Por Léo Mittaraquis (*)
“A gastronomia é o conhecimento racional de tudo
que respeito ao homem quando se alimenta”
Jean Anthelme Brillat-Savarin
Este livro, de quase mil páginas, nasceu após despretensioso questionamento durante um jantar. Segundo o autor, “certo amigo, de Nova Orleans”, perguntou, em tom de conjectura, por que o feijão era uma comida tão problemática e por que o ato de comer feijão-roxo com arroz nos custava algumas horas de desconforto e, às vezes, nos fazia passar vergonha”.
Harold McGee considerou a questão deveras interessante e curiosa. Dias depois, quando se encontrava numa biblioteca, decidiu por buscar a resposta sobre a indagação gastronômica do amigo. Ao consultar livros e mais livros, passou a saber de muita coisa sobre alimentação. Quanto ao feijão e a incômoda produção de gases no nosso organismo, percebeu que havia alguma informação, porém, havia espaço para ampliá-la. O mais interessante é que McGee não se limitou ao feijão. Seu livro, elaborado com base nos seus sérios e profundos estudos, aos quais deu prosseguimento, se tornaria o mais importante guia sobre “Ciência e Cultura da Culinária” em todo o mundo. A primeira edição foi publicada em 1984. Meu artigo crítico comenta a segunda edição, de 2014.
A obra oferece ao leitor uma viagem alimentícia (mas, também, filosófica, geográfica, estética e histórica) desde leite e lacticínios até as quatro moléculas básicas dos alimentos.
A questão básica que sustenta todo o trabalho de McGee é: o que há na comida e na bebida que nos dá esse prazer e como o vivenciamos?
O autor, mesmo que não de maneira radical, absoluta, leva em consideração, também, as suas experiências com alimentos que se deram durante a infância. A manga madura e o sorvete de café que saboreou pela primeira vez. E o momento em que se viu numa cozinha. Desde cedo, então, as inquietações culinárias o acompanharam: como se dão estes processos?
Há no fazer, no servir e no comer, a transcendental subjetividade com a qual nos relacionamos com a comida, reconhecendo nesta o status de grande arte, levando em consideração a estética que define a montagem do prato que vai à mesa e as harmonizações entre o prato e vinhos. Some-se os molhos, as especiarias e a sobremesas.
Para além das referências poéticas, o alimento, desde sua condição in natura até a transformação por que passa na cozinha, são, de acordo com o autor, “misturas de diferentes substâncias químicas, e as qualidades que buscamos influenciar quando cozinhamos — gosto, aroma, textura, cor, valor nutritivo — são todas manifestações de propriedades químicas”.
Ainda que seja, então, um ato de amor, de pura satisfação, cozinhar se mantém como um diálogo constante entre a cultura e a natureza. Entretanto, tomar ciência disso não se configura em demérito algum. Pelo contrário, saber, em maior detalhe, como se dá o processo, empresta maior capital ao mesmo e a nós.
Humanos e mamíferos que somos, temos, na origem da nossa alimentação, o leite e seus derivados. McGee soube muito bem valorizar esse fato: o primeiro capítulo é rico em história e informações técnicas sobre a secreção nutritiva de cor esbranquiçada e opaca produzida pelas glândulas mamárias das fêmeas.
O autor aborda o leite, bebida tão comum, de maneira a nos reapresentá-la. Ao lê-lo, passamos a ter, pelo menos, a impressão de que a bebida diária tem muito mais a nos dizer. Concedamos palavra a McGee: “O leite é alimento para o ser que está começando a comer, uma essência deglutível sintetizada pela mãe a partir de sua dieta mais variada e difícil de digerir”.
Mais adiante, é o ovo que se destaca. E o autor nos fornece dados, sobre esta célula reprodutiva (em geral nas aves) madura e não fecundada usada na alimentação, mais do que importantes, pois, alguns nos afiguram como pitorescos, estranhos, fascinantes.
O capítulo nos toma pela mão e percorremos gustativa linha do tempo, desde a evolução do ovo até técnicas chinesas de se produzir ovos em conserva.
E mais: inclui receitas medievais com ovos para omelete e creme inglês.
McGee não tem a menor intenção de se pôr contra o glamour, contra certa mística que cercam a culinária. Apenas (e, neste caso, apenas significa muito) diz de forma, ao mesmo tempo técnica e elegante, que o amar cozinhar pode ganhar muito se a este agregarmos “o como e o porquê” os fenômenos que resultam em delícias irresistíveis acontecem.
E se ovo e leite protagonizam, em largo aspecto, a cultura culinária, a carne não fica, de modo algum, para trás. Afinal somos seres carnívoros. O autor nos lembra de que: ” A carne tornou-se elemento previsível da dieta humana há cerca de nove mil anos, quando os povos do Oriente Médio conseguiram domesticar um punhado de animais selvagens — primeiro os cães, depois cabras e ovelhas e, por fim, porcos, bovinos e cavalos — e criá-los junto de si”.
Entre os pontos que constituem o capítulo do livro dedicada à carne, McGee inclui uma indagação ao leitor: “Por que as pessoas adoram comer carne?”. E ele mesmo responde em parte: “a satisfação mais profunda em comer carne vem do instinto e da biologia”.
O autor é generoso. E o leitor, caso se mostre grato a isso, prosseguirá, chegando aos peixes e frutos do mar.
McGee, fiel ao propósito de aprofundar nosso conhecimento, discorre sobre “A vida aquática e a natureza particular dos peixes”. E, também, sobre os frutos do mar.
Li, maravilhado. Aprendi, e muito, ao adotar uma atitude humilde e manter o entendimento de que estava (e estou) com um tesouro nas mãos. E se sempre amei cozinhar, principalmente, para minha muito amada imperatriz, após a leitura desta obra monumental, esta paixão, este amor, fortaleceram-se, consolidaram-se. E a isto agradeçamos, e a isto comamos, e a isto bebamos. Evoé!
“Comida e Cozinha — Ciência e Cultura da Culinária” impõe sua importância tão somente pelo conteúdo direto, detalhado e rico. Sem nenhum apelo a mais. E é assim que grandes produções literárias devem ser.