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Os Dias Perfeitos de Wim Wenders

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Por Luciano Correia (*)

 

Gláuber Rocha disse certa vez que o cinema bastava em si, que não precisava de nada em particular para prendê-lo a uma cadeira sob a luz mágica projetada desde o fundo da sala. E assim sendo, tudo no cinema é simplesmente encantador. Quando disse isso, podia estar fazendo teatro, falsa modéstia ou deboche, mas, vá lá, tudo é possível, até mesmo que ele estivesse sendo sincero. Na sua lógica, não existe filme ruim. De Gláuber, damos um pulo até um filme de Hollywood, com sua Los Angeles como pano de fundo. O filme era Short Cuts – Cenas da Vida, dirigido por Robert Altman, de 1993. Me encantou nele a impressão de que não havia um argumento bem amarrado, quiçá não havia nem mesmo um roteiro prévio.

Não estou dizendo que o filme não tinha argumento nem roteiro, mas tive essa impressão. Um filme sem dramatização, como se a história fosse o fato de não haver história, no sentido estrito. Era como se a banalidade do cotidiano fosse a matéria-prima capturada pelo diretor. Se em Gláuber a maquinação cinematográfica, do roteiro aos enquadramentos, efeitos e outros ingredientes, independente do conteúdo, lhe dá o prazer de consumir o cinema pelo cinema, seja ele o que for, em Altman a importância da linguagem chega a um nível de sofisticação tão refinado que a pura ausência de narrativa é também uma forma de narrativa.

Foi pensando nessas coisas que vi Dias Perfeitos, de Wim Wenders, esse celebrado mágico que já nos deu Paris, Texas, Asas do Desejo e Buena Vista Social Clube, entre outros. Não se trata dessa história de cinema independente, ou anti-Hollywood, até porque Wenders é um diretor do mainstream. Mas é de uma delicadeza que nos faz pensar em outro tipo de cinema. Imagino essa geração da cultura fast food, habituada aos streaming e aos jogos eletrônicos, já distantes mil anos da TV tradicional, vendo um trabalho desses. A narrativa se passa lenta, silenciosa, cheia de claros não preenchidos. Se o cinemão comercial dramatiza radicalmente a vida real, aqui a realidade ganha para o filme em calor e sofreguidão, emoção e intensidade.

Nem por isso Dias Perfeitos deixa de emocionar. Aliás, esse sentimento nos assalta ainda no início, quando nos damos conta de que, de fato, nada de extraordinário vai acontecer, nenhuma bomba, mortes sangrentas ou carros se espatifando em penhascos. É justamente aí que nos emocionamos, com a simplicidade do personagem Hirayama, um solitário sessentão (?) caminhando diariamente para cumprir sua rotina de gari na cidade de Tóquio, retratada nos seus jardins, banheiros, becos e bodegas. Até a megalópolis aparece tranquila, singela e acolhedora, com seus moradores peculiares. A vida simples de Hirayama e a maneira suave com que se relaciona com as coisas e as pessoas são uma espécie de oração à beleza da vida sem os penduricalhos que inventamos para criar dependência e nos fazer sofrer.

Hirayama carrega dentro de si a dor de grandes frustrações, mas essa dor nunca salta à vista de ninguém, nem dele mesmo. Pelo contrário, a dedicação com que desempenha sua humilde função não tira o prazer das pequenas coisas, de jogar conversa fora no boteco onde bebe o mesmo drink todos os dias, como não deixa de se espantar com a frieza dos habitantes da selva de pedra que é Tóquio, como a mãe da menina que ele ajuda. A menina, comovida, dispara tchauzinhos de gratidão e carinho para aquele homem de bom coração, enquanto a mãe, ríspida, foge dele como se fosse um molestador. Do nada, como começa, o filme termina. E aí reside sua força e magia. Wenders, esse bruxo de olhar e alma grandiosos, mais uma vez captura nas suas lentes o lirismo do cotidiano.

 

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Luciano Correia

Jornalista e presidente da Fundação Cultural Cidade de Aracaju (Funcaju).

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