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O Textamento de um livre-pensador – breves considerações sobre perfil e obra de Alberto Carvalho

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Por Léo Mittaraquis (*)

 

Ouso tecer breve comentário sobre o espírito e a obra do grande mestre Alberto Carvalho, com quem tive o imenso privilégio de compartilhar algumas anônimas e discretas ocasiões em que conversamos sobre Belas-Artes e Literatura. Tão somente estes dois temas, estes dois campos. Mas, oh, o quão vastos se revelaram a partir da percepção acurada, do denso lastro de conhecimento daquele adorável, amável, sedutoramente sarcástico bebedor de cerveja.

Alberto Carvalho foi uma figura intelectualmente notável. Impressionava-me testemunhar sua capacidade de transitar com elegância e maestria pelos mais diversos campos do conhecimento, pelo menos nos quais é possível deitar a cristalina lente estética.

Alberto Carvalho na antiga Livraria Regina, em setembro de 1960

Alberto Carvalho foi contista, poeta, crítico literário, crítico de cinema, crítico de belas-artes. E ainda um hábil elaborador de reflexões satíricas, buscando deixar claro que era, também, um crítico si mesmo.

Muito bom que o fosse, pois, entre poemas muito bem elaborados, o Grande Mestre compunha alguns bem chinfrins. Reconhecia-o ele mesmo.

Em tempo: as fotos incluídas no corpo deste artiguete foram generosamente emprestadas pelo sobrinho de Alberto, Ivo Carvalho, meu querido amigo, também um leitor atento, a quem devoto alta estima.

Alberto Carvalho nasceu a 3 de novembro de 1932, em Itabaiana e nos lançou à orfandade intelectual em 2002.

Vou abordar, aqui, três produções literárias do Grande Mestre: “Textamento”,” Vão Livro” e “Dispersa Memória”.

É suficiente? Não, não é. Mas, penso, talvez proporcione alguma ideia quanto ao espírito das letras e demais artes nele encarnado.

 

TEXTAMENTO

Publicado em 1981

Folha de rosto traz a seguinte citação:

“Em lugar de se extasiar, o pensamento objetivo deve ironizar. Sem esta vigilância hostil, nunca atingiremos uma atitude verdadeiramente objetiva”

 

É um trecho de “A Psicanálise do Fogo”, de Gaston Bachelard

Longe de ser inserção gratuita de uma frase de efeito, a abertura do livro com esta citação previne, pelo menos aos leitores que detém algum conhecimento sobre o pensamento de Bachelard, o há por vir ao longo das páginas seguintes. Em tempo: Alberto inicia e finaliza este livro, Textamento, com Bachelard. E em Vão Livro [veremos mais adiante] o filósofo francês também encontra lugar num poema.

Em “Textamento”, esta quase “involuntária” produção poética, contistica, estética e filosófica, Alberto compõe algo, na minha percepção, como que uma hexologia, ou seja, dividida em seis seções, se ignorarmos o curto, mas densamente reflexivo prefácio. São elas:

Poemas

Contos e sinopses cinematográficas

Apresentações

Pequena Crítica

Varia

Anotações Patafísicas

 

Seção dedicada aos poemas

Algo como trinta e sete poemas. Destes, sob o critério mais que arbitrário da preferência, destacarei três:

Mulher e Ilha (p. 13)

Um poema com três eixos: biológico, cinético e ontológico. Sobre estas referências, qual um amálgama, elaborado por segura e experiente pena alquímica, o colágeno filosófico existencial – este constituído da consciência do vir a ser. A reaparição de caracteres de um ascendente remoto e que permaneceram latentes por várias gerações. A (hereditariedade) biológica de características psicológicas, intelectuais, comportamentais. O exercício de um estilo que traz como ponto de vista, o cíclico, ainda que não eterno. A questão tripla “de onde viemos, o que somos, para onde vamos”, é, para Alberto Carvalho, um objeto de debate, reflexão, discussão, análise, circunscrito ao tangível, ao material, ao dialético – não é necessariamente a minha percepção, porém, isto pouco ou nada importa no contexto presente. É sobre a visão de mundo de Alberto Carvalho, mediante a sua produção poética, contística, ensaística, crítica que estamos a tratar aqui. Neste sentido, observemos os dois últimos versos da segunda estrofe de Mulher e Ilha:

 

“Cheirava a molusco

Ou alga do mais antigo dos tempos”.

