Wanderson Reis*
“O princípio da nossa época é a liberdade” – Leon Tolstói no romance Anna Karenina
A recente Medida Provisória nº 776 alterou a Lei de Registros Públicos (LRP), e, dentre outros temas, tratou da naturalidade do nascido. A principal mudança, e que causou maior estranheza a princípio, ficou por conta do § 4º do artigo 54 da LRP, que cria alternativa quanto à naturalidade do recém-nascido.
Até a edição da MP, registrava-se o recém-nascido como natural do município onde nasceu. Ou seja, nascido no Município de Aracaju terá a naturalidade de Aracaju (aracajuano será). A partir da referida MP (aí vem a novidade) criou-se a seguinte opção para a naturalidade: “(…) a naturalidade do município de residência da mãe do registrando na data do nascimento, desde que localizado em território nacional, cabendo a opção ao declarante no ato de registro do nascimento.”
No caso de adoção, essa opção só se dará se a adoção foi iniciada antes do registro do nascimento. Dessa forma, o declarante poderá optar pela naturalidade do município de residência do adotante (não distingue sexo) na data do registro, além das alternativas que já vimos acima.
Nesse período, por uma daquelas coincidências da vida, nasceu no município de baiana/SE, pesando 3055g, 50 cm e linda como a mãe (graças a Deus!) minha filha, Anna Karenina. Não demorou muito e diversos amigos me bombardearam pelo WhatsApp com textos me alertando sobre essa mudança legislativa. Daí se seguiu a curiosa pergunta: “E aí cara, vai pôr na certidão de nascimento natural de onde? De Itabaiana, onde a menina nasceu, ou de Aracaju, onde a mãe reside?”.
Consultei a voz da razão, a mamãe (claro!), que me justificou a razão por escolher Aracaju/SE afirmando que apenas escolheu a maternidade São José em Itabaiana/SE por ser uma referência na área (reconhecida até pela Unicef), bem como por ficar mais próximo ao município de Moita Bonita/SE, onde reside a minha sogra, pessoa que melhor auxiliaria no resguardo e nos primeiros cuidados com minha filha. Detalhe: Moita Bonita (área 95,820 km² e população em torno de 11.350 habitantes, de acordo com censo IBGE/2013) não possui maternidade.
De igual modo, para além de uma questão puramente sentimental, nós pais chegamos ao consenso de que a criança crescerá de fato em Aracaju (onde residimos), local em que naturalmente estabelecerá vínculos socioafetivos. Lembrando que não haverá repercussões jurídicas decorrentes dessa opção.
Uma realidade se impõe: brasileirinhos e brasileirinhas não nascem em municípios de menor porte porque esses não possuem maternidade. Ou seja, muitos filhos de habitantes de municípios vizinhos acabam nascendo em lugar diverso de onde residirão. Como efeito imediato, teremos um falseamento da realidade com o consequente erro de estatística do número de nascidos numa determinada localidade que possui maternidade com os novos residentes de municípios contíguos.
Após uma peregrinação por alguns cartórios que possuem registro civil, percebi que, além de ser o primeiro a levar essa demanda, certo desconhecimento das alterações legislativas. Em um, tentaram me convencer que a melhor opção seria registrá-la como natural de Itabaiana mesmo. Por quê? Porque ela nasceu lá e daria menos trabalho. Às favas com a opção dos pais! Em outro, já na capital, após a recusa inicial, informei ao escrevente que a lei havia mudado. Fato esse confirmado com um aceno de cabeça e um sorriso feliz (ao que parecia) da chefe que estava sentada ao lado dele. Fui encaminhado a uma escrevente bastante atenciosa e empolgadíssima com a novidade. Ela deu um google e imprimiu a inovação legislativa para que não houvesse dúvidas. Surpresa maior tive ao saber que o sistema do Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe, utilizado pelos cartórios para fins de cadastro e emissão da certidão de nascimento, não foi alterado para atender essa nova demanda.
Enfim, o “jeitinho” encontrado após alguma discussão e consulta telefônica aos servidores do próprio TJ/SE, foi colocar como local de nascimento o município de Itabaiana/SE e consignar no campo observação/averbação de que “o pai, ora declarante, optou por registrá-lo com naturalidade do município de Aracaju/SE, nos moldes do reza o artigo 54, item 11, § 4º da Lei 6.013/73”.
Porém, as coisas não deveriam ser assim. Ao pé-da-letra-da-lei a opção dos pais não foi totalmente respeitada. Para que fosse resguardado esse direito outras medidas deveriam ter sido tomadas em conjunto, como bem elucida o Sumário Executivo da MP 776/17: “i) alteração do § 4º do art. 19, a fim de substituir a exigência de menção, nas certidões de nascimento, ao local onde o nascimento houver ocorrido, pela menção à sua naturalidade; ii) inclusão do item 11 do art. 54, a fim de deixar expressa a exigência de que no assento de nascimento também conste a naturalidade do registrando”.
A naturalidade é, em suma, um direito fundamental, um traço tão importante quanto o nome. E optar, na visão dos pais, pelo que for mais favorável para o recém-nascido é base para o início de construção da personalidade da criança.
Wanderson Reis, bacharel em Direito pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), natural de Itabaiana/SE e pai de Anna Karenina.
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