Jeffrey Moussaieff Masson, Werner Herzog, Izidoro Blikstein… A constatação é verdadeira. Muitos são os pesquisadores, cientistas e especialistas que foram tocados, de maneiras discrepantes, é claro, pela enigmática história de Kaspar Hauser. É no desígnio de tentar a revelação de seus “espantos”, que o ensaio intitulado de “Kaspar Hauser, ou a fabricação da Realidade” foi escrito pelo Doutor e Livre-Docente em Linguística, Izidoro Blikstein.
Uma criança vestindo um corpo adolescente, dos 15 aos 18 anos de idade, que não sabe andar, não entende o mínimo do que lhes dizem os outros. Um rapaz estranho, selvagem, quase totalmente desorientado frente ao “mundo já conhecido”, que aparece (“aparece”, eis o melhor termo a ser aqui utilizado) pela primeira vez numa praça da cidade alemã de Nuremberg, provavelmente em 1828. Um homem. Sim, um homem, um homem que ninguém sabia de onde vinha, para onde iria ou quem era. Uma criatura causadora de um misto de espanto e interesse, que pensava ser as galinhas monstros vorazes – aqui, alguma semelhança com o nosso bravo e engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha, criatura de Cervantes que, entre tantas loucuras, desafiava moinhos de vento pensando estar diante de gigantes maldosos? -, mas que também possuía habilidades demasiado notáveis, assim como uma memória excelente e uma boa dose de curiosidade.
Um mito? Algo como as irmãs Amala e Kamala, ou como o caso francês Victor de Aveyron… Este é o perfil do protagonista de todo esse levante de pesquisas e estudos científicos. Blikstein, a partir de uma abordagem intercientífica e histórico-social, analisa o percurso de desenvolvimento de Kaspar Hauser, numa busca incessante em prol de relatar, diante de inúmeras considerações, que a construção perceptiva do ser humano, em todas as esferas de aplicação, depende, sobretudo, da práxis social, necessária para fomentar o arcabouço referencial-cultural de apreensão de uma suposta realidade, articulando, também, o jogo intencional existente entre a linguagem e o pensamento no caminho do desenvolvimento cognitivo de Kaspar Hauser; e, por conseguinte, como ocorre ou ocorreu o processo de concepção de mundo que o rodeava, posto que Kaspar Hauser esteve privado dos variados estereótipos culturais que condicionam a percepção e o campo epistemológico.
Mas, o que é mesmo a “Realidade”? Até que ponto podemos classificar como “Realidade” somente aquilo que percebemos? E a linguagem, onde ela atua e como ela pode permitir ao ser humano a descoberta da “Realidade”? Difícil encontrar tais respostas… todavia, exemplo melhor para se aprofundar nessa temática do que o de Kaspar Hauser, certamente ainda é mais raro de se encontrar. Apoiado em diversas suposições, Blikstein envereda-se pelo processo de integração que Kaspar Hauser sofrerá ao “desembarcar” em Nuremberg, assim como nos usos da linguagem e nas tentativas de concepção daquilo que sua natureza até então não concebera: a representação do que está à sua volta.
Tentando “dar nome aos bois”, o autor insiste em pregar que tanto o pensamento quanto a linguagem se originam de maneira independente, transformando-se posteriormente no modelo de linguagem interna que constituirá a maior parcela do complexo de pensamentos mais amadurecidos, “talvez porque a significação do mundo deve irromper antes mesmo da codificação linguística com que o recortamos: os significados já vão sendo desenhados na própria percepção/cognição da realidade”.
Kaspar Hauser, para o autor, aparece como um “modelo de práxis libertadora”, o que faz com que o autor inicie um processo de descoberta e investigação, baseando-se, para tal ato, em seu aparelho perceptivo-cognitivo. Conceitos e considerações de inúmeros filósofos, linguistas e pensadores são aproveitados, servindo de base para a construção das “perguntas” a que o autor se destina a “responder”. Vale ressaltar, aqui, nomes como o de Santo Agostinho, Pierce, Saussure, Buyssens e até o do nosso poeta modernista Carlos Drummond de Andrade. Mas é o “Referente” o alvo de maior polêmica para o desenrolar das ideias de Blikstein.