 

Observemos, então, os últimos três versos do mesmo poema:

 

Como o mar

De onde somos

O sumo e a soma.

 

Físico-Química (p.39)

Outro poema que, pelo menos a mim, forçou à reflexão. Numa primeira leitura, a bem da verdade, considerei o texto coisa de somenos. Porém, o que é curioso, e ignoro se tal fenômeno é comum no campo da percepção, volta e meia, volta-me ao poema. Lia e pensava, como diz Gogol, em Almas Mortas, obra inacabada, “mas que diacho de coisa!”. E, também a seguir o mestre russo, afastava-me destes versos para não ser acometido de tédio mortal.

Alberto Carvalho, Newman Sucupira (fotógrafo, grande conhecedor de música erudita e escritor, e Paulo Fernando.

Debalde: volta e meia flagrava-me diante do Físico-Química. Vencido, decidi a deitar sobre o mesmo a minha rachada e puntiforme lente do espírito, mesmo correndo o risco de pecar, mais uma vez, pela ausência de nitidez na perspectiva, produzindo na cachola apenas uma aberração analítica ou uma aberrante análise.

Ora, temos o termo vibração como a definição do movimento alternado de um corpo sólido em relação ao seu centro de equilíbrio. Vale dizer: o primeiro verso traz a oscilação, o balanço. Previne que o poema prosseguirá em estado vibratório.  O poema leva em conta o sermos a nós em meio às agitações frementes e rápidas; às palpitações; aos batimentos, às pulsações, às trepidações.

São condições cinéticas exteriores a nós, porém, estamos a comentar um poema, também são internas. Em ambas as premissas, toma-nos os movimentos físicos, induzidos por estimulações psíquicas, óticas, sonoras e outras…

Alberto Carvalho não propõe tal discurso de forma gratuita, não é um tolo, não busca efeito pelo efeito, não comete o desatino de apenas amontoar metáforas. É um homem do seu tempo, aquele tempo em que sustentar uma cultura geral era poder dialogar com campos distintos com a perspicácia de entender que, em algum nível, estão interrelacionados. Mais não seja porque estão neste mundo, o mesmo mundo.

Prossegue Alberto, em Físico-Química, a tomar como base da sua composição lírica, o fenômeno da irradiação:

 

Comprimentos de onda

(Curtas, médias, X, Gama)

Radiações

Alberto prossegue a dizer nosso mundo, a nós, mas numa baliza científica (o que, em mim, pelo menos, provocou certa remissão à Augusto dos Anjos), do qual Alberto era atento leitor: “Na ogiva fulgida e nas columnatas/Vertem lustraes irradiações intensas/ Scintillações de lampadas suspensas/E as amethystas e os florões e as pratas”. (Poema Vandalismo, p. 164, livro Eu).

Um interlocutor, de nome Antonio, quisera fosse eu, diz na segunda estrofe de Físico-química:

“Entre você e um gravador Akai,

Só a diferença de ondulações”.

O poema traz e, mais uma vez, afirmo que não de forma solta, gratuita, o ramo da física denominado Ondulatória. Os objetos de estudo deste ramo, deste campo, são as ondas e oscilações. A ondulatória classifica as ondas segundo a natureza, direção e dimensão de propagação.

Faço questão de enfatizar estes pontos para que nós tenhamos ciência [trocadilho medonho, reconheço], entendimento, sobre quem era, e ainda o é, Alberto Carvalho. Para que saibamos com quem estamos lidando.

A auto-redução intelectual, a qual imponho a mim, é proporcional à monumentalidade da produção estético-filosófica de Alberto Carvalho, da sua capacidade enciclopédica.

O poema segue a ressaltar os atos oriundos da pura vontade, esta não totalmente dirigida sob rédeas. Vale dizer: levando-se em consideração tanto as pulsões, quanto à consciência de que o conjunto de estruturas com funções semelhantes ou complementares, inerentes às relações anatômicas que operam em uníssono como as propriedades mentais.

