na política, na economia e na interlocução com os líderes mundiais, Varoufakis lembra o destemor, a obstinação e a utopia de um Che Guevara jovem, antes de virar o que virou no exercício do poder. Só que muito mais preparado, raciocínio ligeiro e mordaz, quando necessário, mas temperado pela paciência e pela tolerância incomuns no ambiente em que ele jogava as cartas da renegociação da dívida grega. O filme é a reprodução desse sofrido processo em tons fortes, ora dramático, ora com leves toques de humor. Costa-Gavras, um gênio do cinema, muitíssimo mais importante do que uma dezena de “monstros” consagrados pela mídia, com filmes como Z, de 1969, sobre o assassinato de um político liberal em plena ditadura militar grega; Estado de Sítio, 1973, que trata da repressão no Cone Sul, e Missing – Desaparecido, de 1982, sobre os assassinatos políticos na ditadura do general Pinochet no Chile. Estes são os mais emblemáticos trabalhos de Gavras, um grego que era adorado por dez entre dez companheiros de minha geração. Costa-Gavras tem uma filmografia extensa, com muitos outros títulos, mas estes foram os que constituíram seu portfólio político, sendo cultuado nos ambientes da esquerda no mundo todo. Um pouco sumido da mídia – desgraçada mídia: de que gostam seus tubarões, afinal? -, ganhou novamente a atenção da crítica com o impagável O Capital, de 2012, seu penúltimo filme, antes de nos brindar com essa maravilha de Adults in The Room – escrevo o título em inglês porque ainda não foi lançado no Brasil e sabe-se lá que título a indústria nacional, com suas esquisitices, vai arranjar. O Capital é também um filme extremamente político, dessa vez flertando com o humor e a ortodoxia dos mercados financeiros mundiais, a devoção sagrada ao São Capital. Em Adults in The Room, ele dramatiza a batalha quase solitária de Varoufakis, sabotado pela direita grega, a mídia – olhe ela aí de novo, cumprindo seu “papel histórico”! –  e pares do próprio governo. Charmoso, inteligente e culto, a impressão é que essas qualidades despertam uma inveja secreta no primeiro-ministro Alexis Tsipras, tais são a passividade e a distância com que acompanha o sangramento público do seu ministro das finanças. Ou não. Talvez seja mesmo essa a diferença de um político populista de esquerda – Tsipras – e um jovem de esquerda íntegro e transparente – Varoufakis. O fim da história é conhecido: abandonado pelo populismo calculista do seu líder, não resta a ele senão renunciar. Tsipras, por seu turno, renuncia pouco depois e convoca novas eleições, vencendo e ganhando condições para governar por quatro anos. Mas em 2019, em novas eleições, adivinhem quem vem para jantar Tsipras, o Syriza e o sonho socialista dos que apostaram numa saída antiliberal, antiausteridade contra a ditadura do FMI e Banco Central Europeu? A velha e onipresente direita, que se aproveita do desgaste provocado pela dose do remédio aplicado na economia para buscar apoio dos mais afetados pelas medidas de arrocho, ele mesmo, o mítico povo, sempre disposto a votar contra si próprio. Sonho socialista grego naufragado, resta-nos o luxo das ideias e a energia de Varoufakis, bálsamo de esperança para essa juventude que vaga nas ruas e universidades, iludidas por tolices como o PSOL e suas antas batizadas. E o mais importante de tudo isso: a delícia de ver um Costa-Gavras, aos 88 anos, intelectualmente ativo, vibrante, nos entregando obras de arte como Adultos na Sala. Compartilhe: [...] Saiba mais...
10 10America/Fortaleza agosto 10America/Fortaleza 2023Compartilhe: Por Luciano Correia (*)   Nessa semana a TV Sergipe me entrevistou para falar sobre a breve convivência que tive com o jornalista Joel Silveira, junto a outras pessoas que conviveram com ele. Joel dispensa apresentação, né? Sergipano de Lagarto, veio ainda menino para Aracaju, onde o pai foi um médio comerciante estabelecido no centro da capital. Saiu daqui muito cedo, decidido a se tornar escritor ou jornalista no Sudeste. Foi as duas coisas, se tornando o que muitos até hoje consideram o maior repórter da história da imprensa brasileira. Cobriu a 2a. Grande Guerra, passou por grandes jornais e revistas e desfrutou de uma rara intimidade com o poder até meados do século passado. Sem nunca ser seu comensal, dependente ou cúmplice. Era conhecido como A Víbora, uma pena furiosa, que eu mesmo experimentei na pele logo que ele chegou aqui para um segundo período, em 1986, quando veio exercer a função de secretário de Cultura do Estado. Jovem, tão destemido quanto irresponsável, eu também disparava críticas ácidas e impropérios no alternativo Folha da Praia, na época um semanário, que ganhou muito protagonismo na imprensa local graças ao brilho e competência do seu editor, Amaral Cavalcante. Desgraçadamente, dei ouvidos ao arsenal de futricas que corroía o ambiente cultural e, doido por uma briga, mesmo as que não me diziam respeito. Bati e levei. Mas quem quiser a história completa, veja no programa. Tenho outras e boas histórias de Joel – e com Joel – mas deixarei para mais adiante. Hoje, já que trouxemos o bardo sergipano à baila, trago algumas pérolas de um dos seus livros, O Presidente no Jardim, de 1991. Pílulas para serem consumidas como a delícia de um uísque e um punhado de amendoim torrado, como gostava o autor. Compartilhe: [...] Saiba mais...
