Lisbon Art Stay, em algum dia de janeiro de 2020.
Quando pagamos o bilhete que dava direito ao ingresso no Oceanário de Lisboa, ali dentro da sala de recepção do Lisbon Art Stay, jamais imaginaria o que estava por acontecer em minha vida. A Rua dos Sapateiros parecia tranquila àquela hora da manhã. Lisboa é uma cidade tímida nas primeiras horas do dia, bem como acontece com grande parte das cidades turísticas pelo mundo. Depois de um rápido preparo, lá fui eu. Na verdade, estávamos em número de três. Porém, a experiência que narro aqui certamente só a mim cabe explanar. Tomamos autocarros e bondinhos, cruzamos viadutos, atravessamos pontes, e logo o bairro do Chiado começou a ser visto através dos reflexos das janelas.
O objetivo do dia era desbravar a região do Parque das Nações, realizar algumas visitas naquela freguesia e, em especial, conhecer o grande expositor de vida marinha da capital portuguesa. Não gosto de zoológicos ou de locais semelhantes, confesso, todavia resolvi apostar algumas horas naquilo de estar entre animais exóticos confinados. O Parque das Nações é um imenso conglomerado de espaços físicos voltados a exposições ao ar livre, congressos e movimentos de arte ou negócios diversificados. Particularmente, naquele dia, fazia bastante frio, mas tranquilamente suportável.
Fomo-nos achegando ao local. O rio Tejo mostrava-se bravio, com suas águas fazendo ondas nervosas e balouçantes, auxiliadas pelos ventos fortes que por ali emanavam logo ao meio da manhã. Depois de voltearmos por quase a totalidade dos espaços, tomamos a direção ao Aquário Central do Oceanário, maior da Europa e segundo maior do mundo.
Subimos as rampas. Placas me chamavam a atenção. Foi como estar diante de uma espécie de anunciação. Todas elas davam conta de nos preparar para uma exposição de poemas, na área central do Oceanário, precisamente de uma exposição de poemas da escritora Sophia de Mello Breyner Andersen. Enfim, entramos. E, para minha sorte, os corredores não se mostravam abarrotados de pessoas. Um sinal de que seria possível ver tudo com calma.
Os grandes vidros, a enorme quantidade de água marinha represada, os peixes e as outras criaturas marinhas realmente despertavam muito a minha curiosidade, ao passo que não entendia como nós, seres humanos, chegamos ao ponto de sacrificar a liberdade de todos aqueles seres vivos daquela maneira. Isto nunca vai entrar em minha cabeça como algo saudável à sociedade. Porém, por ora, esqueçamos isto. Vamos ao motivo de eu estar escrevendo este texto.
No alto do primeiro grande vidro, Sophia já nos alertava para toda a sua potencialidade poética: “Quando eu morrer voltarei para buscar/Os instantes que não vivi junto ao mar”. Depois de ler aquilo, não dava mais para me arrepender por ter ido ao Oceanário, tido por muitos como o melhor e mais completo em todo o planeta. Enquanto os outros dois companheiros de viagem se deliciavam com os mistérios do fundo do mar, eu me prostrava silenciosamente aos versos de Sophia. Espalhados por todo o Aquário Central, estavam “submersos” nas paredes poemas inteiros feitos de sal e saudade, de medo e de desejo, escritos por Sophia.
Quase uma manhã inteira a ziguezaguear, a perambular, e a cada passo dado em direção ao fim do percurso, a certeza de que eu me aproximava e me apaixonava mais pelo ideário poético dos mares de Sophia de Mello Breyner Andersen. Foi um verdadeiro encontro. Inusitado, diriam alguns, como aqueles que sempre costumam nos marcar para todo o sempre. Um verdadeiro encontro, indubitavelmente. Guardei imagens em minha mente, em meu celular, e voltei ao Brasil com o intuito de estudá-la, de lê-la e também de homenageá-la, de alguma forma.