Diria eu, nas minhas limitações: sou corpo e mente. Afirmação sem sal. Nada com coisa alguma.

Porém, pela pena do poeta e pensador Alberto Carvalho, o dito ganha vida, tempero, potência:

 

Fazer o que faço

Na lucidez como acidez:

Uma secreção de glândulas

Controlada por bases.

Na química a verdade

Para os sais de vida.

 

O poema Físico-Química vale-se dos princípios físicos, químicos e biológicos relacionados às transformações que ocorrem nas substâncias e moléculas dos organismos e de seus processos metabólicos.

Eis o que somos, para o poeta. E algo disso pode ser lido quase ao final deste livro, Textamento em Anotações Patafísicas: “O viver é uma multiplicidade dos modos de ser. E somos parte do mundo. Como conhecê-lo, se somos feitos do mesmo ‘material’ que ele? (p. 162).

No modo como entendo a produção poética de Alberto Carvalho, percebo, caso não me equivoque em demasiado, um talento admirável no valer-se de estilos que me levam a especular que poeta bebe bem das águas simbolistas, pré-modernistas e modernistas. Ainda que seja, segundo penso, extremo cuidado com a abordagem estanque dos períodos (seja na Literatura ou nas Belas Artes).

Quanto ao diálogo, não necessariamente pacífico, convergente, com as escolas, proponho a comparação entre os versos citados de Físico-Química e os seguintes versos pertencentes ao poema Cismas de um destino, de Augusto dos Anjos:

 

Cuspo, cujas caudais meus beiços regam,

Sob a forma de mínimas camândulas (contas de rosário, objeto de reza)

Benditas sejam todas essas glândulas,

Que, quotidianamente, te segregam!

 

Jocoso como era, ácido consigo mesmo, pode até ser que Alberto se risse desta minha abordagem, desta minha conclusão. Mas, como já disse um poeta unânime, “não são as minhas verdades, mas são as suas verdades”.

Outros poderiam ser incluídos aqui, mas, para o que nos propomos, creio que baste.

O terceiro poema, intitulado Morrerei (p. 45). Reparem a partir do quarto verso até a conclusão:

 

“Um dia desacordarei e dormindo…”

 

“Sursum Corda” – Como sabemos, traduz-se como “Erguei os corações” (Exortação do padre oficiante à congregação de fiéis ao iniciar a missa). Ironia ao extremo: frase mais besta na besta vida.

Contos

 Para quem já leu os contos de Murilo Rubião, de Paulo Teles Morais, Célio Nunes, J. J. Veiga, Jorge Luís Borges, Cortázar, Calvino, com respectivas nuances mais ou menos aproximadas (ou em nada aproximadas), sentir-se-á bem à vontade com os contos escritos por Alberto Carvalho. Uma das chaves para compreensão ante o discurso satírico-melancólico destes contos, é uma apresentação que Alberto escreveu sobre o livro de Paulo Fernando Teles Morais, Emparedados. O título é emblemático: Os Densos Contos de Paulo. Alberto apresenta o livro do escritor e amigo apresentando, também, a si mesmo, pois, seus contos não buscam densidade, senão um hábil gracejo diante, e aqui eu me valho de frase de Borges, “desta confusão que é a vida”.

Como os autores outros acima citados, Alberto Carvalho sabe bem aplicar o verniz que simula a oposição ao racionalismo. Pode até o ser, porém, a bolha racional não permite que seja, salvo em estado de loucura, realmente furada. Narrativas exigem lógica.

Apresentações

Seção extremamente rica. Textos sobre exposições de pinturas, livros (como o de Paulo), já comentado há poucos instantes. Alberto busca o argumento de autoridade em Guy de Maupassant sobre o que definiria a natureza do gênero conto. E por que Maupassant antes de chegar a Paulo, o autor que é apresentado/comentado neste texto?

Ora, Alberto tem ciência do universal, mesmo estando na aldeia. É como ele nos alertasse que o objeto literário é aquele que criamos, aquele que lemos e muito mais. Parece nos dizer. Leia este livro, mas, não esqueça de que o campo é imenso.

Mais adiante, Justino e Djaldino, nomes que eu respeito e amizades as quais eu gostaria de recuperar, são citados, como importantes estudiosos do cinema que são.