28 28America/Fortaleza julho 28America/Fortaleza 2023Compartilhe: Por Luciano Correia (*)   Pra começo de conversa, favor não confundir com Outubro Rosa, uma campanha de forte apelo midiático que visa alertar as mulheres e a sociedade sobre a importância da prevenção e do diagnóstico precoce do câncer de mama e de colo do útero. Esta, tem salvado vidas e prestado um bem inestimável às mulheres em todo o mundo. Já a onda pink que ora borra as manchetes, apesar do frisson que vem assanhando até gente insuspeita pelos quatro cantos, não é rigorosamente uma novidade, posto que a estrela principal do bafon é uma senhorinha nascida em 1959. Se você faz parte deste planeta em chamas e costuma ligar um rádio ou TV, ou bisbilhota redes pelo menos uma vez por dia, sabe bem que me refiro a uma das mulheres mais cobiçadas de todos os tempos, uma moça chamada Barbie. Na verdade, a cobiça referida é virtual, um fetiche construído com precisão cirúrgica para servir a gula desses taradões incorrigíveis, que, é claro, jamais viram a Barbie como uma inocente boneca. E creio eu que nas próprias intenções de quem pariu a beldade estavam embutidas, nas entrelinhas dos desejos ocultos, a erotização da loira para consumos múltiplos – sexual, comércio de utensílios, roupas etc. Freud também explica isso, além de tudo que já explica. A sessentona Barbie se atualiza nesses anos todos em uma penca de produtos da indústria cultural, alimentando seu imaginário com novas e novas ações midiáticas, e na venda das bonecas em si, com mais de um bilhão de exemplares vendidos. De novo mesmo nessa onda rosa atual, só a capacidade de renovação do mesmo repertório, o êxito na forma de requentar uma velha história e ofertá-la, com cheiro de tinta fresca, ao museu de grandes novidades, como cantava Cazuza. Em nome desse novo sucesso da parada, vi gente de todas as procedências, até do jornalismo tido como objetivo e informativo, vestir-se de rosa e decorar ambientes em homenagem ao filme que estronda as bilheterias do mundo inteiro. Ao pequeno Jão Cabeça Quente, um moleque que ilumina minha vida há quatro meses, eu não tenho sabido explicar que o tema relevante da cultura no mundo inteiro, nesse momento, é a recente encarnação da Barbie nas telas do cinema. De todo modo, uma constatação: de tão inserido na sociedade do espetáculo, o fenômeno cai nas infalíveis previsões de outro pós-moderno, o artista Andy Warhol, e também parece cumprir a sina dos 15 minutos de glória. Nessa justa hora, seguramente, os fornos de Hollywood assam o próximo pão pra alimentar o circo. E logo teremos um novo e estupendo sucesso de bilheterias. Compartilhe: [...] Saiba mais...