Deste ímpeto, nasceu uma série de poemas bilíngues (português-francês) em homenagem à Sophia, com a grandiosa parceria da escritora luso-angolana Luísa Fresta, que belissimamente traduziu a série intitulada de AS COISAS MINHAS DE SOPHIA e que é constituída de 10 poemas.
Uma palhinha:
ao longe,
lá onde o sol se confunde com o fim,
uma água lisa e pura abraça
toda a impossível matéria.
nesta ondular existência sem sal,
os sonhos dos alguns
se abraçam, dissipados ao vento,
e para conter
o avanço das misérias,
livres no horizonte e perdidas, fecho os olhos
e sinto toda uma escola de sensações.
autossuficiência | dor | escape
o alto mar engole o Grande Peixe
que é você, e por serem tão claros os tormentos,
outros azuis vão, seguidamente,
se modulando.
au loin,
là où le soleil se confond avec la fin,
des eaux lisses et pures enlacent
toute l’impossible matière.
dans cette flottante existence sans sel,
les rêves de certaines personnes
se serrent, dissipés dans le vent,
et pour contenir
l’avancée des misères,
égarées et libres à l’horizon, je ferme les yeux
et je ressens tout un éventail de sensations.
l’autosuffisance | la douleur | la fuite, l’échappatoire
la haute mer avale le Grand Poisson
qui n’est autre que toi, et puisque les chagrins sont si clairs
d’autres bleus, modulaires
se suivent.
Uma combinação incrível entre o azul vindo das lâminas das vidrarias do Aquário Central e o negro quase total dos corredores. Era o que eu via lá dentro. Em pequenas entradas que nos aproximavam dos vidros, bancos me serviam para sentar por bons minutos em contemplação passiva. Não era cansaço. Era estupefação. Na frente das banquetas, impressos na parede, ficavam instalados os poemas da Sophia, como já dito. Para os leitores. E para mim. Os peixes em círculos, vagando ao meu lado, transformaram-se em meros detalhes diante de meus olhos realmente interessados em Sophia.
Se um dia alguém me perguntar como e quando conheci a poesia de Sophia de Mello Breyner Andersen, responderei sem titubear: nas paredes escurecidas do Aquário Central do Oceanário lisboeta, numa exposição de poemas que, depois, ficaria sabendo que tinha se iniciado em comemoração ao Dia do Mar, em 2004. Sophia, falecida em 2 de julho de 2004, sempre teve o mar como um de seus maiores personagens e motivos para encantamentos íntimos, tanto na esfera vital quanto em sua obra literária. Eu, a partir daquele dia, havia encontrado o Grande Peixe. E isto é demais até hoje.
Germano Viana Xavier é mestre em Letras e jornalista profissional (DRT BA 3647). Desenvolve estudos e pesquisas sobre Literatura e Direitos Humanos – Comunicação e Cultura – Literatura e Letramentos – Língua Portuguesa – Linguística – Cinema – Educação e Educomunicação. Idealizador/Coordenador Geral do Jornal de Literatura e Arte O EQUADOR DAS COISAS (ISSN 2357 8025), periódico fundado em março de 2012 e que circula no Brasil, Portugal, Estados Unidos e Irlanda. Escreve desde 2007 o blog O EQUADOR DAS COISAS, cujo arquivo conta hoje com aproximadamente 2.000 textos de sua autoria. Em 2016, seu livro de contos SOMBRAS ADENTRO foi finalista do IV Prêmio Pernambuco de Literatura. Possui publicações em livros, jornais e revistas literárias diversas. Baiano desterrado, natural da Chapada Diamantina, tem 35 anos e atualmente habita o agreste meridional pernambucano. Canal no YouTube: www.youtube.com/oequadordascoisas
** Esse texto é de responsabilidade exclusiva do autor. Não reflete, necessariamente, a opinião do Só Sergipe.
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