Pequena Crítica (p. 97)

E é, nesta seção, esta quarta seção, que o grande mestre Alberto Carvalho é mais Alberto Carvalho do que nunca: a seção é aberta com um texto primoroso sobre o fenômeno estético denominado Maneirismo.

Para fins de uma referência mínima, creio que posso pontuar que o Maneirismo é uma manifestação estética complexa que se situa, na linha do tempo e, penso, no espaço, na Renascença Tardia. Perpassará o Barroco e, não raro, confundir-se-á com ele.

Quanto a Alberto Carvalho, este aplica uma didática clara, objetiva, ainda que esteja a abordar algo muito pouco claro e muito pouco objetivo como o Maneirismo.

Mais adiante, ao tratar de Aspectos da Crítica Literária (p. 103), será um crítico metacrítico. Tal como Kant ao aplica razão sobre a Razão, levando-a a julgamento, Alberto aplicará uma ótica crítica sobre o fenômeno, ou o segmento, se assim quisermos, denominado Crítica Literária.

Daí por diante virá Lolita, Lampião (sequência das mais atípicas, para dizer o mínimo) e, mais uma vez, o poeta órfico Santo Souza. Desta vez, Alberto comenta sobre Pentáculo do Medo. O artigo crítico é intitulado, de forma muito feliz: Uma Viagem Cheia de Medos. E virão outros textos críticos, sinopses, reflexões sobre cinema…

 

Varia

Alberto propõe um brinde com o leitor, bem à moda bárbara, chocando canecas de cerveja. É o artigo A Arte de Beber Cerveja.

Mais adiante, reflexões sérias, muito sérias, sobre o compromisso daqueles que aspiram os mais elevados patamares da intelectualidade, da cultura, para com o exercício de ler. Uma ode à leitura.

 

Anotações Patafísicas

Antes, é de bom tom que meio que definamos o que vem a ser Patafísica: ‘Patafísica (francês: ‘pataphysique) é uma “filosofia” da ciência inventada pelo escritor francês Alfred Jarry (1873–1907) com a intenção de ser uma paródia da ciência. Difícil de ser simplesmente definido, tem sido descrito como a “ciência das soluções imaginárias”.

Sim, é com esse caráter jocoso, satírico, paródico, que Alberto Carvalho exercitará seus múltiplos talentos e comprovará, mais uma vez, sua imensa erudição,

Mas algo, pelo menos a mim, manifestou-se de maneira tocante: o respeito, a larga admiração, que Alberto Carvalho, grande mestre, nutria por outro igual, a saber: Gaston Bachelard.

Alberto inicia o livro Textamento com uma citação de Bachelard. E concluirá o livro com outra citação do filosofo francês no último aforisma, na última página.

Vão Livro

Publicado em 1986, Vão Livro traz uma marca indelével do Grande Mestre Alberto Carvalho: uma nota preliminar, com toques de ironia e fina perspicácia. Neste livro, a nota é intitulada Esclarecimentos.

A obra traz poemas, contos, ensaios e palestras. E estes indicativos são os títulos mesmos das seções, total de três, e mais um apêndice em forma de entrevista [pode ser o contrário, também].

Quanto a seção Poemas, vejamos o primeiro poema, Cacos Metrológicos.

 

Imponderável como o amor dos elefantes

Apesar dos quilos dos amantes

E a terribilidade dos anjos

(Rilke sabia das coisas)

Sem peso como o cavalo na reta

Da chegada,

O carro sob a bandeirada

Da vitória

Ou o goleiro, pluma no ar,

Segurando/não segurando a bola.

Imponderáveis, sim:

Nossa vida sem destino

Mas com o sabido fim

E o mundo sem sentido nem saída.

Pesada como a bota do soldado

O soco no estômago

O peso do carrasco

Sobre o corpo do enforcado.

A pedra de Sísifo era mais leve

Que a fome dos miseráveis

E a pobreza dos espíritos.

Serão os astronautas imponderáveis?

Da Terra saíram grávidos.

O peso é nosso

O resto é imaginação

(Que é leve)

Nosso peso a balança mostra.

A medida do homem é seu caixão.

