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Por Marcus Éverson Santos (*)

 

No academiquês do sociólogo Zygmunt Bauman, tudo se liquefaz: o amor, a vida, a modernidade, exceto seu sucesso e carisma no mercado editorial, que, nas últimas décadas, tem gozado de enorme popularidade no ecossistema acadêmico. Associamos quase automaticamente tudo que é líquido a Bauman. Somente no Brasil, foram publicadas pelo menos dezesseis dessas obras pela editora Jorge Zahar, entre as quais as principais são: Amor Líquido, Globalização: as Consequências Humanas, Vidas Desperdiçadas, Modernidade Líquida, Educação e Juventude, dentre outros. Seus livros vendem como água no deserto da vida intelectual brasileira.

O sociólogo polonês iniciou sua carreira na Universidade de Varsóvia, onde teve artigos e livros censurados. Em 1968, foi afastado da universidade e, logo em seguida, emigrou da Polônia, buscando construir sua carreira no Canadá, nos Estados Unidos e na Austrália. Chegou à Grã-Bretanha em 1971, onde se tornou professor da Universidade de Leeds, cargo que ocupou por vinte anos. Bauman recebeu vários prêmios por sua produção intelectual e permaneceu como professor emérito de sociologia nas universidades de Leeds e Varsóvia até seu falecimento em 2017.

Bauman tornou-se conhecido por suas análises das ligações entre a modernidade, o Holocausto e o consumismo pós-moderno. Segundo ele, nada pode fugir deste complexo panorama do fenômeno moderno conhecido como globalização. Aliás, esse autor também é famoso por suas agudas críticas à sociedade de consumo e às relações fluídicas.

A liquidez das reflexões do sociólogo não apresenta nenhuma novidade que filósofos como Heráclito já não soubessem. O filósofo da constante impermanência da realidade teria afirmado que:

“Nunca entramos duas vezes no mesmo rio”;

“Tudo flui”; “Nada permanece”.

Há um logos, heraclítico, afirmando que, embora todas as coisas estejam em constante mudança, paradoxalmente, há algo que sempre permanece e jamais abre mão de mudar: a própria natureza da realidade. O que assusta não é a obviedade das conclusões às quais Bauman chega com seu academiquês, mas sim a maneira como a intelectualidade recebe suas reflexões como grande novidade. Seu estrondoso sucesso talvez se justifique pela facilidade com que Bauman transmuta conceitos e temas muito caros à filosofia, que, uma vez transladados para o âmbito da discussão sociológica, passaram a ganhar ares de novidade. Quanto mais líquida a linguagem, isto é, quanto mais adaptável e flexível, maiores as chances de empregarmos em situações descontextualizadas.

Na linguagem líquida de Bauman, com a licença do trocadilho, tudo se liquefaz; mas, se do ponto de vista lógico tudo se liquefaz, nada se liquefaz, principalmente no que parece ser o desejo candente de Bauman por enquadrar o movimento permanente da realidade como líquida.

Resta saber se o sociólogo estaria disposto a encarar a argumentação de que suas próprias ideias estão expostas à mesma liquidez e imprecisão. Esse mesmo tipo de fluidez, liquidez e relativismo também expõe figuras como o filósofo Jacques Derrida, que argumenta que a verdade não pode ser vista como uma coisa fixa, mas sim como algo construído através da linguagem e do contexto, sugerindo que uma verdade absoluta é ilusória.

Notem que, se a liquidez de Bauman e a desconstrução de Derrida estiverem certas, já teríamos algo para chamar de verdade muito antes de partirmos em direção à crítica da verdade. A impossibilidade lógica de não ter como julgar algo como verdadeiro sem ter critérios mínimos sobre os quais possamos acentuar um ponto de partida rumo à verdade é esquizofrênica. A crítica à cultura centrada na razão (logocentrismo) terá que fazer uso de outro expediente caso deseje encontrar alguma consistência em seus discursos. O permanente desejo de apreender (provar) o impermanente coloca Bauman e Derrida em uma situação vexatória típica do academiquês.

Voltando a concentrar nossa atenção na liquefação moderna, a qual Bauman se tornou o principal arauto, a chamada crise dos valores e a perda de identidades em um mundo globalizado são despojos filosóficos de autores como Nietzsche, Schopenhauer e Freud, fontes das quais Bauman não se dá ao trabalho de comentar em algumas de suas obras, mas que, sem cerimônias, ele soube usar muito bem no processo de construção de suas argumentações líquidas.

Diante do academiquês e sua fluidez, afirmar que estamos em um mundo globalizado ficou fora de moda. Melhor seria atualizar o conceito de globalização pelo de “bobalização”; a bobalização é um processo contínuo e global, onde alguns espertalhões, como Bauman, Derrida e tantos outros, aproveitam-se da estupidez do ecossistema acadêmico para se distanciar cada vez mais do público iletrado e travestir-se de conhecedores da realidade. O processo de bobalização tem avançado em várias frentes, e o mercado editorial, ávido por atender um público cada vez mais bobalizado, não perde tempo em aproveitar-se dessa situação para aumentar seu faturamento líquido.