O incômodo já se inicia a partir do instante em que o autor cita o “Triângulo de Ogden e Richards”, fundadores da ideia de “Referente”. A preocupação com a correta comunicação entre símbolo e referência, ou significante e significado, irá propiciar a construção do debate maior sobre as barreiras e obstáculos criados pela influência da linguagem sobre o pensamento. Todos os tipos de signos são impostos a ele, mas o que fica é a pergunta: como Kaspar Hauser estaria apto à compreensão dos significados que têm as palavras – ainda mais por elas possuírem a capacidade de representar coisas -, se ele não atravessou um qualquer processo de aprendizado-sociabilização importante para o desenvolvimento de um método de compreensão sígnico?
E é afirmando que “a educação não passa de uma construção semiológica que nos dá a ilusão da realidade, ou seja, que a educação estimula na criança um processo de abstração”, que Blikstein inicia a fabricação de suas teses/hipóteses. E o que dizer de um homem que passa a representar um incômodo? Pois, após algum tempo de convivência com a comunidade da cidade alemã, Kaspar Hauser começa a enxergar a realidade – que aos olhos dos demais estava tão bem ordenada -, com olhos subversivos e de negação, negação dos referenciais que a sociedade lhe insistia em impor, ou olhando para as pessoas, para os objetos e as situações com o espanto de um olhar ainda imaculado, também perturbador. Aqui, a relação do homem com o mundo não é uma relação direta, ou pelo menos não aparenta ser, mas uma relação mediada, sendo que os sistemas simbólicos são elementos que intermedeiam o sujeito e o mundo.
Diante da análise do texto de Blikstein, ficamos à mercê de um arrebol conceitual. Após a devida apreciação, o leitor adquire uma voz, que diz: toda linguagem criada é, posteriormente, utilizada para a comunicação. O uso da voz por Kaspar Hauser, a possibilidade de diálogo, a construção de uma mensagem baseada em outra mensagem recebida, a transmissão no tempo e no espaço da mensagem recebida e já processada, a sociedade como condição da linguagem e para a linguagem, têm de ser colocados como parâmetros iniciais e primordiais para o entendimento de todo o processo de estudo dado a partir do caso de Kaspar Hauser. Por outro lado, a real finalidade da linguagem, e tudo o que lhe é ramificação, ainda permanece enigmática, e não é diferente com o próprio Kaspar Hauser. Bom para todos, pois é o anseio por esclarecimentos dessa estirpe a via que alimenta a chama de dezenas de ciências e correntes de pensamento.
Então, que seja assim… Amém.
REFERÊNCIAS
BLIKSTEIN, Izidoro. Kaspar Hauser, ou a fabricação da Realidade. 9.ed. São Paulo: Cultrix, 2003.
Germano Viana Xavier é mestre em Letras e jornalista profissional (DRT BA 3647). Desenvolve estudos e pesquisas sobre Literatura e Direitos Humanos – Comunicação e Cultura – Literatura e Letramentos – Língua Portuguesa – Linguística – Cinema – Educação e Educomunicação. Idealizador/Coordenador Geral do Jornal de Literatura e Arte O EQUADOR DAS COISAS (ISSN 2357 8025), periódico fundado em março de 2012 e que circula no Brasil, Portugal, Estados Unidos e Irlanda. Escreve desde 2007 o blog O EQUADOR DAS COISAS, cujo arquivo conta hoje com aproximadamente 2.000 textos de sua autoria. Em 2016, seu livro de contos SOMBRAS ADENTRO foi finalista do IV Prêmio Pernambuco de Literatura. Possui publicações em livros, jornais e revistas literárias diversas. Baiano desterrado, natural da Chapada Diamantina, tem 35 anos e atualmente habita o agreste meridional pernambucano. Canal no YouTube: www.youtube.com/oequadordascoisas
** Esse texto é de responsabilidade exclusiva do autor. Não reflete, necessariamente, a opinião do Só Sergipe.
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