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Os dizeres de dona Claudemira

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Prof. Dr. Claudefranklin Monteiro Santos (*)

 

Uma das melhores escolas que eu tive na vida foi a minha casa. Os ensinamentos que recebi lá os levo para toda a vida. É bem verdade que ainda não aprendi todas as lições. Mas, algumas, à custa de muita cabeçada e em razão de minha teimosia e surdez, ou até mesmo ingenuidade, têm sido fundamentais para importantes viradas de chave ou mudanças de rota. Afinal: “Nenhuma ideia, vale uma vida” (Sérgio Affonso – Titãs, 2003).

Aos 47 anos de idade, ela ficou viúva. Por quinze anos, esteve refém numa cadeira de rodas. Perdeu seu filho mais velho quando ele tinha acabado de completar meio século de vida. Esses foram alguns dos dramas que sofreu ao longo de sua existência, alcançando alento nos braços da eternidade, em 2006. A propósito, ela, mesmo crente em Deus, tinha lá suas dúvidas sobre a existência do Céu, às voltas com preocupações do tipo: se lá haveria um bidê para fazer suas necessidades e se teria alguém para ajudá-la.

Fazia questão de ir visitá-la, apesar de minha vida já se mostrar muito intensa e atribulada, no que ela dizia: “Você parece uma lançadeira. Para quê trabalhar tanto? O que tem não é suficiente?”. Ou ainda: “Que graça você vê nesse bagaço véio?”, se referindo a ela mesma. Até pouco tempo, entendi porque ela dizia que eu parecia uma lançadeira, ao me dar conta que se tratava de uma parte de uma máquina de costura, que não sossega, um só instante, enquanto o tecido não ficar pronto.

Tecedura. Ah, como tem sido duro tecer a vida! Mas, ainda que hoje ela esteja ausente, suas palavras (dizeres) seguem vivas a me servirem, ora como bússola, ora como alento nos dias tristes, de desânimo e de decepções. Sobre os dizeres, além do que gravo em minha memória da sabedoria popular que ela aprendera e transmitira, sempre me pedia para ler algo, seja uma bula de remédio, uma carta que chegava pelos Correios ou mesmo algum folheto que jogavam na saleta de nossa casa. Amava me ver lendo, dizia que eu lia compassadamente e claro. E assim, recorrentemente, me pedia: “Frank, leia aqui esses dizeres para mim”.

Quando estava com sede, pedia “dois dedos de água”. Às vezes, eu levava o copo com a referida quantidade, noutras vezes, com meus dois dedos dentro do copo vazio, no que ela ria e me dizia: “sem vergonha!”. Quando se recolhia ou pedia para ir à cama e era interrompida com a pergunta: “Está dormindo?”. Ela, então, com seu gracejo natural, respondia: “Não, estou com os olhos fechados”. Quando a chamava, carinhosamente, de “mãedioca”, ela replicava: “estou mais para manupeira” (manipueira é a sobra líquida da mandioca imprensada)”.

Era de opinião que uma novela deveria ser para “entreter” e não para mostrar a realidade, porque de realidade ela já estava cheia. Dizia para prestar atenção com alguns gestos das pessoas que falavam com a gente. Aquelas que não olhassem em nossos olhos, que ficassem o tempo todo com a cabeça baixa, raramente levantando ou mexendo com as mãos enquanto falava, que tivéssemos medo, pois eram “falsas, interesseiras e dissimuladas”.

Quando diziam para ela que tudo iria ficar bem, se referindo à sua saúde e que o sofrimento era para lhe purgar da vida e dos pecados, respondia sem pestanejar que “pimenta nos olhos dos outros é refresco”. Na verdade, ela não dizia exatamente “olhos”, mas uma outra palavra impublicável que o leitor já deva ter deduzido de imediato. Não tinha paciência com quem vinha lhe falar dos filhos e filhas e da forma como eram criados(as): “Foi você quem pariu? É você que alimenta? Cuide dos seus que cuido dos meus!”

Foi vítima de preconceito por conta disso e de outras situações. Chegou a receber telefonemas anônimos, com julgamentos grosseiros e covardes. Mas, ela tirava de letra, ora com humor, ora com altivez e coragem, sempre se pautando pela máxima que, nessas ocasiões, repetia: “Hoje por mim, amanhã por ti”; ou ainda, “a vida é uma roda gigante, não cuspa quando estiver em cima, porque um dia você vai estar embaixo”.

Era uma mulher além de seu tempo. Frágil, mas destemida. Deprimida, mas divertida. Dizia sempre para mim que quando eu casasse, deixasse a mulher trabalhar e ter o dinheiro dela. Que não deixasse trabalhar muito, para cuidar dos afazeres da casa e do marido, mas que ela pudesse ter dinheiro ao menos para comprar seus “panos”, se referindo aos moldes (absorventes íntimos) ou mesmo às roupas.

Ela usava a expressão “paracé” (presepada) para várias situações: espirrava, era “paracé de gripe”, febril, de crise de garganta. O tempo fechado, “paracé de quem vai chover”. Mentia ou inventada, “paracé de quem não valia nada”. A novela demorava pouco, “paracé de propaganda eleitoral”. Aliás, quando ouvia falar de um político roubando ou dizendo que era um homem honesto e que prometia mundos e fundos, dizia: “Homem, vá rezar um terço que é melhor!”

Quando tinha pressa de alguma coisa, dizia: “avi, menino!”. Quando pedia para a gente se acalmar, “se avexe não”. Quando orientava a ir moderadamente, “tudo no seu tempo”. Quando lhe pedia a bênção, “Deus te dê juízo”. Quando tinha confusão na rua, “se chegar em casa, apanha se bateu e apanha de novo se apanhou”. Quando pedia para ir à bodega, “traga o troco”. Quando eu pedia para ir à rua: “cuidado com quem anda; amigos, só encontramos em casa”. Ou ainda, “coito demais não presta”.

Encerro este artigo, com um os dos inúmeros dizeres de dona Maria Claudemira dos Santos Monteiro que eu mais curto: “Quer subir, suba na mãe” (se referindo a quem nos usa para alcançar seus próprios objetivos). Espero que esta lição, enfim, eu tenha aprendido. Quanto às outras que Deus me permita ainda experimentar, valho-me, novamente, de um trecho da canção acima: “Enquanto houver sol / Ainda haverá (…) Quando não houver caminho / Mesmo sem amor, sem direção / A sós ninguém está sozinho / É caminhando que se faz o caminho”.

 

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Claudefranklin Monteiro

Professor doutor do Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe.

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