Conceitos como os de liquidez encontram-se em “liquidação” no ecossistema universitário, ou seja, são replicados a baixo custo pelo academiquês, sem qualquer conexão com a realidade. O academiquês de Bauman esforça-se em tratar do óbvio: as relações humanas, identidades e valores são instáveis e efêmeros, posto que o mundo encontra-se em constante mudança. Mas, como bem defendia Boghossian, o conhecimento não pode ser tratado completamente de forma líquida, de forma completamente relativa, posto que as consequências disso é cairmos em autocontradições. Existem verdades objetivas independentemente de crenças, visões de mundo ou ideologias.

Na visão baumaniana, a efemeridade de todas as coisas replica o que ocorre com a indústria em uma sociedade capitalista. Crítico desse sistema, Bauman observava que, tal como a indústria cria desejos efêmeros e temporários, levando os consumidores a comprar produtos que surgem travestidos de novos, sem que de fato haja qualquer novidade, isso constrói uma sociedade de relações superficiais. Não se nega parte dessas conclusões, mas, fora isso, não há nada que se possa considerar novidade.

Para Bauman, tal como os produtos fabricados em série, as relações humanas tornaram-se também fluidas e descartáveis. Há, na concepção do sociólogo, uma tendência a se tratar os relacionamentos como mercadorias, de modo que as pessoas possam estabelecer conexões líquidas e superficiais. Não demora muito até percebermos o quão hipócritas são as ideias de Bauman, sobretudo quando transplantadas para um ambiente acadêmico hostil à verdade, como no Brasil. Ele incorre no mesmo problema que demonstrei em meu ensaio Sociedade do Descanso, posto que, segundo o sociólogo, apesar da superabundância de produtos e serviços, o consumismo pode levar à solidão e à alienação, na medida em que os indivíduos buscam satisfação no consumo em vez de cultivar relacionamentos significativos.

Vamos liquefazer essa balofestia hipócrita pensando assim: no país em que Bauman teve a oportunidade de crescer e desenvolver sua obra, a situação civilizacional é outra. Nós, aqui no Brasil, estamos brigando para tentar chegar à modernidade. A modernidade, que, segundo Bauman, é líquida, em nossas terras sequer se condensou. Nós sequer conseguimos concretizar um projeto de instrução pública moderna. O Brasil é um país atrasado. Nossa indústria, nosso desenvolvimento tecnológico, tudo isso ainda não conquistou os parâmetros mínimos da modernidade a que Bauman se refere. Ainda estamos por inventar um pais.

Generalizar argumentações usando “conceitos” como “modernidade líquida”, sem levar em conta as particularidades objetivas de cada sociedade, é uma limitação típica do academiquês. Como vimos, tais conceitos não podem se apresentar como verdadeiros, posto que, se para Bauman tudo é líquido, a afirmação de que tudo é líquido é líquida também, encontrando-se exposta a ter que enfrentar a dose do próprio veneno do relativismo.

Que conclusões e soluções práticas podemos extrair da obra de Bauman para pensarmos o Brasil? Não concluímos sequer um projeto moderno para ensinar e educar a todos. Não atingimos a modernidade em muitos aspectos e, sendo assim, por que devemos dar atenção à “liquidez baumaniana” antes de termos atingido o mínimo esperado para um país ser considerado moderno? Para rejeitarmos a liquidez baumaniana e sua crítica à modernidade, precisamos primeiro entender que, no Brasil, tudo está por se fazer e, pior que isso, pouco há o que se fazer para construirmos uma sociedade. Aqui estamos no salve-se quem puder e como puder.

A crítica baumaniana à sociedade de consumo moderna e capitalista, onde tudo se liquefaz, tem método: a Teoria Crítica. Como é sabido, o sociólogo foi influenciado pelo marxismo, especialmente nas discussões sobre análise das relações de classe e desigualdade social; também se inspirou no existencialismo de Jean-Paul Sartre e em suas reflexões sobre liberdade e responsabilidade. No entanto, foi na Teoria Crítica que Bauman bebeu doses cavalares dos pressupostos teóricos e metodológicos da famosa Escola de Frankfurt, especialmente de figuras como Theodor Adorno e Max Horkheimer.

Se se confirmar, tal como defendia Bauman, que a sociedade moderna se liquefez, sem se pontuar que tipo de sociedade estamos tratando, sem especificar aqueles lugares onde sequer se construiu uma sociedade, generalizando os termos do academiquês barato, distante da realidade, estaremos assinando sem reservas nosso atestado de “bobalização” intelectual frente às conclusões que insistimos em importar da intelectualidade europeia.

Ainda não sabemos até quando o malfadado ecossistema do nosso sistema acadêmico e intelectual pode suportar para que finalmente desmorone, mas suas rachaduras são visíveis e o processo de bobalização continua avançando  dramaticamante.

 

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Marcus Everson Santos

Professor e Ensaísta Licenciado em Filosofia, Mestre e Doutor em Educação, Colunista do Portal Só Sergipe.

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