Por Acácia Rios (*)
Vamos beber, vamos beber nos cálices alegres
Que a beleza adorna
E que o efêmero momento se embriague de prazer.
Brindemos aos doces tremores que o amor desperta.
Libiamo ne’lieti calice, Verdi
A voz do tenor Sabino Martemucci no meio da tarde bastou para me remeter a um momento que considero singular em Aracaju: a montagem da ópera La traviata, de Giuseppe Verdi. O seu timbre ativou uma outra voz no fundo da minha memória: a do tenor Francisco Bento no papel de Alfredo Germont, no Teatro Atheneu, em 1994. O tempo suspenso daquele momento me levou à noite de estreia em que, deslumbrada, assistira pela primeira vez a uma ópera. E da qual saíra transformada.
Só veria outra montagem operística alguns anos depois, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, cuja arquitetura pretendia ser uma cópia da Ópera de Paris. Foi quando o conheci pela primeira vez. Estar ali era como antever o original, que conheci anos depois. Mas diferente da primeira experiência, fui paramentada com binóculos com os quais pude ver claramente a expressão dos atores, sentindo-me parte do espetáculo. Verdade que, no século XIX, esse objeto também era usado no teatro para ver, ser visto e paquerar, como podemos notar em várias narrativas românticas.
Naquele momento do Municipal, Salomé, de Oscar Wilde, também me remeteu a La traviata. O tempo, no entanto, foi deixando-a lá atrás, até que a voz de Sabino e a atmosfera de Aracaju (também pudera, a Escola de Artes Valdice Teles, onde trabalhamos, localiza-se em frente ao Atheneu) trouxeram-na de volta. Fazendo as contas, lá se foram trinta anos.
La traviata, posso dizer, se constituiu ao longo de tempo em uma obra com a qual passei a ter uma relação afetiva. Verdi é um dos autores de ópera mais populares e suas músicas são muito conhecidas, como as de Aída, Rigoletto, Il trovatore. O meu interesse, no entanto, deu-se pela relação com a literatura. La traviata é inspirada no romance A dama das Camélias, de Alexandre Dumas, filho, que por sua vez inspirou Lucíola (1853), de José de Alencar, cuja personagem principal era leitora de Dumas, como podemos ver no capítulo XV desta obra:
Era um livro muito conhecido— A Dama das Camélias. Ergui os olhos para Lúcia interrogando a expressão de seu rosto. Muitas vezes lê-se não por hábito e distração, mas pela influência de uma simpatia moral que nos faz procurar um confidente de nossos sentimentos, até nas páginas mudas de um escritor. Lúcia teria, como Margarida, a aspiração vaga para o amor? Sonharia com as afeições puras do coração?
Portanto, a tríade Dumas – Verdi – Alencar se configura em uma relação estreita de intertextualidade. Conhecer as semelhanças e diferenças de cada texto aprofunda a relação com os enredos e também nos dá o retrato de uma época. Não me estenderei aqui sobre as interrelações, mas não posso deixar de elencá-las, pois compõem o entendimento narrativo. Em suma, temos três personagens femininas que são cortesãs e se apaixonam por nobres ou por homens socialmente bem colocados. Ao subverter o padrão de comportamento esperado delas, passam a enfrentar os preconceitos e obstáculos para viverem o seu amor.
Aquela havia sido uma aventura solitária, pois nem todos do meu círculo de amigos tinham interesse em assistir à ópera. Por isso, durante muito tempo não pude compartilhar essa experiência com ninguém. No entanto, ao perguntar a Marília Teixeira – doutora em canto lírico e colega da Escola -, sobre La traviata, disse-me que tinha participado do coro. Por fim, pude dividir com outra pessoa o que eu tinha vivenciado naquela noite. Consultamos o libreto e, um a um, ela identificou os artistas. Naquele momento, a memória da ópera deixava de ser individual.
Marília, na época estudante de Direito, lembra daquele momento com emoção. “Tudo era novidade. Quando terminamos os ensaios no conservatório e fomos para os bastidores do teatro, foi a maior euforia. Imagine a gente se deparar com o figurino da ópera, trazido especialmente do Rio de Janeiro por Sergio Domingos, figurinista do Teatro Municipal”, lembra.
Mas ela recorda também dos desafios estruturais para encenar uma ópera. “O teatro Atheneu não tem fosso, que é o lugar onde fica a orquestra. Por isso, a encenação foi só com o pianista Larry Fontana, também do Rio. Outro desafio foi a seleção de cantores líricos. Como havia poucos profissionais, o coro teve que ser composto praticamente por leigos”, conta.
