Prof. Dr. Claudefranklin Monteiro Santos (*)
Na minha infância, eles eram conhecidos, pejorativamente, por doidos. Apesar do medo que causavam, tenho memórias afetuosas deles. Alguns, ainda lembro em detalhes e também de nomes. Começo pelo meu preferido: Assis doido. Maltrapilho e malcheiroso, barba por fazer, pele amarelada e magro, andava pelas ruas de Lagarto-SE, com um caneco azul de plástico na mão, entrando nas casas das pessoas, pedindo café. Não era agressivo, mas gritava constantemente. Afora ele, o doido da marcação (instrumento usado em fanfarras e Desfile de Sete de Setembro). Olímpio, um senhor alto, calvo e de cabelos grisalhos, camisa de botão branca, deixando entrever parte da barriga grande. Andava com um saco nas costas, catando coisas na rua. Maria doida, negra, cabelos cacheados, magra, que em acessos de raiva, ficava nua na praça e até, algumas vezes, durante a Missa, para desconforto do saudoso padre Mário. E claro, os doidos de Vina. Isso mesmo, no plural. Coitada de dona Vina, três filhos com insanidade mental. Lembro apenas de dois: um que era bem alto, dizem que alfaiate quando sadio, magro e que vivia falando sozinho, rascando e simulando uma espécie de facada ao vento. O outro, andava descalço, apenas com um short curto, pedindo esmolas e às vezes assustando as pessoas.
Essa longa narrativa é para ilustrar o que foi aquela década de 70 do século passado para muitas pessoas com saúde mental comprometida. Enquanto aqueles vagavam pelas ruas e até tinham famílias que bem ou mal os amparavam, os pacientes do antigo Hospital Colônia, em Barbacena-MG, não tiveram o mesmo destino. Aqueles, morreram naturalmente, sobretudo dos que eu tive conhecimento e tiveram velório e sepultura. Enquanto estes morreram, em número de 60 mil, entre 1930 e 1980, vítimas de condições degradantes e desumanas, alguns até sem terem sido, realmente, diagnosticados com problemas de insanidade mental.
O detalhamento dessa página horrível de nossa história, mais uma que ficou no anonimato por muitos anos, para não dizer “nos porões da memória/esquecimento”, pode ser encontrado tanto no livro-reportagem da jornalista Daniela Arbex, lançado em 2013, quanto no documentário da Netflix, baseado na obra, “Holocausto Brasileiro”, que foi ao ar em 2016, dirigido pela escritora e também por Armando Mendz. Trata-se não somente de um registro importante da história da loucura no Brasil, mas também uma denúncia das barbaridades, irregularidades e crimes que foram cometidos naquele lugar, sob as barbas do Estado Brasileiro, conivência de parte da sociedade e uso inadequado da ciência psiquiátrica.
O hospital psiquiátrico foi fundado no dia 12 de outubro de 1903, construído na antiga fazenda da caveira (um “epíteto” triste para uma trágica premonição). Durante anos, se criou uma mística em torno da localização da cidade, montanhosa, como um local curativo para doenças do corpo, do espírito e da alma. Por esse motivo, Barbacena compunha-se, ainda, de mais seis instituições psiquiátricas que lhe conferiram a alcunha de “cidade dos loucos”. Diz-se que, até a implantação da Era Vargas (1930-1945), a instituição atendia a seus propósitos, de acordo com o que se entendia de tratamento para doença mental naquela primeira metade do século XX. Doravante, até os anos finais da ditadura militar no Brasil, transformou-se num depósito de “loucos”, com características de presídio e também com requintes de extermínio, daí a associação com o holocausto da II Guerra Mundial.
O documentário “Holocausto Brasileiro” é um primor, seja no que se refere aos aspectos cinematográficos – destaco os quesitos som e fotografia -, seja no que diz respeito ao que se entende como verdade dos fatos ou verdade histórica. Não se trata de revisionismo, mas de mexer numa ferida que colocou a psiquiatria em maus lençóis naquela virada dos anos 70 para os anos 80, provocando a reação de profissionais sérios à época, dos quais, destaco um em nível internacional e outro mais perto aqui de nossa realidade. Franco Besaglia (1924-1980), psiquiatra italiano que mudou a forma de lidar os pacientes com problemas mentais, seja no método, seja na forma: tratando e cuidando. Besaglia visitou o Hospital Colônia, em junho de 1979, e por meio de conferências e entrevista mostrou a sua indignação, provocando o Estado, seja em nível nacional, seja em nível regional, a agir de outra forma que a até então.
Em Sergipe, o psiquiatra alagoano de Pão de Açúcar, nascido em 1940, naturalizado aracajuano, que depois de uma passagem exitosa pelo Hospital Adauto Botelho, fundou a Clínica de Repouso Pinel, em 1976, e depois, a Clínica São Marcelo, em 1979. Dr. José Hamilton Maciel Silva (que prepara livro biográfico e de memória institucional ainda para 2024) esteve, a exemplo de Besaglia, naquele processo de renovação da psiquiatria mundial e brasileira, que procurou jamais repetir os erros, equívocos, crimes e omissões do antigo Hospital Colônia de Barbacena, tratando os pacientes com humanidade, dignidade e racionalidade.
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