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O filho de um Deus apaixonado

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Prof. Dr. Claudefranklin Monteiro Santos (*)

 

Os textos desta semana e da próxima são resultado da leitura e da reflexão que fiz nas últimas semanas do livro “Transformando dor em amor”, do abade Desiré Pìnnard (1806-1854), traduzido para o português pelo padre Silva e organizado e publicado pelo Instituto Hesed, como guia para um retiro quaresmal em 2024. A obra foi um presente do meu amigo, o artista floral Aristides Libório, de Lagarto, proprietário da Floricultura Flores e Festas, no dia 23 de janeiro do corrente ano.

A primeira edição, em francês, foi publicada em 1842, em Tournay, inspirada no pensamento de Santo Afonso de Ligório (1696-1787). Afora, também, o fato de estar fundamenta nas Sagradas Escrituras do Cristianismo e também nas vidas e testemunhos de diversos santos, a exemplo de Agostinho e Bernardo, sem deixar de falar em Santa Maria Madalena.

Trata-se, pois, de um convite a pensar as chagas e de Jesus Cristo em seu martírio voluntário como um lugar onde se encerra uma grande virtude, capaz de operar milagres até mesmo nos corações e mentes mais céticas, duras e de “espíritos frios” (p. 17). Na perspectiva daqueles que querem “morrer santamente”, um chamado a serem melhores, progredindo no amor a Cristo, tendo a dor e o trato com ela como a determinação para amar plenamente.

Vencer a si mesmo, buscar a santidade, redimir-se da desgraça do pecado original e abrir-se às portas do Céu. E, nesse sentido, Deus se revela apaixonado por sua criatura, a mais ingrata e vil de todas, tendo seu próprio filho como um cordeiro expiador, que purga nossas ignomínias. É um amor sem limites, “um presente precioso” (p. 31), um “amor excessivo” (p. 39), um amor pago com amor, sem reservas, que se entrega por inteiro, verdadeiramente humilde, e até mesmo louco.

Ora, o que é homem para Deus vir a morrer por ele? Eis aí a pergunta central do livro que nos provocar a entender esta PAIXÃO. Uma morte que, paradoxalmente, “restitui a vida” (p. 50), uma morte que nos resgata, “uma morte santa e abençoada” (p. 53).

O livro, a cada capítulo (44, divididos em sete partes – sete foram as grandes chagas de Cristo), sugere inspiradas “resoluções práticas”, acompanhadas de fervorosas orações. São ensinamentos não somente para os consagrados ou engajados na vida da Igreja, mas para todos sem exceção. Se aqui ou ali repousa uma certa radicalidade, posto que o amor verdadeiro é em si radical, também reside a liberdade de amar e de ser amado pelo AMADO.

Em síntese, são ensinamentos e orientações que se seguidas ao menos em parte, por si só já garantem uma paz de espírito e apontam caminhos para a SANTIDADE. Mas, porque sermos santos, mesmo?

Via de regra, ser santo é corresponder a um amor que se revelou numa sentença de morte: A CRUZ. Uma das mais humilhantes ao longo de toda a história da humanidade. Ser um santo é a nossa essência, perdida lá atrás, há muitos anos, quando a raça humana abriu mão, por livre e espontânea vontade, da graça da Criação. Entretanto, quem disse que o que é criado se basta? Tanto é fato que morremos, às vezes das formas mais cruéis ou irônicas, ricos e submersos em feridas de todo tipo, externas (purulentas) e internas (“sepulcro caiados”).

Ser do mundo sem a ele pertencer. Estar no mundo sem por ele ser dominado. Nada trazemos quando nascemos, nada levamos quando morremos, nos lembra a sabedoria popular. Se caixão não tem gavetas e túmulos, cofres, por que nos apegarmos ao material? Aprender a fazer uso das coisas sem ser delas, escravos e adoradores, dominados. Isto posto, agrada mais a Deus “os sinceros desejos” (p. 65), termos “sede de perfeição” (p. 68) e “amar uma vida discreta” (p. 99).

Para além de um grande orador e Mestre e até mesmo um exímio pedagogo e educador, Jesus no presente livro é nos apresentado um sujeito apaixonado, que ama e nos deixa “lições admiráveis” (p. 104), de simplicidade e inocência e também de obediência, não necessariamente de subserviência (p. 113). Caminhos que são estranhos e até mesmo impossíveis para o nosso tempo, dilacerado e contaminado, para não dizer podre, pela ganância, soberba, egoísmo, ódio, relativismo e cristianismo oportunista, devassidão, injustiças sociais, misoginia, orgulho, vaidade: “as paixões lhe cegam” (p. 117), lembra-nos o autor.

São inúmeras as doenças da alma sobre as quais Deus, por meio de Jesus Cristo, anseia o nosso aceite: “sempre pronto a curar nossos males” (p. 123). Por amor a nós, Ele se permitiu ser humilhado (p. 139). Eis a razão que nos ajuda a entender o que os cristãos chamam de “Semana Santa”.  Não se trata, portanto, de uma celebração macabra de um “Deus morto” das formas mais vis, mais uma história de amor e de salvação que tem como gran finale o termo que separa a entrada triunfal em Jerusalém no Domingo de Ramos aos primeiros raios de sol do Domingo da Ressurreição.

Fazendo-se um “Mestre bondoso” (p. 142), Ele nos aponta o caminho da mortificação; seu ardente desejo de sofrer por nós (p. 149), sua “resignação à vontade de Deus” (p. 162), sua doçura, sua humildade singular e exemplar, sua paz em seu coração, sua confiança em Deus, seu silêncio inquietante, desconcertante e ensurdecedor, sobretudo diante daqueles que o blasfemaram, maltrataram, acusaram, torturaram, condenaram e mataram. Que Deus é esse, afinal?! Que filho é este?! Se não a mais sublimes manifestação de AMOR? O amor propriamente dito e concebido, sem o qual não a conceituação que possa dar conta de explicar.

Sem sombras de dúvidas, um amor louco, se visto a partir da lógica humana, a tal ponto de Jesus Cristo permitir e, por tabela, o PAI, “que suas carnes fossem dilaceradas por causa de nossos pecados” (p. 188). Ora, pois, adverte-nos o abade Pinnard: “Se assim tratam o Cordeiro Inocente, o que será do culpado?” (p. 201).

Ao nível das considerações finais, vale destacar que o autor da presente obra se dirige a Teótimo, certamente um aprendiz, um noviço ou candidato à vida religiosa e recluso em muros, trabalho e orações. Alguém que, como nós, tem sede de conhecer a Deus e ao seu amor. Nesse sentido, pode-se dizer, que Teótimo somos nós.

Por fim, no abandono ou sensação de abandono na Cruz, Cristo experimentou o limite da nossa humanidade, teve sede e consumou o amor de Deus no lenho da cruz, vertendo seu próprio e precioso sangue, sob as hostes do Império Romano e as vaidades dos religiosos de sua época. Amando-nos até o fim, venceu a morte da forma mais improvável, realizado a plena vontade do Pai, que é a de amor por suas criaturas, além de todos os limites possíveis: “uma morte por amor a nós” (p. 294).

A obra por si só é importante porque nos aponta caminhos, roteiros e planos que tornam a vida uma dádiva que não se basta. Que colabora, sobremaneira, para compreendermos alguns mistérios, dilemas e males de nosso tempo, como a depressão e ansiedade. É um tratado de amor de um Deus que para além de querer ser adorado, quer ser amado, recorda São Francisco.

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Claudefranklin Monteiro

Professor doutor do Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe.

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