Adriano José dos Santos, que atuou como tenor, também recorda daquele momento com muito carinho. “Eu estava acostumado a participar de agrupações corais e pude experimentar estar ao lado de grandes cantores e cantoras líricas do país. Pessoalmente, representou um salto qualitativo”, conta, apesar de não ter seguido a carreira.
Não posso deixar de mencionar uma passagem anedótica. Era estudante de Jornalismo e, quando soube da montagem, me pareceu algo tão excepcional, que eu também queria contribuir para a memória daquele evento. Entrevistei a produtora Rosalina Barreto e publiquei uma matéria no antigo Cinform. Ela me convidou para a noite de estreia. A caminho do teatro, pensei: e se ela se esqueceu de pôr meu nome na lista de convidados?” Ora, simplesmente daria meia volta e pegaria meu ônibus para casa. Mas isso não ocorreu, felizmente.
No último dia 28, no encerramento das comemorações dos 79 anos do Conservatório de Música de Sergipe, Marília Teixeira e Sabino Martemucci interpretaram Violeta e Alfredo. Cantaram apenas o intróito “Libiamo ne’ lieti calici” (de cuja letra extraí a epígrafe deste artigo e que marca o momento em que Alfredo faz um brinde à vida) mas foi suficiente para lembrar daquele momento em que, no balcão do Atheneu, me senti enlevada pela forma dramática e poética com que a vida estava ali representada.
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Inspirada no romance A dama das Camélias, de Alexandre Dumas, filho (1848), La traviata (1853), que pode ser traduzida por “a mulher caída”, conta a história de Violeta Valéry, uma dama de companhia que se apaixona pelo nobre Alfredo Germont. Depois de altos e baixos, o relacionamento se deteriora, assim como a saúde de Violeta, que morre de tuberculose. A história é dividida em três atos.
O tenor e doutor em Ópera e canto Sabino Martemucci, que dirigiu La traviata três vezes, não considera esta a melhor obra de Verdi. No entanto, reconhece o lugar que ela ocupa no imaginário popular, pois o enredo se vale de aspectos emocionais do ser humano. “Nessa obra há paixão, amor, ardil, romantismo, humilhação, luxo, alegrias, tristeza e doença. Os aspectos sócio-políticos são evidentes e destacam-se pela diferença de níveis sociais de Violeta e Alfredo”, analisa.
O libreto, de autoria de Francesco Piave, é parecido com o romance, que tem muitos elementos autobiográficos. Dumas, como autor realista, faz alusão aos valores burgueses mostrando a hipocrisia da sociedade, que só aceita o relacionamento entre uma cortesã em um nobre desde que ele não ultrapasse certos limites pré-estabelecidos.
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Primeira e única montagem de uma ópera em palco sergipano, a ideia partiu de Rosalina Xavier de Almeida Barreto, que criou a SIC Produções com o intuito de inserir no estado eventos relacionados à música clássica.
Antes da montagem da ópera, a produtora fez uma espécie de prévia: um Duo Camerístico com o maestro Larry Fountain, do Rio de Janeiro e o tenor sergipano Francisco Bento. O público lotou o Teatro Atheneu, demonstrando interesse pelo clássico. “Este estímulo nos levou a dar próximo passo e, apesar de todas as dificuldades, decidimo-nos por trazer La traviata”, explica Rosalina, cuja produtora tinha como objetivo colocar Sergipe no cenário cultural nacional.
Para isso, também foi criada na época uma Oficina de Ópera, que seria um núcleo de produção de futuros espetáculos, já vislumbrando, na época, a inauguração do Teatro Tobias Barreto.
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A escrita apaixonada da jornalista, cronista e memorialista Acácia Rios não é impedimento para que o texto falhe em técnica e em dados.
Muito pelo contrário. A documentação emotiva de Rios sobre o evento operístico é, também, cuidadosa, detalhada, contextualizada.
La traviata faz parte da chamada trilogia popular das óperas elaboradas por Verdi, juntamente com Rigoletto e Il Trovatore. Na época das suas primeiras apresentações foi, se não me engano, considerado um trabalho extremamente inovador, seja em sua forma, seja quanto o tema. Como bem observou Acácia Rios, é, notadamente, um drama fundado na percepção burguesa de mundo. Mais uma vez, Rios nos presenteia com uma crônica-documento. É a história dela, é a história de um alto momento na cultura em Aracaju.