Por Juliana Melo
A pandemia de Covid-19 ocasionou não apenas infortúnios no âmbito do sistema de saúde como também impactou as relações sociais e a economia do país. O cenário pós-pandemia consiste em uma reconstrução econômica, garantindo emprego, renda e qualidade de vida.
Esse cenário exige do setor do transporte público coletivo a conquista dos passageiros, que enfrenta, desde o início de 2020, perdas expressivas de viajantes. Para isso o serviço necessita garantir a modicidade tarifária, além de ofertar um serviço de qualidade. O desafio surge com a necessidade de construir essas atribuições diante de uma crise antiga agregada a sobrecarga de complicações geradas pelo período pandêmico.
Segundo informações da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos, NTU, a crise no setor já vem sendo enfrentada nas últimas três décadas e foi agravada desde fevereiro do ano de 2020 com o início da pandemia no Brasil. No auge de uma aflição epidemiológica global, o setor do transporte coletivo quase colapsou.
De acordo com o Anuário 2021-2022 da associação, os sistemas organizados de transporte público por ônibus urbano, que estão presentes em 2.703 municípios do país, tiveram, do início da pandemia até abril deste ano, uma perda acumulada em R$ 27,8 bilhões. Um impacto financeiro médio de R$ 1,08 bilhão por mês.
Falar em conquista torna-se complicado quando não existem recursos suficientes para torná-lo mais atrativo. Para o advogado de trânsito, engenheiro especialista em engenharia de tráfego e professor convidado da Pós-Graduação em Cidades Inteligentes da Universidade de São Paulo (USP), Nelson Felipe da Silva Filho, a tarifa módica nesse processo é fundamental, além de ser um princípio consagrado em lei.
“Existe o princípio da modicidade tarifária na lei de 95, que é a 8.987. O princípio diz que as tarifas públicas devem ser módicas para que os cidadãos possam ter condições financeiras para terem acesso a qualquer tipo de tarifa pública relacionada aos serviços prestados ao cidadão. No caso do transporte público em específico é bastante benéfica para o passageiro aracajuano, pois a cidade é de médio porte; é pequena se comparada a alguns interiores de São Paulo e possui uma das tarifas mais caras do país”, frisa Nelson.
O valor acessível pode ser um fator propulsor para o transporte conquistar novos passageiros e reconquistar aqueles que estão optando por aplicativos de carro e motocicleta. Segundo o advogado Eugênio Borges, não deve existir na tarifa pública uma sobrecarga de valores.
“Acreditar que a tarifa paga pelo usuário é suficiente para remunerar os servidores e manter o sistema é um retrocesso, é uma forma de fazer o usuário pagar por um problema oriundo do país. A mobilidade urbana é uma atribuição municipal na Constituição Federal, mas a mobilidade é uma política nacional e precisa ser tratada como tal. Para o transporte coletivo ofertar uma taxa módica, que é de direito da população, ele precisa de subsídios extra tarifários, recursos além dos municipais para ofertar um serviço de qualidade. Uma qualidade capaz de fazer as pessoas deixarem seus próprios veículos para utilizarem o transporte coletivo”, salienta Borges.
Ainda segundo Eugênio, “é necessário visar à população como um todo, o transporte coletivo não pode ser pensado como um veículo de pessoas de baixa renda e sim como um sistema qualitativo essencial dentro do Brasil”.
O Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros do Município de Aracaju (Setransp) informou que em 2019 foram contabilizados 63,3 milhões de passageiros, já em 2021, 37,3 milhões; uma perda equivalente a 41,11%. Mesmo com a redução da demanda no período pandêmico existiu uma frota do transporte coletivo na Região Metropolitana de Aracaju equivalente a 80% da sua capacidade, variando para mais com a disponibilidade diária de veículos extras para o serviço. A perda de receita somente no primeiro ano de pandemia (2020) comparado ao ano de 2019 se somou a mais de R$ 97,8 milhões.
