A existência deste texto não parte do agora, i.e., do tempo do presente instante, mas de alguns muitos anos atrás, mais precisamente a partir do dia em que mantive contato – em primeira leva – com os textos dele: o Sr. Ângelo de Mattos Pereira, uma das mentes mais abençoadas desta pacata cidade chapadense e baiana de nome Iraquara. A bem da verdade é que sempre tive vontade de entrevistá-lo, iniciar uma conversa com este homem de letras vigorosas, aprender apreendendo o seu mundo – que também é o meu mundo, o nosso, patrimônio de todo iraquarense e/ou habitante da inigualável Chapada Diamantina-, mundo regado de recordações, poemas de expressividade nada parca, contos cativantes no encalço de assuntos pertinentes à nós, histórias de se prender atenções, estórias de se atravessar gerações, realidades puras, ficções mais puras ainda… sempre, sempre foi a minha intenção senti-lo assim de mais perto, alma tão gigantesca, mas se antes não tive a força necessária para produzir fatos a partir deste meu desejo, foi por me saber ainda despreparado para tal. Um encontro assim não poderia ser elaborado à revelia, sem os devidos preparativos. Era preciso um cuidado todo especial, ler mais coisas sobre ele, dele, escutar mais, suspeitar mais, amadurecer mais… só assim o caminho do nosso primeiro encontro dar-se-ia em mais validade para os propósitos futuros.
Pois sim, foi na manhã de uma sexta-feira, dia 20 de janeiro de 2012. De casa saí em direção à residência do escritor – as horas que vingariam prometiam um teor de vida muito grande. Minha imaginação especulava muito sobre todas as coisas e seus respectivos equadores. Algo de muito maravilhoso eu estava para presenciar, enfim. Porta da casa do escritor: tudo muito natural. Manhã nem quente nem fria. Céu aberto. Falei com o filho do escritor logo na entrada, mãos trocadas e apertadas, e ele entrou para avisar ao pai que o rapaz jornalista da entrevista tinha acabado de chegar.
Fui no tracejo marcado pelo filho, entrando-me sem receio, o Sr. Ângelo estava retirando algumas sacolas de dentro de seu veículo, dentro da garagem de sua morada. Recebeu-me com um sorriso divertido no rosto e um aperto de mãos alongado. Jeito simples, olhar simples, ser humano. Terminou a tarefa que estava fazendo com um pouco mais de pressa e logo pôs passos nas pernas em direção ao andar superior, convidando-me a segui-lo, por onde se via uma espécie de plaqueta em tinta com o seguinte dizer: Toca do Poeta.
Uma certeza: eu estava no lugar certo, no abrigo das letras, na fábrica de poemas e contos de um dos maiores nomes da literatura (seja de ficção ou não-ficção) regional de nossos dias. Não é todo dia que podemos nos encontrar com um poeta vivo, fato que substancia ainda mais o valor daquelas horas para mim. Subimos, ele meio de lado, pisando com firmeza os degraus, em paciente subida. Fiquei no primeiro degrau, enquanto via o molho de chaves nas mãos do poeta, tremulando. Ele tentou uma, a porta não abriu. Escolheu outra chave, a porta continuava sem querer ser aberta. Até que na terceira tentativa, a porta que dava para o interior da Toca do Poeta descerrou-se e, encantado com o encantamento do aposento – de uma simplicidade comovente -, fui me atirando nos dentros do lugar, ao passo que o Sr. Ângelo organizava alguns objetos que se encontravam sobre a mesa.
Sentamos, compartilhando de uma mesa em madeira escura. Opostos, um de cada lado, num mesmo frenesi baseado em cumplicidade e respeito. Eu, um mero aprendiz das artes e gracejos das palavras, jornalista ainda mais mambembe, ao lado de um homem já de vida plena que hoje está preparando o seu quarto livro, este intitulado de Odisseia dos Coronéis Sertanejos, já quase finalizado. Os outros são, por ordem de publicação, respectivamente: Fragmentos de Saudade (2006), O Império das Serranias (2008) e Realidades Telúricas (2009). O que seria uma entrevista, logo nos primeiros minutos desmanchou-se de formato e deu lugar a uma prosa inesquecível de quase três horas de duração – não tinha fita de gravador que resolvesse.