13 13America/Fortaleza julho 13America/Fortaleza 2023Compartilhe: Por Luciano Correia (*)   Ariano Suassuna gostava de contar uma história sobre um velho contador de causos, desses que tiram leite de pedra pra não perder o centro das atenções. De qualquer coisa ele puxava assunto. E quando não havia assunto, ele inventava. Certa vez, do nada, no meio de uma sala cheia, ele perguntou: “Eitha, vocês ouviram um tiro?”. Evidente que ninguém ouviu nada. Mas era o suficiente pra ele começar uma nova história: “Pois é, por falar em tiro…” E disparava suas lorotas sem fim. Não sei porque, mas essa história me levou a uma fake news que circulou em Sergipe nos últimos dias, a propósito de um ciclone que ora varre campos e cidades do Rio Grande do Sul, com estragos minimizados, felizmente. O ciclone gaúcho, de verdade, assanhou as mentes férteis e desocupadas locais que vivem desse expediente de espalhar mentiras, não só as inofensivas, mas as que implicam em danos coletivos, mesmo que apenas psicológicos. Se o tiro do loroteiro de Ariano me fez lembrar do ciclone sergipano, a lenda daqui me remeteu a um outro ciclone, este verdadeiro, que vivenciei em Cuba em 1989, nos três meses em que vivi na ilha. Éramos 17 colegas de vários países do mundo, alunos de uma Especialização em Economia e Relações Internacionais na Universidade de Havana. Faço graça com o meu ciclone habanero porque, de fato, não lembro de maiores danos. Até porque a região era acostumada com coisa mais grossa, não ia se abalar com três dias de ventania acelerada. Mas um moleque nordestino que só conhecia, até então, os redemoinhos que às vezes irrompiam em nossas peladas nos campinhos de areia, foi um fenômeno. Lembro ainda que o quarto em que estava morando, virando para o Malecón, recebia toda a brisa do Golfo do México, turbinada pela energia do tal ciclone. Um buraquinho na vidraça do apartamento cuidou de fazer soprar o vento nas 24 horas dos três dias, fazendo um assovio em uma nota só, para eu jamais esquecer a melodia dos ciclones. Dito isso, hão de me perguntar: e essa foto sem camisa, escrevendo, bebendo e fumando, o que tem a ver? Então, diante da necessidade de terminar a monografia, aproveitei para passar meus dias de ciclone trancado no quarto do hotel, avançando no texto, fumando um cigarro cubano sem filtro que na época me apetecia, e mordendo um rum Bucanero, mais barato do que a Havana Club. A foto é como a história do velho de Ariano: por falar em tiro… Compartilhe: [...] Saiba mais...
6 06America/Fortaleza julho 06America/Fortaleza 2023Compartilhe: Por Luciano Correia (*)   Voltando ao tema de livros, trago na coluna desta semana uma crítica que fiz já há alguns anos, mas que segue atual: a nova safra de escritores cubanos. Pedro Juan Gutiérrez, quando surgiu na nova cena literária da ilha, causou rumor e fúria, mas só fora do próprio país. Nos quatro cantos do mundo, no entanto, fez um sucesso extraordinário. Virou uma espécie de novo Hemingway, um queridinho de feiras literárias, da Flip de Paraty aos melhores saraus europeus, mas jamais deixou-se seduzir pelo brilho das tentações. Namorou outras mulheres nórdicas, mas, como advertia nos seus livros, seguiu fiel às negras de Havana Velha. Hoje Gutiérrez anda um pouco ausente da mídia mundial – da cubana continua ignorado, desde o início – talvez porque cada vez mais se dedica à pintura, jogando a literatura para um segundo plano. Mas a força de todos os seus livros vale essa mirada na crítica que produzi, na época, para o site da UFS.     Trilogia suja de Havana (Trecho) “Precisava colher um pouco de carqueja-amargosa para um descarrego. Tinha de fazer uma limpeza no meu quarto da cobertura porque nos últimos dias senti duas vezes um leve perfume de mulher. Como se o hálito desse espírito passasse ao meu lado. E isso me deixa louco. Não é bom ter espíritos escuros rondando em volta”. O Rei de Havana (Trecho) “Foi andando até o Malecón. Uns barris de cerveja a granel. Estavam preparando para o Carnaval. Comprou um pouco de cerveja barata. Tinha gosto de vinagre. Bebeu. Comprou mais. Bebeu. Gastou metade da grana. Ao entardecer começou a chegar mais gente. Acabou-se o dinheiro. Queria continuar bebendo. Em volta do barril formou-se um grande grupo de gente querendo comprar cerveja. (…) Enfiou-se no meio deles. Estavam suados e cheiravam forte. Eram quase todos negros, musculosos, cheirando a suor, agressivos, se apertando uns contra os outros, emitindo com violência o seu bodum, de lenços vermelhos, colares de candomblé. Rey, metido naquele alvoroço, distribuía cotoveladas.” Animal tropical (Trecho) “Assim é. A vida é muito mais complexa que a literatura. Mas também é menos intensa. A literatura tem de avançar com excesso de velocidade para manter a tensão. Do contrário seria uma viagem sonolenta e aborrecida. Selecionam-se fragmentos, escreve-se e trata-se de não aborrecer. Enfim, o único guia com que conto é a intuição. Um pouco de intuição. E isso é muito pouco. (…) Flutuava entre nós dois um vapor melancólico. Indefinido e cinzento, mas melancólico. Era inevitável. Tentamos esquecer dançando, conversando com amigos, rindo, mas voava sobre nós, silencioso, o anjo da tristeza.”   Compartilhe: [...] Saiba mais...