O poema é (des) estruturado num eixo de complexidade fractal. Ao mesmo tempo, as fibras da ambiguidade e da dialética definem a trama lírica. O título, Cacos Metrológicos, segue, em paralelo, à expressão que denota um fenômeno: Caos Meteorológico.

A composição vibra a corda da incerteza, o que redunda nos questionamentos entrelinhas: como há de definir-se os melhores parâmetros? A não ser possível prever, de fato, como ensaiamos a melhor previsão para cada minuto da prática diária? Alberto, a exceção das medidas matemáticas mortuárias, parece insistir que não há nenhuma razão para acreditar que exista um modelo perfeito de organização e controle. Os termos são determinados pela vida.

Percebe-se que o poema é (des) ordenado: a lembrar os cacos usados para revestimento ou técnica de revestimento ou pavimentação em que se utilizam fragmentos desse tipo dispostos sobre uma camada de argamassa semelhante a um mosaico, enquanto o poeta elenca o que não pode ser exatamente calculado, nem previsto, mas cujo efeito pode ser determinante.

Algo de essencial, em relação à cultura francesa, mesclada às suas raízes itabaianenses, portanto, do Nordeste, está sempre presente nos escritos de Alberto Carvalho. O digo a partir, dentre outras criações do livre-pensador, do poema Passeio no Tempo, em que diz:

 

Jovem sem juventude

Fui “flaneur” rústico

Numa cidade nordestina,

 

E em Poema com Invocações, se cita Drummond, também inclui Malraux, Sartre, Camus. E raspa em Kafka, um pouco mais ao leste.

Em El Amor/L’Amore/L’Amour, eia Bachelard, quase onipresente na obra albertocarvalheana:

 

O amor é uma fricção

Disse Bachelard.

Como atrito sai fogo,

O chamado fogo da paixão.

 

Alberto dialoga, ao nível íntimo, com Bachelard. O sistema filosófico bachelardiano é a referência basilar da produção poética, contista, ensaística do escritor sergipano. O poema acima nos remete à seguinte reflexão de Gaston Bachelard, em A Psicanálise do Fogo: “O fogo e o calor fornecem meios de explicação nos domínios mais variados porque são, para nós, a ocasião de lembranças imperecíveis, de experiências pessoais simples e decisivas”.

Precisa dizer mais?

 

Contos

O primeiro conto, de uma sequência de onze, intitulado Anotações de um suicida, é o exercício estético albertocarvalhiano par excellence: já ao primeiro parágrafo, o escritor aplica a mais ácida e, ao mesmo tempo, mais melancólica das ironias. Alberto opera na linha que percebe o ato do suicídio como algo racional e planejado, distante do que costumeiramente se pensa, julga e opina meio ao senso comum. O personagem afirma que sua decisão não tem fundo de insanidade algum. “Nada de fases freudianas, complexos ou fixações”, esclarece.

Alberto põe, no discurso do personagem suicida, referências interessantes, truque honesto do autor, para lembrar, do seu lastro constituído pela mais alta cultura geral, ao leitor do conto.

Alberto busca a perspectiva kantiana de coexistência pacífica e do entendimento comum a partir da boa vontade.

O terceiro parágrafo é uma deliciosa e erudita confissão de inépcia. O termo ‘ersatz’, que descreve qualquer substituto ou imitação, especialmente quando é inferior ao original, é habilmente inserido, avalizado pela presença de Walter Benjamin [um dos pensadores preferidos de Alberto Carvalho]. O personagem está a pagar pesado tributo por ter levado uma “vida de correção neurótica”.

Contudo Alberto, pela boca do personagem, não aceita que neurose seja sinônimo de desvario e de estupidez.

O suicida anota seus argumentos com acuidade filosófica: “Antes que algum psicólogo improvisado, desses de canto de rua ou estabelecido em clínica especializada, fale em loucura, gostaria de lembrar que insanidade é confusão, desequilíbrio, nunca lucidez”.

Alberto cuida para que seu ‘herói’ não seja tomado, de maneira injusta, por louco. Afasta qualquer possibilidade de levar em consideração a compreensão clássica entre os gregos, de que a causa das doenças era a culpa por um crime não expiado.