Questionado sobre a infância, o poeta começou a falar sobre sua árvore genealógica. Família com antepassados de Portugal, avó materna portuguesa. Nascido no dia 19 de junho de 1939, na encosta de um outeiro na Vila de Olhos D’Água do Seco, em Ibitiara-BA, ainda adolescente perdeu a mãe, quando ainda tinha de 11 para 12 anos, vitimada de doença do coração. Filho legítimo de Rosalvo Pereira e Maria de Queiroz Pereira. Contou-me que o pai casou-se novamente após a morte de sua mãe, que gostava também da madrasta, a senhora Leonília de Queiroz Pereira, mas era da mãe Maria que o filho tecia as mais saudosas considerações e reminiscências.
Ele recorda, no que senti um tantinho de emoção na fala e nos olhos, do dia em que viu pela primeira vez o retrato da mãe pendurado numa parede. “Eu nunca tinha visto uma foto da minha mãe. Naquele tempo só se via foto de gente “importante”, ligado à política. Foi uma grande surpresa para mim. Ela estava linda.” Depois que o pai morreu, foi morar em Lençóis-BA, na casa de um irmão. Era o ano de 1958. Assim que atingiu a maioridade civil, veio para Iraquara, onde fez o curso de magistério e trabalhou 35 anos exercendo o cargo de Oficial do Registro Civil das Pessoas Naturais com Funções Notariais. Cursou Letras e Artes na Universidade Estadual de Feira de Santana-Bahia e, depois de aposentado, começou a perceber que sua vida estava muito parada, sem grandes novidades nem atrativos. E foi justamente após ter parado de trabalhar que o Sr. Ângelo de Mattos Pereira sentiu a necessidade de começar a escrever.
O poeta relata que sempre teve tendência para a escrita de textos dos mais variados formatos. “Em Ibitiara, certa vez uma professora chamada Lindaura de Brito, minha primeira professora, me passou um trabalho. Lembro como se fosse hoje. No outro dia entreguei-o pronto, todo feito em versos. Eu nem sabia o que era um verso. Eu me lembro dela dizendo: Isso aqui é uma poesia. Você é poeta, meu filho!” Tudo estava iniciado, como se tudo já estivesse escrito há muito tempo no destino. Sr. Ângelo citou alguns nomes dentro da família que também escreviam, a citar o seu avô materno, exímio poeta e médico, assim como também o grande e polêmico Gregório de Matos Guerra, conhecido também como “Boca do Inferno” e que, segundo o escritor iraquarense, é parente bem chegado dentro da genealogia familiar.
Entre uma e outra nova informação sobre os três livros de sua autoria que estavam sobre a mesa, pediu-me que eu lesse em voz alta o poema “A Terra não nos pertence”, que está na orelha do seu terceiro livro, o Realidades Telúricas. Ao passo que lia, sorria como que dizendo: “Não é verdade? Concorda comigo, Germano?” Um belo exemplar das temáticas mais trabalhadas pela verve do poeta-escritor, poema mesclado em linguagem culta e coloquial, com forte presença metafísico-religiosa. Falou-me de como se deu o processo de feitura e escolha da capa, e do quanto gostou da que trazia a figura de um anjo negro sobre a Igreja de São Francisco, na capital soteropolitana. “Era a capa perfeita”, balbuciou, feliz.
Ao passo que a parola se desenrolava, Seu Ângelo, como é mais conhecido pelos iraquarenses, reforçava a idéia do interesse pela escrita nascido depois do recesso do trabalho no setor da Justiça. “A gente tem tudo na cabeça. A gente sabe disso. Você mesmo sabe do que estou falando. Mas é o que é melhor dentro de tudo que possuímos que a gente deve cultivar. Todo mundo carrega tudo dentro de si, até as doenças estão dentro da gente, mas devemos tentar desenvolver só aquilo que é bom. Foi assim com a minha escrita. Eu sabia que tinha isso dentro de mim. Um dia sentei e comecei, e estou até agora. Não tenho vontade de parar. Hoje escrever é uma das coisas que me dão mais prazer. Vou lendo, vou escrevendo, aplicando alguma coisa de minhas experiências, arrumando outras informações e os textos surgem naturalmente. Eu pensava muito em como eu iria começar a escrever, mas aí as ideias foram surgindo, fui fazendo pesquisas também, e pronto, decidi escrever. Nessa brincadeira, já vou em quase quatro livros, e o quinto já vem aí, que será sobre a genealogia da família Matos.” Sobre o quinto livro, o mestre deu uma palhinha: “O primeiro da família Matos foi José Pereira de Matos, que chegou de Portugal, era um alferes, mais ou menos o que representa um sargento hoje e viveu em Santo Inácio. Quando ele chegou em Santo Inácio, casou-se com uma tapuia…”
“A melhor escola da vida é o mundo, e a melhor escola do mundo é a vida”, soprou o mestre iraquarense, num movimento inesperado. Seu Ângelo geralmente escreve na parte da noite, após o jantar, indo até a meia-noite. Falou-me que gosta mais de escrever quando a cidade está bem parada, com pouco ou quase nenhum movimento, “quando até parece que Deus para para ver a gente lá de cima”, retrucou. É assim a sua tática de produtividade textual mais comum. “Eu adoro ser entrevistado, sabia?!”, exclamou perguntando, da mesma maneira inesperada. “Muita gente começou a me visitar depois que comecei a publicar meus livros, gente de faculdade, estudantes, etc. Eu gosto por demais disso”, revela.
