Outubro de 2016, soube por brasileiros hospedados no hostel, que Elza Soares se apresentaria em Lisboa no dia seguinte. Como nunca tinha visto nenhum show de Elza, me animei para ir assistir. No dia seguinte lá estava eu no Coliseu. Fazia muito frio para um nordestino como eu, acostumado aos 30º na caliente São Luís do Maranhão, minha Ilha do Amor.
Acenderam as luzes, no centro do palco, aquela mulher pequena, em cadeiras de rodas, a hipnotizar todos com sua voz rouca e potente, que lembrava as eternas divas do jazz americano. O nome do show era “A mulher do fim do mundo”, premiado com o Grammy Latino para Melhor Álbum de MPB, seu trabalho mais recente, o primeiro da sua carreira só com temas originais. Sucesso de crítica e público, aquela pequenina mulher de 85 anos agigantava-se elevando o tom de sua potente voz. Como acho que a música e o sexo me conectam com Deus, não necessariamente nesta ordem, estava em êxtase, em gozo cósmico.
Uma coisa é assistir a um show de um brasileiro, ou brasileira, em terras tupiniquins; outra coisa é assistir em terras estrangeiras, a emoção é muito maior.
Dá vontade de gritar “esse é o Brasil que queremos mostrar para o mundo”.
A longeva trajetória de Elza tinha tudo para dar errado, mas ela driblou o tempo todo todas as mazelas da vida. E ao morrer, na tarde de 20 de janeiro, de causa natural, serena, em casa, no Dia de São Sebastião, tinha o reconhecimento máximo, em vida, pelo conjunto da obra, do público e da crítica.
Elza morreu, em uma triste coincidência, no dia em que se completavam 39 anos da morte de Mané Garrincha, jogador de futebol com quem foi casada de 1966 até 1982. Eles tiveram um filho, Garrinchinha, morto em 1986, em um acidente de carro.
Elza da Conceição Soares, ou apenas Elza Soares, como ficou conhecida do público, no Rio de Janeiro, nasceu em 23 de junho de 1930. Criada na favela de Água Santa, hoje Vila Vintém, na zona norte carioca, tinha propriedade para cantar os versos do samba Lata D’Água, sucesso do carnaval de 1952. De infância pobre, tornou-se mãe aos 13 anos, viúva aos 21, com cinco filhos. Viu seu destino mudar quando resolveu enfrentar o temível Ary Barroso em seu programa “Calouros em Desfile”, na Rádio Tupi. Tirou a nota máxima ao interpretar o bolero Lama.
No programa, em que foi com as roupas da mãe, bem mais gorda do que ela, Ary Barroso, achando-a exótica, perguntou-lhe: “De que planeta você veio, menina?”.
Ela de pronto respondeu: “Do planeta fome, seu Ary”. O auditório que gargalhava, ficou em silêncio; de lá ela saiu com prêmio e dinheiro para alimentar os filhos.
A partir daí, foi ser crooner de orquestra na noite carioca até ser contratada pela gravadora Odeon, no final dos anos 50, na qual gravou seu primeiro disco. Logo de início, emplacou sucessos como os sambas: Mulata Assanhada, Boato e Beija-me.
Em 1966, casou-se com o craque do Botafogo e da Seleção Brasileira, Mané Garrincha. O casal passou por altos e baixos. Durante o período militar, Elza foi perseguida e os dois tiveram que deixar o Brasil após a casa em que moravam, no Rio de Janeiro, ter sido metralhada. Foram morar na Itália.
Nos anos de 1970, seguiu emplacando sucessos e gravando regularmente. Dessa época, destacam-se músicas como “Salve a Mocidade”.
Na década seguinte, sem espaço na mídia, foi reabilitada por Caetano Veloso que a convidou para uma participação na faixa Língua, de seu disco Velô, de 1984. Voltou a ser abraçada pelo público e pela classe artística. Em 1999, foi eleita a cantora do milênio pela BBC de Londres, título que ostentava com orgulho e que a fez voltar com tudo para a mídia, sobretudo com o espetáculo “Dura na Queda”, que deu origem ao CD Do “Cócix Até o Pescoço”, no qual gravou canções inéditas de Chico Buarque, Jorge Ben Jor, Caetano Veloso. Nesse álbum está a canção “A Carne”, de Marcelo Yuka, Seu Jorge e Wilson Cappelette, que virou um hino contra o racismo e que passou a fazer parte de praticamente todos os shows da cantora dali em diante. Ela ganhou ainda cinco prêmios Grammy Latino.
Em 2015, deu início a uma trilogia que resultou em A Mulher do Fim do Mundo (2015), Deus É Mulher (2018) e Planeta Fome (2019), Nesses trabalhos, deu espaço para novos compositores e denunciou, por meio das canções, temas como a violência contra a mulher e a desigualdade social do País. Com esses trabalhos, já perto dos 90 anos de idade. Multifacetada, diferenciado, atemporal, renovou seu público e passou a atrair jovens para seus shows e redes sociais.
Em uma época quando grande parte das mulheres mais velhas abdicaram dos prazeres sexuais, Elza continuava cantando, encantando, namorando homens jovens, gozando a vida como deve ser até o final.
Da Vila Vintém, Mulher do Fim do Mundo, negra, que tinha tudo para dar errado, virou o jogo, e aos 91 anos, eternizou-se, foi brilhar em outra dimensão. Daqui a duzentos anos ninguém saberá quem foi o mandatário da república de 2022, mas com certeza, saberá quem foi Elza da Conceição Soares, ou simplesmente Planeta Elza.
Agora, curta um pouco de Elza Soares com Gaby Amarantos
Luiz Thadeu Nunes e Silva é engenheiro agrônomo, palestrante, cronista e viajante: o sul-americano mais viajado do mundo com mobilidade reduzida, visitou 143 países em todos os continentes.
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