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O vinho na arte dos pintores espanhóis – Algumas superficiais considerações

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Léo Mittaraquis (*)

 

Baco decidiu fazer-se herói. Suas intenções nada tinham de terrível e de sanguinário. Desejava apenas levar a civilização e a arte de fazer o vinho às regiões mais remotas.

Albino Pereira Magno, História do paganismo em diversos povos da antiguidade

 

Un gran vino requiere un loco para hacerlo crecer, un hombre sabio para velar por él, un poeta lúcido para elaborarlo, y un amante que lo entienda.

Salvador Dalí

 

Devido ao estrondoso sucesso de público e crítica, meio ao pequeníssimo grupo de leitores com o qual conto, volto à carga com mais vinho e cultura clássica. Desta vez, meia taça de referências quanto à relação do vinho e a arte de alguns pintores espanhóis, aos quais tributo grande admiração. E assim procedo para, além do cultivo da vaidade, da autoafirmação, do espírito emproado, investir em temas inofensivos, livre dos miasmas ideológicos e partidários, a agradar gregos, troianos e comunidade do bairro Grageru.

Entre os bebedores apaixonados pelo vinho, é sabido que o setor vitivinícola sempre desempenhou o mais importante papel em termos históricos, culturais e econômicos na Espanha.

Para se ter uma ideia, há registros de que, já no século II da era cristã, somente Roma teria comercializado (o que significa consumido) cerca de 20 milhões de ânforas de vinho espanhol.

E as procedências, a partir do território, variavam desde os adocicados vinhos de Málaga, passando pelos denominados claretes da Galícia até os tintos Tarragona e os brancos de Alella. O consumo era em tal magnitude que exigiu a criação de normas de plantio com o nobre objetivo de proteger os produtores nativos.

E foi durante os séculos XVI e XVII, da nossa era, que se definiram os processos de produção: vindima, separação e prensagem das uvas em lagares, fermentação, envelhecimento em madeira, conservação e envelhecimento em garrafa, rolhas de cortiça, dupla maceração e repouso em caves, além de outros procedimentos.

Não vou arriscar-me, aqui, usar, a torto e a direito, a expressão “Siglo de Oro”. Há controvérsias quanto a esta percepção, e não quero insultar minha preguiça pondo chifre em cabeça de cavalo. Li e estudei muito o dito “período”. O bastante para inteirar-me das discordâncias e pôr-me quieto. Mas, para não dizer que não falei das cebolas, cito o competente e dedicado pesquisador e historiador Bartolomé Bennassar: “A Idade de Ouro coincidiu, portanto, com um apogeu político que sem dúvida excedeu a força da Espanha e que foi portador, sem paradoxo, das sementes da decadência”. Então tá…

Voltando ao vinho, vale ressaltar que sua presença ocorreu em praticamente toda a vida cotidiana do tal “Siglo de Oro”, e isso se refletiu nos artistas e escritores mais destacados do barroco espanhol.

Portanto, vinho e Espanha estão, por assim dizer, entrelaçados em diversos aspectos.

Os artistas espanhóis, os pintores, para ser mais direto, tinham plena consciência de tudo isso. Retrataram, com mestria, a existência do vinho na sua rica cultura, produzindo obras de arte da mais alta qualidade e beleza.

O Triunfo de Baco, Diego Velázquez

Assim, temos, por exemplo, uma cena de um banquete, assim denominado pelos especialistas da estética mitológica: a tela produzida por Diego Velázquez, em meados do século XVII. Interessante é que a mesma arte, a depender da publicação que a ela se refere, firma o título como tão somente “Os bebedores” ou, de maneira mais pomposa, como acontece no Museu del Prado, em Madri, “O Triunfo de Baco”, de 1629.

Indagará o leitor: “Mas home, que raio de triunfo é esse?” Responder-vos-ei: “Creio que se refira à superação levada adiante pelos viticultores, pela própria videira, ante os desafios do cultivo e da planta, por vezes tão exigente, e a produção subsequente do vinho. E, também, ao fato de que mais pessoas passaram a beber mais vinhos. Inclusive bons vinhos”.