Seu Ângelo chegou em Iraquara no ano de 1958, muito novo, ficou na casa de uma senhora, que servia de hotel, e acabou casando com a filha dela, Helenita Pereira Matos. Disse que veio para Iraquara porque ouviu dizer lá em Lençóis que havia uma vila, nem cidade era ainda, muito boa de morar, mais tranquila, de povo ordeiro e hospitaleiro. “Eu tava procurando um lugar para morar, aí vim para cá. Quando eu cheguei, a política me colocou logo para trabalhar no cartório, ganhando pelas custas, porque não era registrado naquele tempo… depois veio o concurso, e fiquei trabalhando até me aposentar. Naquele tempo só tinha buraco, terra, nada era calçado, quando chovia era um lamaçal, mas o povo era muito bom, aí fui ficando por aqui mesmo.
Teve ele outras oportunidades de morar em localidades várias, porém preferiu ficar em Iraquara. Com trinta e poucos anos foi que entrou para a faculdade de Letras, chegou a lecionar Língua Portuguesa e foi também vice-diretor do Centro Educacional Manoel Teixeira Leite, algo em torno de dois anos, porém depois ficou só no cartório. O escritor foi também quatro vezes vereador, em mandatos consecutivos, e candidato a prefeito, não conseguindo se eleger. “Não vou dizer que perdi, porque eu tiro esse fato como uma lição.” Sobre esta experiência, diz que se envolveu com a política porque a família era muito ligada nisso. “Quase todo mundo do meu sangue era da política. Tudo que fosse bom para as pessoas, eu buscava ajudar. Ajudei a fundar o segundo grau no C.E.M.T.L., eu registrei o segundo grau aqui na cidade.
Entrado em questionamentos mais metafísicos direcionados por minha curiosidade, começou: “Eu sou eu mesmo. Eu sou uma pessoa de família pobre, apesar de ter gente muito famosa dentro da família, a citar o coronel Horácio de Matos, que era primo carnal de minha mãe. Horácio de Matos tinha muito nome, era um cara quase analfabeto, foi Senador Estadual e muitas outras coisas, e continuou mandando na Chapada Diamantina todinha por muito tempo. Foi ele que fez a Chapada Diamantina, foi ele que escreveu a história da Chapada Diamantina. Certa feita eu ouvi um senhor dizer – ele era do começo do século passado -, que a história que se sabe do coronel Horácio não é nem metade da que ele realmente ajudou a fazer.”
Narrou um pouco sobre as antigas rixas entre famílias da região, inclusive com a sua, na localidade onde hoje é o Cochó do Malheiro, perseguições por causa de fazendas e terras, entre tantos outros motivos. “Perseguiram meu pai, perseguiram meu avó. Meu pai contava que um dia estava em sua casa, na fazenda, aí de repente chegava um caminhão cheio de soldados, e que eles corriam pelos fundos da casa, escondiam-se e lá ficavam horas e horas esperando eles irem embora. Um dia minha mãe me contou que todos da casa se esconderam perto dum riacho, e quando voltaram para casa os soldados, de prontidão, perguntaram por meu pai. Minha mãe disse que ele havia viajado, mentindo, como proteção. Um fuzil atrás da porta dava para ser visto. Eles iam para matar mesmo. Iam matar o meu pai. Sobre minha mãe, eles diziam: “Deixa, é mulher”. Se fosse meu pai tinha matado ali mesmo. Minha mãe era muito corajosa, morena, dos cabelos grandes, muito bonita, me lembro dela até hoje”, reitera.
