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Luciano Correia (*)

 

A propósito da tragédia que se abateu sobre o Marrocos, exatamente em Marrackech e região, trago essa semana um tbt de uma matéria que fiz em 2010, quando vivia na Espanha, fazendo o doutorado sanduíche. Para contrastar um pouco com a tristeza trazida pelo terremoto, um pouco da alegria de uma curta viagem pelo seu lindo território.

Lá em Marrakech

Antes de deixar Madrid, fui ao Marrocos, dessa vez com três amigos brasileiros que vivem em Barcelona. O continente africano sempre me fascinou e, em duas ou três vezes antes, tentei ir ao Marrocos, a partir da cidade do Porto ou de Granada, em diferentes momentos. Para terem uma ideia do preconceito europeu: em 98, o funcionário de uma agência de viagem do Porto me desaconselhou a fazer um circuito sozinho por este país, segundo ele, “pelos perigos que representava”. Curioso: no momento em que escrevo este texto, a bordo da segunda pior companhia aérea do mundo, a Tap, com seu atendimento de quinto mundo, folheio jornais portugueses que dão conta de uma violência que não vi no Marrocos nem nos países europeus onde estive ultimamente. Portugal tem uma bela comida, bons vinhos… e o fado. Não podemos generalizar, mas vejo que grande parte das mulheres são demasiadamente duras no trato. Fado sim, fodas não.

Cheguei a Marrakech com uma hora de atraso, graças à pior companhia aérea do mundo, esta, sim, a campeã, Ryanair. É um pau-de-arara voador, com uns vinte meninos de colo chorando desde a sala do embarque em Barajas até o controle de passaporte nesta cidade linda e avermelhada. Fico com certa pena das aeromoças, obrigadas a circular pelo corredor vendendo bugigangas e perfumes, como fazem os bancos brasileiros, inclusive os estatais, para que os funcionários atinjam metas e cotas.

O Marrocos é lindo, envolvente, uma experiência radical, mas às vezes abusa de nossa paciência. Reza a tradição que toda compra deve ser negociada. Já sabia disso, mas não imaginava que era tão irritante. Não existe tabela de preços. Tem-se que negociar tudo. Minha estreia foi no táxi que me levou ao pequeno hostal situado nos limites da Medina, na parte de dentro, onde já se encontravam os colegas de Barcelona. Já sabia o preço da corrida antecipadamente, mas fui obrigado a entrar numa absurda negociação para regatear o que, para mim, parecia apenas justo. Por fim, batemos o martelo: dez euros, por uma corrida de menos de cinco quilômetros, o que é caro, mesmo para os padrões europeus.

No hostal, sou recebido pelo sorridente Ali, que, além de não falar espanhol, arranha um inglês na velocidade 5, de modo que compreendo uma outra palavra. Ele oferece a bebida que, a partir de então, vai ser minha pedida nesse país muçulmano: o chá de menta. É impressionante, porque, embora se consiga álcool em hotéis e restaurantes, no restante do país é impossível molhar o bico. Sempre que pergunto por uma cerveja, um rabo de galo que seja, mas eles riem e dizem que “álcool não”.

Luciano passeando “confortavelmente” de camelo

O segundo dia foi consumido nas vielas e no mercado de Marrakech, travando uma luta titânica com o vendedor toda vez que pretendia comprar um pequeno regalo. Para não negar a fama de bicho-grilo, no dia seguinte encarei um programa radical: eu e mais doze pegamos uma van e subimos as montanhas que circundam Marrakech e avançamos por todo o dia sobre o território berbere até chegarmos a Zagora no final da tarde. Uma cidade bonita e organizada situada nas franjas do Saara.

Mais meia hora de carro e paramos num povoado, para compras necessárias no ambiente off-civilização: basicamente papel higiênico e água. A van avançou mais alguns quilômetros e, finalmente, trocamos seu desconforto pelo desconforto elevado ao cubo oferecido por um camelo. Pode ser bonito no cinema, mas é um troço estranho, com uns solavancos bruscos que ameaçam nos jogar pelos ares, ralando a bunda, coxas e pernas, condições ideais para assaduras pelos dias seguintes.

O deserto radical

 

As iguarias marroquinas

Uma hora e meia e algumas piadas depois, chegamos num acampamento berbere, tribos nômades que habitam o Saara desde que Maomé vestia fraldas. Somos recebidos com uma rodada de…. chá de menta. Pergunto a Hassan, um dos simpaticíssimos rapazes condutores dos camelos e responsável por toda infra, se não há um goró por perto, só para eu matar saudades da mardita. Ele aponta para a bela chaleira e tira uma chinfra com minha pergunta: “uísque berbere”. Isso tudo na tenda principal, com todo o grupo sentado em tapetes e ao redor de duas mesinhas rebaixadas, onde depois, numa grande panela, foi servido o jantar: frango cozido com legumes, pão e… chá de menta. Um dos meus amigos fez cara feia e disse que não comia em prato coletivo, com todo mundo enfiando seu garfo. De minha parte, como é sabido, nada acho chato. Comi feito um sultão do deserto.

A noite terminou na beira de uma fogueira, madrugada adentro, com os cânticos berberes e – já era mais que hora! – um uísque espanhol, meio safado, que o impagável Pepe, espanhol de Mallorca, sacou sabe-se lá de onde. O tal Pepe foi uma atração à parte na viagem: cheio de histórias, tinha jeito pra tudo. Nunca um uísque vagabundo foi tão curtido e cultuado. A gripe que depois me fez companhia foi apanhada aí, na frieza da noite saariana, tomando o tal xarope e cantando a melhor música brasileira: Gil, Caetano, Luiz Gonzaga e… Bartô Galeno, sucesso, como diria Rossi, em todos os motéis e cabarés das cidades nordestinas. “Eu vou pedir à lua/ Pra iluminar a rua…” É poesia pura sob a lua cheia e as constelações do deserto.

Uma argentina que integrava o grupo deu uns balanços e depois pediu: “Não sabe uma de Cássia Eller?”. Não. Todos os brasileiros da aventura eram nordestinos.

Honestidade árabe

Com toda a fama de ligeiros nos negócios que os marroquinos carregam, achei que tinha contratado um pacote turístico numa agência falcatrua. Pela cara dos sujeitos, cheirava às organizações Tabajara. Mas tudo foi cumprido com simplicidade, mas sem falhas.

A agricultura sustentável

No Brasil, a palavra “sustentável” ainda está na fase do modismo de congressos e ambientes acadêmicos, mas no deserto vi a sabedoria das tribos do Saara aplicada nos modos de cultivar a terra, de usar os recursos, irrigar, guardar água, enfim, viver com uma dignidade surpreendente.

O melhor suco do mundo

Até então, tinha no nosso maravilhoso suco de cajá a melhor bebida do mundo, tirante as alcoólicas, evidentemente. Em Marrakech, sobretudo na praça central, fazem um suco de cítricos, mistura de laranja, umas tangerinas e toronjas que resultam num suco incrivelmente saboroso. É a melhor bebida da minha vida. Se o Marrocos não fosse a riqueza que é, valeria uma viagem só pra beber essa delícia.

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Luciano Correia

Jornalista e presidente da Fundação Cultural Cidade de Aracaju (Funcaju).

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