Por Acácia Rios (*)
Ver o regresso dos Parafusos é
como sentir que finalmente estamos
dando a devida importância
ao que pertence ao nosso estado,
à nossa história ao nosso legado.
Que bom que podemos mostrar aos outros
o nosso fantástico sergipano.
Douglas, personagem do conto
‘A volta dos Parafusos’, César Ribeiro
Depois de um interregno involuntário, volto a esta coluna com o anúncio do lançamento de Fantástico Sergipano, de César Ribeiro, que trilha pela primeira vez a narrativa curta, mas já tem dois romances na algibeira. O lançamento está marcado para as 17h de hoje, 4 de abril, na Biblioteca Epifânio Dória e contará com um sarau lítero-musical antecedido por uma breve apresentação do livro.
O leitor não vai se arrepender. A partir de um olhar novo, os contos abordam elementos culturais de Sergipe pela perspectiva do gênero fantástico. O resultado são dez histórias com enredos que mesclam realidade e ficção, tradição e atualidade de uma forma original.
Fantástico Sergipano chega por intermédio da Lei Paulo Gustavo, via edital da Fundação Cultural Cidade de Aracaju (Funcaju). Tem o selo da Editora Alarde e ilustrações do artista visual Renan Cassiano.
Ao lançar mão do gênero fantástico, presente desde logo no título, o autor se utiliza dos elementos místicos e/ou sobrenaturais que são inerentes a várias festas culturais e religiosas. Mostra, então, os efeitos que as manifestações podem produzir nos seus partícipes, sendo a metamorfose e o duplo alguns deles.
O seu olhar sobre os eventos tradicionais, à medida que os atualiza e os insere na sociedade digital, confere-lhes novos contornos, reforça os aspectos culturais, sociais e econômicos. O Festival de Artes de São Cristóvão (FASC) que o diga. As trocas materiais e simbólicas ocorridas ali representam ganhos extras para as comunidades locais e reafirmam a sua identidade cultural. Esses aspectos podem ser observados, por exemplo, no conto ‘Andrômeda’, cuja personagem compra uma dose de cachaça local no Pisa macio e paga em Pix.
O projeto editorial, tal como foi concebido, não poderia prescindir da pesquisa teórica e empírica. O autor percorreu dez municípios sergipanos para familiarizar-se com as manifestações e folguedos. Festa dos Caretas (Ribeirópolis), Parafusos (Lagarto), Taieiras (Laranjeiras), Bacamarteiros (Carmópolis), Barcos de fogo (Estância), Procissão dos Penitentes (Nossa Senhora das Dores), Reisado (Japaratuba), Chegança (Aracaju), Festa do Mastro (Capela) e o contexto do tradicional Festival de Artes de São Cristóvão (FASC) são as referências culturais escolhidas por ele.
Mas não se enganem. A pesquisa serviu para dar ambientação e verossimilhança às narrativas. Ao longo das 126 páginas o leitor vai encontrar sólidos textos de ficção que fazem uso de muita criatividade e recursos literários os mais diversos, o que, na minha opinião, resultou em um trabalho original.
“Quinze Almas e um Dedo de Prosa”, uma das histórias, faz referência à Procissão dos Penitentes, celebrada há mais de um século no município de Nossa Senhora das Dores. Durante a Semana Santa, os devotos se vestem de branco e pedem perdão pelos pecados.
No conto, o autor insere o personagem Tinhão, nesse contexto com uma contradição, no mínimo, curiosa. Um senhor com deficiência auditiva se dá conta de que é o único capaz de escutar os lamentos dos que já se foram. Seu papel é o de ‘ouvir’ os defuntos e ser mediador entre estes e os vivos. “Mas como?”, pergunta-se o personagem. “O que faria? Tinha acordado com uma alma penada pedindo socorro ao pé do ouvido. (…) Ninguém acreditaria se contasse a verdade. Onde já se viu surdo ouvir coisas?” (p. 78).
No relato “Andrômeda”, uma jovem estilista chega ao FASC com o intuito de se reunir com amigos, mas o encontro com o seu duplo, que ocorre enquanto percorre os lugares emblemáticos da quarta cidade mais antiga do país, remete-a a questões mal resolvidas do seu passado.
Era impressão ou a moça vestia a mesma roupa que ela? Algo improvável. Impossível seria a palavra mais adequada, pois o look era único e exclusivo, não havia a menor possibilidade de alguém o ter copiado uma vez que não o compartilhara com ninguém? Então, como? (p. 22)

‘A volta dos Parafusos’, tem como elemento cultural a apresentação do grupo de mesmo nome e se origina no período colonial, quando os escravos fugitivos se disfarçavam com as anáguas das sinhás roubadas dos quaradouros. A luz da lua refletida sobre as roupas brancas fazia com que parecessem assombrações das quais ninguém queria se aproximar.
Com a abolição, os escravos livres ‘voltaram’ e desfilaram de anáguas nas ruas, fazendo movimentos em 360 graus nos sentidos horário e anti-horário, como parafusos. Assim teve início essa singular tradição, reconhecida desde 2020 como patrimônio imaterial do Estado.
Na narrativa, o autor transforma os integrantes do grupo em seres encantados, intangíveis. Parte da identidade coletiva, a sua aparição anual é aguardada ansiosamente pela comunidade. O recurso que atualiza o conto é a inserção de uma equipe de TV, que narra a história ao vivo e explora a expectativa geral em torno da volta dos Parafusos.
O que aconteceria com a população caso eles não aparecessem, é o que nos perguntamos após a leitura. A ‘resposta’ está indicada nas palavras de Nildo Lage sobre a cultura popular, que serviram como epígrafe do conto: “as novas gerações viveriam sob as trevas do anonimato”.
Ao falar sobre a obra, César se considera privilegiado: “Ela me proporcionou momentos profundos de contemplação. Quanto mais mergulhava nas pesquisas, mais me fascinava a potência de Sergipe no cenário cultural. Tenho muito orgulho de poder eternizar, à minha maneira de contar histórias, o meu amor por este estado.”
Vale a pena a leitura de Fantástico Sergipano, tanto pela sua originalidade quanto pelo diálogo cultural, que, como uma colcha de retalhos, fornece uma visão amalgamada de nós mesmos.
Quem é César Ribeiro

Nascido em Salvador, mas residente de Aracaju há 26 anos, começou seu fascínio pelas artes na infância, passou pelo teatro, mergulhou na produção de jogos de RPG e histórias em quadrinhos, que desenhava e vendia para os colegas de sala. Foi durante a pandemia que se intensificou o hábito da escrita como terapia.
Nesse período, desenvolveu a criatividade por meio do universo fantástico, o que lhe possibilitou enredos originais, sem deixar de lado o teor político e social. Tem três romances publicados, sendo o primeiro deles finalista de dois prêmios literários. “Fantástico Sergipano” é a sua primeira coletânea de contos, vencedora do edital da Lei Paulo Gustavo. Atualmente, cursa Escrita Criativa na Escola Oficina de Artes Valdice Teles.