As lembranças de uma Iraquara que não existe mais ainda continuam vivíssimas na mente do poeta, memórias vivas do período de emancipação da cidade de Iraquara, em 05 de julho de 1962. Era um homem muito novo, mas ajudou muito. “Aqui era muito atrasado, não tinha nada, todavia eu tenho saudade daquele tempo…” Foi me contando como tudo aconteceu, os primeiros mandatos, as primeiras confusões e embates, as disputas partidárias e as vaidades de alguns políticos. “Eu montava numa bicicleta e ia até a casa das pessoas tentar contribuir com alguma coisa em minha carreira política, fazer um favor, trazer um benefício, também ia no lombo de animal levar um remédio, um pouco de comida, tudo que eu pudesse fazer, eu fazia… naquele tempo quase que não se via automóvel por estas bandas”, balbuciou, com uma voz um pouco trôpega.
Sobre seus primeiros livros, a começar de Fragmentos de Saudade, diz ter escrito com o propósito de resgatar a cultura de nossa gente, que fez pesquisas sobre a Chapada Velha, sobre as formações rochosas… “Meu primeiro livro é muito apegado à minha mãe, saudade dela, daquele tempo, ela gostava mais de mim do que qualquer outro de seus filhos. A gente tinha tanto amor! Era uma pessoa muito prestativa, de coração enorme. Por exemplo, quando ela sabia que tinha uma pessoa com furúnculo, podia estar onde estivesse, ela preparava um espinho de mandacaru e ia lá furar ele, todo dia, até sarar o ferimento da pessoa.
E seguiu dizendo do seu papel de escritor: “O poeta não estuda, o poeta nasce. É o dom que deus dá.” Citou um pouco da história das polêmicas envolvendo Gregório de Matos e também do movimento Barroco e riu lembrando-se de várias passagens do poeta baiano. Falou da palmatória, instrumento de madeira com um furo no meio que sua mãe mantinha em casa. “Às vezes eu fazia alguma coisa errada, aí ela me batia com a palmatória. Quando doía muito, eu a abraçava chorando e ela chorava junto comigo.”
Ainda sobre a sua formação, recorda: “Se eu pegasse um pedaço de jornal no chão, eu lia todinho, um livro velho, qualquer coisa… Não havia tantos livros como hoje. Um dos autores que mais eu admirava era Erasmo de Carvalho Braga, educador e intelectual brasileiro. Ele escrevia contos, dissertações, ficções, os livros dele eram muito aplicados nas escolas. Naquele tempo a gente lia mesmo, tinha que decorar o significado das palavras do livro, porque a professora ia perguntar a gente no dia seguinte. Era só uma professora para toda a turma. Eram mais de 40 alunos. E eu sempre fui um dos mais adiantados. E quando era trabalho escrito, eu fazia tudo em verso. Eu amava minha professora. Quando ela me via, corria e vinha me abraçar”, lembra, emotivo. Sobre o livro Império das Serranias relata que ele nasceu depois de um convite de um amigo para conhecer a gruta da Torrinha, umas das mais completas em espeleotemas do mundo. Já o intitulado Realidades Telúricas diz ser um compêndio que reúne textos acerca de vários assuntos, do mais trivial ao mais filosófico.
E, como que de chofre, o tempo foi atravessado nas horas, certeza de amizade eterna travada. Era hora de deixar o poeta fazer sua refeição da tarde, porque poetas não são deuses, poetas são homens comuns – o que é muito mais difícil de ser. Fui me despedindo, depois de ser presenteado com dois exemplares autografados pelo autor. O Sr. Ângelo de Mattos Pereira relatando umas lembranças muito antigas, de crianças pobres que de perto via quando ainda era criança, no que destacando também seu lado humanitário aflorado nos dias de agora. Ao passo que ia colocando todos os materiais da entrevista dentro de minha mochila, reparei que atrás de onde eu permaneci por quase todos aqueles minutos estava um quadro com a imagem de Gandhi. “É preciso fazer o bem, meu filho, o bem. O bem em prol do Belo”, finalizou, num até breve sincero e amigo.
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