Cultura

Livro mostra que o “olhado” e o “quebranto” são tratados com rezas há mais de 2.000 anos

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No sertão da Bahia, povoado de Olhos D’Água, município de Tucano, Dona Florência de Jesus, na segunda década do nosso século XXI, rezava quem a procurava com “olhado”, “quebranto” e principalmente o “mal do ar”, capaz, segundo a sertaneja, de provocar congestão, dormências, dor de cabeça e outros problemas. Dona Florência (e outros rezadores) é herdeira de uma tradição que remonta a Antiguidade. Nas “Cartas Paulinas” do Novo Testamento, São Paulo se referia como uma tradição de sua época os perigos existentes no ar onde habitavam os “espíritos do mal” a espalhar seus malefícios nas pessoas. Outras moléstias como o “cobreiro” e a “erisipela” já eram conhecidas e tratadas por assírios e egípcios mil anos antes de Cristo. Mas, ainda hoje é possível encontrar benzedores no Brasil que se dizem capazes de livrar as pessoas desses problemas.

O livro “Com dois te botaram/com três eu te tiro – Um estudo sobre religiosidade popular, suas rezas, benditos e excelências”, de Helenita Monte de Hollanda e Biaggio Talento, procura identificar no mundo contemporâneo as reminiscências da prática milenar das benzeduras dentro da “medicina popular” que surgiu na Antiguidade, absorveu e adaptou rezas no Cristianismo, foi tolerada num período da Idade Média; e num outro – que se estendeu até a Idade Moderna – confundida com bruxaria.

O início da pesquisa que resultou no livro foi a coleta de informações a campo feito por Helenita, potiguar, médica de formação, psicanalista e pesquisadora da cultura popular brasileira, autora do livro “Como diz o ditado…”. As entrevistas com rezadoras e rezadores ganharam impulso quando ela trabalhou como médica da família em cinco municípios baianos: Mucugê, na Chapada Diamantina, Xique-Xique, na região do Rio São Francisco, Tucano, no sertão, Maragogipe e São Félix, no Recôncavo baiano. Primeiro anotava tudo e registrava com um gravador cassete. Depois passou a gravar as entrevistas com um Ipad. Ao longo de dois anos (2011 e 2012) trabalhando e morando nessas cidades, acumulou um bom acervo de histórias, lendas, benzeduras, rezas, benditos e excelências. Ao conhecer de perto a vida e a religiosidade do sertanejo foi possível penetrar um pouco na sua alma.

A pesquisa que seria usada na produção de livro, abriu espaço antes do material escrito, para que ela e o companheiro, o jornalista baiano Biaggio Talento, criassem o Canal Cultura Popular Brasileira no You Tube, (www.youtube.com/c/CulturaPopularBrasileira) no qual parte dessa pesquisa foi transformada em vídeos com o objetivo, não só divulgar, mas preservar essa rica vertente da cultura popular brasileira. O canal é um sucesso. Alcançou mais de 4,1 milhões de visualizações até março desse ano. E, o mais importante, atraiu uma nova geração de rezadores e rezadoras a mostrar as rezas, benditos e excelências que conhecem. Com isso, a pesquisa se expandiu presencialmente e de forma virtual a vários estados além da Bahia: Sergipe, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Ceará e Piauí de onde benzedores e benzedoras enviaram suas contribuições.

“A astrolatria é um dos primeiros rituais das tribos primitivas do mundo. E os cultos à Lua e ao Sol, se destacavam nesse período em que os humanos começavam a conhecer os astros. É incrível que um culto milenar de povos tão distantes esteja presente no Brasil do século XXI”, diz Helenita, citando um dos mais afamados rezadores que conheceu em Tucano-BA, em 2012, Pedro Santinho. “Entre suas rezas incluía o Sol e a Lua para curar a bicheira nos animais”. Outra, Veneranda Ferreira de Souza, de Mucugê-BA, tirava “friage” com ajuda dos astros: “Deus é o Sol, Deus é a Lua da melhor claridade, de sereno e Sol da melhor afinidade. Eu rezo com o poder de Deus e da Virgem Maria”. Outro, Domingos Fraga, de Lagarto-Sergipe, usava ao benzer a força “dos 13 raios do Sol que esquentou o raio da Lua que esfriou. Enfriou, retirou, desligou”.