29 29America/Fortaleza junho 29America/Fortaleza 2023Compartilhe: Por Luciano Correia (*) O mar chegou pra mim como por encanto. Na verdade, me deram um rio por mar. Eu tinha aí pelos cinco ou seis anos e ainda vivia na doce Macambira, onde os banhos nos tanques e naquela mágica cachoeira faziam a festa de minha infância. De tempos em tempos Papai enchia nossa bela Rural Willys com seus cinco filhos para nos levar ao dentista. Numa das vezes, lembro de Mamãe me pegar pelo braço numa manhã iluminada por esse sol nordestino, na Rua da Frente, apontar para o leito do rio Sergipe com a Barra dos Coqueiros ao fundo e anunciar: “aí está o mar”. Acostumado com a mansidão das águas do Tanque Grande e do Açude de Tidinho, me dei por satisfeito com aquele turbilhão agitando a corrente. Enfim, foi o jeito possível de ter um mar. Muitos anos depois vim morar em Aracaju justamente na Rua da Frente, ao lado do antigo Mobral, a 50 metros da antiga Secretaria de Educação. Éramos 11 calouros da Universidade Federal de Sergipe no ano de 1979. Ainda lembro de uma sexta feira em que o colega Gilson Capitão chegou da aula todo eufórico trazendo a novidade: o top less, moda que andava agitando a juventude dourada do Posto 9 de Ipanema, no chamado Verão da Abertura, havia chegado a Aracaju. No sábado, partimos todos logo cedo em direção ao local onde já há alguns dias acontecia essa demonstração de modernidade de nossa Aracaju. Ficava na Coroa do Meio, que na época era um deserto de dunas e restingas. Fomos todos a pé, evidentemente, pois não havia dinheiro para uma passagem de ônibus a mais no orçamento. Chegamos ao Colodiano, que era o antigo nome do local, perto de onde se criou a Praia dos Artistas. Lá estavam elas, as meninas. Na verdade, como vou contar? Hoje em dia, com a patrulha do politicamente correto, sacrificamos a objetividade dos fatos em prejuízo da narrativa. Mas o certo é que as ousadas banhistas eram, digamos assim, profissionais do sexo. Putas do Samburá, um cabaré decadente que funcionou muitos anos na rua Nestor Sampaio, quando essa via ainda era também um deserto, com pista de terra batida. O espetáculo observado não tinha o charme e a beleza das meninas do Rio, mas satisfazia nosso tesão e desejo de estarmos antenados com esta última maravilha da civilização: o livre e liberado banho de mar das meninas do Samburá. Hoje digo sem errar, os pechitos eram só a desculpa para nós, meninos do interior, ter motivo para ir à festa do mar. Era disso que se tratava: o sol a pino, bronzeador Coppertone, corpo à milanesa, um pique descomunal e… tchibum! A delícia das ondas. Pouco depois troquei minha adorável república da Ivo do Prado pela residência universitária da UFBa, num dos endereços mais tradicionais de Salvador: o Corredor da Vitória. Além de nossa praia particular, o Shangri La, situada 258 degraus abaixo do nosso quintal, uma área de pedras onde colegas desciam para tomar banho nus e fumar um baseadinho de fim de tarde. Ainda em Salvador, no mesmo endereço, era comum a gente descer a ladeira da Barra e ir descontar o stress do dia no pôr do sol do Porto da Barra – oxe!… e estudante jovem, na Bahia, tinha stress? Cheguei a ver Caetano e Gil algumas vezes. O mar seguia sendo um fetiche, ainda mais aquelas águas calmas e cristalinas da Baía de Todos os Santos. De volta à Aracaju, em meados dos anos 80, e sempre sonhando com o mar, li uma entrevista de Jane Fonda na qual ela dizia que dormia todos os dias com um travesseiro que simulava o som das ondas. Foi o bastante para me lançar o desafio: se ela, atriz rica e famosa, dorme com uma traquitana falseando o som das ondas, eu, pobretão atrevido, vou buscar um cantinho pra mim em alguma pirambeira da costa aracajuana. E assim foi feito, à custa de um sacrifício que levaria mais três ou quatro parágrafos e que, por ser sacrifício, vou poupá-los. Quando vim morar na antiga Rodovia Sarney, esse canto da cidade era um lugar remoto, improvável, portanto, pra se viver. Mas depois foi ganhando um certo charme, porque grande parte dos condomínios eram de alto padrão. Não exatamente o meu. Certa vez o falecido jornalista Zenóbio Melo veio tomar uns tragos na minha cozinha e, com seu jeito sem-cerimônia, exibiu todo seu desencanto: “Você disse que morava num condomínio na Sarney, mas isso aqui parece o Marcos Freire IV”. Ele tinha alguma razão, mas foi o único jeito de encontrar meu mar em Aracaju. Como todo menino do interior, curioso pelas coisas que não existiam no nosso torrãozinho, sigo encantado com suas dunas, a larga faixa de areia, cor das águas, belezas e mistérios do mar. Compartilhe: [...] Saiba mais...
