Rian Santos*
O poeta Jozailto Lima é um lavrador de saudades – embora seja esta uma constatação incompleta. Entre os vários motivos semeados ao longo de tantas páginas, lavoura com quatro volumes já publicados, sobressai o travo memorialista, um incômodo qualquer no ponteiro enferrujado, a paisagem embaçada na vida de suas retinas fatigadas por tantos questionamentos. Pai, irmão, bicho, pasto, seu país. Nada lhe escapa e nem é de agora.
Digo constatação incompleta porque o autor de “Ainda os lobos” (Editora Patuá, 2016,) a ser lançado no próximo dia 21 deste mês (no Museu da Gente Sergipana, Ivo do Prado, 398, Aracaju, Sergipe, a partir das 18h) não cede à tentação daego trip, nem se presta a lavar a roupa suja dos seus em acerto de contas literário. A memória aqui é mero artifício, pretexto para a afirmação dos valores assumidos por meio da sintaxe. Um aceno lírico, e nada blasé, à vida e seus percalços.
Em “Ainda os lobos”, uma simplicidade ideal é entronada acima de todas as valentias verbais. Há nostalgia, sim, mas ancorada num desejo manifesto, de pés descalçados de sapatos, em função do qual a experiência do mundo é agravada pelo propósito consciente de uma besta e elementar liberdade, como bem enunciada no poema “Aos pés de ninguém”: “a mim me bastariam/ uma bicicleta para varar/ e poluir/ o mundo de más intenções / um chapéu de teto furado/ para pouso de passarinho nenhum”.
Na sua poesia, nacos românticos, e existencialistas, e apelos subjetivos ao entorno. Em certo sentido, a poesia de Jozailto Lima pode ser dita cinemática. Ação e espaço tomam parte ativa num discurso jamais passivo. Há uma espécie de conjunção cósmica entre o sujeito, a natura e o enunciado. Ele é um poeta “dizedor”, de discurso comprometido.
“A poesia de Jozailto Lima busca expressar uma essência, com fortes traços memorialísticos. É como se a paisagem da infância lhe desse a régua e o compasso para a compreensão do mundo. E a partir dessa visão de mundo nascem seus “ribeirões verbais””, assinala o intelectual e poeta sergipano radicado em Brasília, Paulo Lima, em prefácio ao livro. Sim, é exatamente isso.
“Movido a raios e trovões”, parido no lapso de quando “lobos e árvores se entrelaçam”, o eu lírico desse poeta promove a intersecção de dois universos distintos e complementares. Feras “uivando às sete luas”, de um lado. Dicionários, canos de revólveres, cimento, cal e TNT “explodindo na cara dos afetos”, no outro extremo. “Filha das cisternas/ soluço das cavernas”, sua voz ecoa ambivalente, num quase desespero de labirinto, de maranha.
Quando terreno, o poeta abre seus idos ao “rés do chão”, ferindo a geografia afetiva do “país profundo”, onde busca sabe-se lá o quê, menos a alienação política e afetiva na estranha pátria em que ele vive e escreve. De certo, apenas os acidentes, mais-valia dos pelos eriçados: “quero o descampado/ a testa, aberta/ o peito, aberto/ o mundo, oco/ – anterior aos mistérios/ e às estrelas velhas”.
A jornada maior de “Ainda os lobos”, no entanto, conduz o poeta ao encontro da aventura familiar, seu núcleo, digamos assim, duro, de afeto e afeição. A autoridade dos mais velhos, o privilégio de um horizonte aberto/largo, um bando de meninos, esterco, gado magro e galos nos quintais – ou na panela.
Na propriedade rural familiar, formada por terra curta e dura no sertão de muita pedra e pouca água, vingou o puro-afeto no seu próprio sangue, “o maior dos rios/ o que cessa o homem”. Por isso, “Ainda os lobos” é o sumo polpudo de sua poesia, como bem traduz, em síntese, o pequeno poema “Gravura familiar”: “o melhor lugar do domingo/ era o cangote do pai.// dali, eu via a aurora/ tecer a luz// e o horizonte inventar larguras”.
Aliás, não seria exagero dizer que “a cultura do afeto” que vaza desse “Gravura familiar” permeia os demais 82 poemas de “Ainda os lobos”. E recomenda-se que o leitor não venha de cotovelos armados, supondo encontrar nele um afeto de lambanças, piegas, passadista, ou na linha autoajuda, melando a lírica deste cidadão.
Nada mais errado do que pensar assim. Trata-se de um afeto até certo modo ríspido, mas plenamente humanizando, questionador, provocador. Que faz inquirições sérias à vida. Mesmo que um tanto quanto gauche, um pouco na linha do seu maior referencial literário, o poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade.
Nesse “Ainda os lobos”, Jozailto tece um lirismo do qual possivelmente o poema “Ao rés da fera” sirva de bitola exata e precisa: “do país profundo,/ de patas fortes/ e abas largas,/ cheirando a âmago/ e guabiroba, nada/ resta. e nada restará.// avariado está/ o caminho das águas,/ o labor das abelhas;// e da razão dos lobos,/ fez-se lenha;/ da lenha,/ brasas mortas/ sobre as quais pisam pés morenos,/ brasileiros, de inativo afeto”.
Em “Ainda os lobos”, há “ainda – e sempre – a poesia”, como diria seu prefaciador. Jozailto Lima é baiano de Várzea do Poço, onde nasceu em 11.11.1960, e está radicado em Aracaju, Sergipe, desde 1990. Tem quatro livros de poemas publicados e já ganhou alguns prêmios literários entre Bahia e Sergipe. É jornalista e vive da atividade da comunicação.
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* Jornalista, bacharel em Comunicação Social formado pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Editor de Cultura e editorialista do “Jornal do Dia”, em Aracaju. Atuou na Agência Voz, por meio da qual prestou serviço de assessoria à Central Única de Trabalhadores (CUT), respondeu pela Assessoria da Fundação Aperipê e recebeu os prêmios “O Capital de Jornalismo Cultural” e “Amigo da Música Sergipana”, concedido por meio de votação realizada no Fórum de Música Sergipe, além do Prêmio Destaque de Jornalismo Cultural (2015).