O tempo, os animais, os elementos da natureza. Tudo pode ser “controlado” pelas benzeduras ou encantamentos. O livro cita, entre outras, uma fórmula para se apagar incêndios recolhida na década de 1940 na cidade paulista de São Luiz de Paraitinga. Pega-se um tição do fogo de casa e assopra até surgir labareda fazendo com que a chama entorte para o lado do incêndio na mata. O rezador garantia que os dois fogos se encontravam e o de fora se extinguia. A explicação era de que “o fogo da casa é batizado, por isso acaba com o outro que é pagão”.

Para Talento magia, religião e ciência tem convivido ao longo da história e permanecem trilhando vias paralelas até os dias de hoje. “Como escreveu o antropólogo Claude Lévi-Strauss, magia e ciência são modos de conhecimento desiguais quanto aos resultados teóricos e práticos. A ciência acerta mais que a magia na medida que esta às vezes também tem êxito. Por outro lado, a ciência pode falhar. Deve ser por isso que alguns astronautas antes de embarcar num foguete para o espaço, realizam rituais supersticiosos”.

A “Reza para talhar sangue” também conhecido como “Tomar o sangue de palavra” é exemplo de uma sobrevivência que dura mais de 300 anos. Os pesquisadores colheram com o rezador Pedro Santinho, em 2012:

“Sangue tu tem com ti

Como Jesus Cristo teve em si

Sangue tu tem nas veias

Como Jesus Cristo teve na sua ceia,

Sangue não vem tão forte,

Como Jesus Cristo teve na

Hora de sua morte. Amém.”

Posteriormente, encontraram versão muito semelhante, em latim, da mesma reza citada em livro do século XVIII como revelada por um feiticeiro julgado pela Inquisição em Portugal:

“Sanguis mane in te;

Sicut Christus fecit in se;

Sanguis mane in tua vena;

Sicut Christus in sua paena;

Sanguis mane fixus;

Sicut Christus fuit crucifixus.”

“O poder da oralidade é imenso e explica como essas rezas chegaram até os nossos dias”, assinalou Helenita. O livro, que marca a segunda parceria entre Helenita e Biaggio (a primeira foi “Basílicas e Capelinhas” já em 4a edição) sai, por enquanto, em formato Ebook Amazon, trazendo mais de 300 rezas e orações, além de inúmeros benditos e excelências que mostram a força da religiosidade popular brasileira.

Outras rezas

Azia

Indo eu por uma carreirinha,

Encontrei a uma portinha

A Virgem Maria

Com seus livrinhos na mão:

Num lia

Noutro escrevia

Noutro talhava a azia.

 

Olhado e quebranto

“Com dois deitaram

Com três eu tiro,

Com o poder de Deus

E da Virgem Maria

Tiro esse quebranto e

Esse olhado.

O que é que tem fulana?

Tem quebranto, tem olhado?

Eu tiro com o poder

De Deus e da Virgem Maria.”

 

Erispela

“Eu vinha por um caminho,

Encontrei Nossa Senhora,

Perguntei à Virgem Maria:

– Como sararia?

– Com reza.

Vermelha é bicha fera que

Dá no osso, dá na carne,

Dá na pele.

Assim como tu é uma bicha fera

Que dá no osso, dá na carne,

Dá na pele, com os poderes

De Deus, da Virgem Maria eu

Te corto o pescoço.”

 

Engasgo

Senhor São Brás

Disse a seu moço

Que subisse

Ou que descesse

A espinha do pescoço.

 

Espinhela caída

Seja em nome do Senhor

Este seu mal curado

Espinhela caída

e ventre derrubado

Eu te ergo, curo e saro

Fica-te, espinhela, em pé!

Jogo do Bicho

“Minha Santa Martha, vós não fostes aquela que estavas sentada na ponta do bote com uma vela acesa na ponta do rabo? Assim eu quero com a vossa força que me mande um dos cavaleiros mais fortes, cão coxo, satanás, barrabás, caifaz, e maiorá me trazer o milhar, a centena ou o animal de amanhã. 3 Pai Nosso a Santa Martha e a São Silvestre.

No inferno tem uma pedra debaixo da pedra tem um milhar, quem vem trazer Cordér, Noizer, Satanaz e Lucifér”.

 

Contatos com os autores

Helenita, zap 84 8135-3193

Biaggio, zap 71 9621-3522

 

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