22 22America/Fortaleza junho 22America/Fortaleza 2023Compartilhe: Garrafas ao mar, cantava João Bosco num dos melhores discos da MPB. Por elas e pelas águas onde rolaram correram muitas histórias, de amor aos negócios, de guerras e conquistas. O mar foi a primeira grande free way do mundo, autobans lineares, sem buracos nem pedágio, sem barreiras de fronteiras, pelo contrário, ligando mundos distintos e remotos. Os portugueses foram grandes dominadores de suas regras e mistérios, que legaram ao país dos patrícios um império e a extensão de seus tentáculos para vários continentes. E fez a primeira grande operação da globalização, trocando culturas e comidas, modos de ver e falar, de sorrir e cantar, de construir e destruir. Essa lembrança do mar, como estrada primeira da globalização, sempre me assalta nas caminhadas que faço há mais de três décadas, como contei na coluna passada, desde que decidi vir morar ouvindo seu marulho. E os motivos são os mais prosaicos, pois que a partir de coisas trazidas de outros cantos, quinquilharias as mais curiosas, desde embalagens de sorvetes, refrigerantes, belas garrafas de uísque, latas de iguarias que mais parecem obras de arte. Os objetos navegam mares distantes e trazem notícias de lá, de culturas distintas, seus utensílios e modos de lidar com a arte de viver. Em minhas caminhadas há mensagens de terras do Oriente, com seus desenhos mágicos que devem conter expressões como “modo de usar” ou “consumir em até 48 horas”, banalidades que tais, para meus olhos de criança curiosa, soam como poesia concreta, modernismos gráficos de gentes mais desenvolvidas. Mas chegam tesouros páticos, que têm muita serventia para os que precisam e até para quem não se acha, como eu, que já levei baldes, tablados de madeira e vasilhames que minha mulher trata de jogá-los no lixo, tão logo eu desapareça de sua vista. Além de coisas largadas por navios, há também pedaços mesmo de embarcações, como gradeados de madeira, suportes e caixões mais pesados, sempre úteis a qualquer ser humano que professa a fé de que “quem guarda o que não presta, sempre tem o que precisa”. Nesse inventário de tolices, não vale citar o ramerrão, o lixo trivial que carimba nossa má educação por esses nossos litorais. Cascas de laranja, abacaxis inteiros, tomates e melancias dão na praia sem que a gente saiba, neste caso, se são frutos da incúria local, nacional ou internacional. Assim, excluam de minha lista essa basura sem aura nenhuma, embora, vá lá, já topei com tantos alimentos que dariam poderosas sopas ou sortidos cozidos. Óculos de grau, então, já apanhei dezenas, alguns entregues a meu amigo Mané Veneno, que usa em desfiles pelas ruas do seu amado conjunto Augusto Franco. Me refiro aqui a peças que carregam em si algumas histórias mais fortes ou simbólicas, algo que ensejam o culto à Yemanjá ou a uma noite de amor febril, deixando, no primeiro caso, frasquinhos cheirosos de alfazema ou, no segundo, calcinhas abandonadas a propósito de uma fuga ligeira. Quantas mulheres lindas já imaginei ao topar com essas provas do sexo rápido entre, possivelmente, dois fortuitos amantes!? Se as montanhas encontradas na areia diariamente são, para a limpeza pública, a mesma matéria que abarrota os carros da empresa coletora, medida em toneladas e reais, para mim passa por esse filtro prévio, essa curadoria muito particular que representa meu olhar sobre o que o mar quer dizer com cada tralha que aporta no meu pequeno pedaço que me cabe.   ____________ (*) Jornalista e presidente da Fundação Cultural Cidade de Aracaju (Funcaju). Compartilhe: [...] Saiba mais...
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Luciano Correia

Jornalista e presidente da Fundação Cultural Cidade de Aracaju (Funcaju).

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