Leve-se, outrossim, em conta, o sentimento de liberdade, de paixão, até mesmo de redenção proporcionado pela bebida. O divino poder inebriante do vinho para libertar as pessoas de seus problemas.

Para todo o sempre, na cultura ocidental, Baco – o Dionísio grego numa versão mais dada à esbórnia – tornou-se referência primeira para a humanidade no que concerne um culto, o qual considero irreprimível. Fora assim na Antiguidade, o é assim, sob outros parâmetros em tempos hodiernos. Algo de êxtase e de manifestação pulsional (tão cara a Nietzsche) permanece.

Recorro, a título de maior fundamentação, ao imenso Ovídio, que, em “Metamorfoses”, descreve Baco como o promotor da folia e das manifestações de êxtase. No livro VI, linha 488, lê-se: “À mesa serve-se o banquete real e serve-se Baco em vasos de ouro”.

Sim, triunfa Baco, e não é de agora.

Em “O Triunfo de Baco”, Velázquez representou o deus do vinho cercado por homens bêbados. Mas, quando devidamente observados, os personagens demonstram que se encontram em bom estado de humor. Olham diretamente para fora da pintura, para o espectador. Gosto de pensar que estão a convidá-lo a participar da celebração.

Entre outros pintores espanhóis pelos quais nutro predileção, destaco Joaquín Sorolla y Bastida, também conhecido como “O Mestre da Luz”.

Paradoxalmente, a tela de Sorolla (pintor impressionista que atuou entre os séculos XIX e XX, deixemos claro logo, portanto, que não tem relação direta com o período de Velázquez), a qual aqui incluo, é muito mais voltada para as sombras, para o interior: trata-se de “O Bêbedo de Zarautz”, produzida, penso, por volta de 1910, quando o pintor passou em Zarautz (Sorolla morreu em 1923).

A cena é inquietante. O espectador, no conforto climatizado da sala do museu, compreende, se detém cultura e sensibilidade para tanto, a atmosfera sufocante, a penumbra sugerida, o ridículo ao qual o personagem central é levado pelo consumo excessivo de bebida. No entanto, há também alegria, quase que uma celebração.

Algo como uns beberrões se reúnem em uma taverna. Notem que aquele que se encontra em primeiro plano, à esquerda, mira o artista com uma expressão ameaçadora. A figura ao centro exibe olhos lacrimejantes, enquanto outro integrante praticamente lhe força a beber mais. Provavelmente a bebida é sidra, e não vinho. A garrafa assim sugere. Por sinal, a palavra “sidra” vem do grego “sikera”, que em latim se tornou “sizra”, significando “bebida embriagante”.

As  garrafas mais escuras levam a crer que sejam mesmo de vinho. Esta é uma das seis cenas de taverna que Sorolla pintou naquele verão.

Jovem Bebendo Vinho, Bartolomé Esteban Murillo

Concluo este artigo com Bartolomé Esteban Murillo, outro grande pintor espanhol, e sua tela “Jovem a beber Vinho”, produzida em 1556. Estamos diante de um dos artistas espanhóis que mais despertou interesse entre pesquisadores e especialistas.

Ah, não tá na devida ordem cronológica? É pra ser assim mesmo. Fi-lo porque o quis.

Sobre a tela: o personagem bebe com prazer. Traz um semblante quase que desafiador. Sente-se poderoso, pois, detém um recipiente cheio de vinho apenas para ele. Nos seus olhos tenho a impressão de perceber um traço báquico ou dionisíaco… Não há culpa, tão somente uma alegria arrogante. Murillo extrai o máximo em expressão do jovem, em contraponto à leveza da taça.

Dou ciência de que há mais nomes extraordinários no cenário vinícola e pictórico da cultura espanhola. Esta sintética seleção, arbitrária, bastou-me para expor as ideias e os argumentos presentes. Espero que suscite reflexões e boas conversas, sempre em torno de boas garrafas de vinho… Ou de sidra, por que não?

E como diria Gaguinho: “Por enquanto é só, pessoal”.

Santé!

 

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Leo Mittaraquis

Léo Mittaraquis é graduado em Filosofia, crítico literário, mestre em Educação. Mantém o Projeto "Se Comes, Tu Bebes". Instagram: @leo.mittaraquis

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