Se há, no personagem, algo de assustador, disforme, não se dá tal coisa pelo exterior: “Fui um avantesma de mim mesmo”.

Comentarei este conto, os demais estão à espera de você, leitor.

 

Ensaios e Palestras

Desta seção destaco os ensaios “Aspectos antropológicos do itabaianense” e “Sobre Walter Benjamin”.

Quanto ao primeiro, mais uma vez, ironia e erudição dão-se às mãos. Verdadeira aula de etnografia, incluindo mitos e traço psicológico: “Se há a marca do mistério, nem por isso os itabaianenses são nefelibatas, pelo contrário, têm os pés fincados na terra”. E isto devido “ao lado montanhês e à ausência do mar”.

Quanto ao segundo, Alberto inicia o ensaio com uma frase, a qual quando li, me senti como se passasse a fazer parte de uma ordem de iniciados. Diz o grande mestre: “Uma das minhas maiores gratificações intelectuais foi ter conhecido a obra de Walter Benjamin”. Sempre pensei o mesmo.

A leitura, não somente da obra, mas, também, do autor, levada a efeito por Alberto Carvalho, é serena e segura. Alberto exibe senso crítico aliado à airosidade: “Ler Benjamin, apesar de que muitas das suas posições pareçam contraditórias é se deliciar com um artista da palavra, profundo, mas sucinto, variado e sempre brilhante.”

Alberto soube usar, sem pesar a mão, sem carregar nas tintas, os adjetivos mais adequados em seu elogio ao filósofo da aura, das galerias, do drama barroco alemão.

Por fim, algumas palavrinhas a respeito de “Dispersa Memória”. E estas linhas não são recentes. Reproduzo, agora, o que escrevi há mais de vinte anos. Vamos lá.

Apesar do livro, nada está disperso, apesar de coisa alguma, no livro, manter-se sob total controle. Eis o estilo Alberto Carvalho.

Mas o fato é que o escritor revela salutar e bem-disposta seleção mnemônica, fazendo de cada texto parte essencial de um tecido mental bem costurado.

Ah, desde então eu já desautorizava uns poeminhas sensabóricos, insípidos cometidos pelo Grande Mestre.

Mas é importante reconhecer que Dispersa Memória continua a ser leitura necessária. Pelo menos para mim.

 

ENFIM…

Alberto Carvalho mantinha uma visão ampla e afiada da arte e da vida. Não sei se ateu ou agnóstico (nunca ficou claro a mim), entendia a vida a ser vivida aqui e agora. Mas, diga-se de passagem, sem pressa. Principalmente quando o objetivo é (digo é porque para Alberto deveria ser constante) a fruição estética qualificada e o conhecimento fundamentado. Para Alberto, viver o fenômeno Arte, era viver o fenômeno Vida.

Na ótica albertocarvalhiana, a arte significava o passo adiante, o escapar à mediocridade. É possível perceber o entusiasmo do pensador itabaianense, ao mesmo tempo o cuidado quase que epistemológico, ao produzir os textos que abordam artistas, os quais ele conhecia bem. Vários são seus amigos e admiradores. Isto vale para os textos dedicados às artes plásticas e para os textos dedicados à literatura.

E quando passamos a conhecer suas produções críticas que nascem da visão cosmopolita, trazendo suas impressões quanto ao que se produziu na Europa, notadamente no cinema, temos a nossa sensibilidade ferida pela imediata consciência de que a arte, para Alberto Carvalho, significava um desvelamento pelo qual podemos nos ver se revelados como seres-no-mundo.

A Arte, para Alberto Carvalho, em suas manifestações/expressões máximas, era o máximo na Vida.

Nestes livros que aqui, ‘en passant’, comentei, Alberto Carvalho oferece, generosamente ao leitor, um universo de possibilidades.

Na minha opinião, se queremos honrar sua memória, temos de compreender sua dimensão intelectual (como ensaísta) e artística (como escritor) em toda sua grande extensão e grande profundidade.

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Leo Mittaraquis

Léo Mittaraquis é graduado em Filosofia, crítico literário, mestre em Educação. Mantém o Projeto "Se Comes, Tu Bebes". Instagram: @leo.mittaraquis

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