Segundo informações do Setransp, desde 2014 o número de gratuidade no transporte coletivo cresceu 80% e nenhum recurso, além do valor arrecadado com o aumento das passagens, supriu a despesa.
Em julho deste ano, o prefeito e também presidente da Frente Nacional de Prefeitos (FNP), Edvaldo Nogueira, se reuniu com o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, para tratar acerca do aporte de R$ 2,5 bilhões referentes ao custeio da gratuidade dos idosos previsto na Proposta de Emenda à Constituição 01/2022 e no Projeto de Lei 4392/2021.
A proposta foi aprovada e a Emenda Constitucional nº 123/2022 foi regulamentada pela Portaria Interministerial n º 9/2022 dos Ministérios do Desenvolvimento Regional (MDR) e da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) no dia 30 de agosto. Ela dispõe sobre os procedimentos para o aporte da assistência financeira. A data-limite de transferências, em parcela única, do Auxílio proveniente da União, é 31 de dezembro deste ano e todas as movimentações de saídas de valores poderão ser classificadas e identificadas. As informações serão disponibilizadas para acompanhamento, prestação de contas e fiscalização.
O presidente do Setransp, Alberto Almeida, assegura que a transferência financeira não resolve o problema, mas ajuda o sistema.
“De fato não é a solução para um setor que hoje tenta se refazer após atravessar a pandemia sem fechar as portas, contudo, irá servir de grande valia para contribuir como uma espécie de fôlego em virtude dos compromissos com mão de obra e fornecedores”, esclarece.
Apenas do início deste ano até o mês de agosto, se comparado ao ano de 2019, durante o mesmo período, existiu uma perda de 26,04% de receita, na qual em 2019 o valor era de R$ 148,4 milhões, este ano foi de R$ 109,8 milhões.
Em um momento crítico, com uma crise sanitária, a garantia do direito ao transporte coletivo foi imprescindível para destinar os profissionais de saúde às suas atividades e assegurar à população a continuidade das atividades nomeadas como essenciais.
O grande problema foi que a frase mais famosa de 2020 – a “Fique em casa” – tinha se tornado fundamental para minimizar o número de contágio da doença. Mesmo quando o transporte coletivo foi atribuído por alguns estudos brasileiros e por alguns passageiros como vilão e propagador da disseminação do vírus, os motoristas estavam dia após dia ofertando o serviço para uma demanda que estava se esvaindo.
De acordo com o Setransp, mesmo com o avanço das vacinas, os dados referentes à demanda de passageiros deste ano, se comparado a 2019, continuou reduzindo. De janeiro a agosto de 2019 foram contabilizados 42,1 milhões de passageiros, já este ano, durante o mesmo período, a demanda foi de 29,6 milhões, uma perda equivalente a 29,63%.
Uma pesquisa realizada pela empresa de tecnologia e mobilidade urbana 99, apontou que a população com menor poder aquisitivo recorreu durante o período pandêmico aos carros de aplicativo como alternativa de mobilidade. Desde o início da pandemia até fevereiro de 2021 o número de corridas realizadas por esse grupo aumentou 36% no Brasil.
Seguindo as definições do IBGE, para o levantamento da análise, foram separadas quatro faixas de renda e analisados dados das cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador, Recife e Porto Alegre. Durante a pandemia, a segurança em relação à Covid-19 apareceu com grande relevância para a decisão de escolha pelo serviço do aplicativo.
Nicoly Suellen Santos é assistente domiciliar de idosos e desde que testou positivo para Covid decidiu abandonar o transporte coletivo por receio e insatisfação com o serviço.
“No início da pandemia eu tive receio, mas ainda utilizava o coletivo. Quando testei positivo para Covid, tive certeza que fui contaminada no transporte coletivo, mesmo com a máscara, por isso resolvi não utilizar mais o serviço. Com o retorno ao meu trabalho, de forma presencial, eu passei a chamar mototáxi, não peguei o transporte até acabar a pandemia. Essa opção gerou um gasto maior, mas eu pedi para meus patrões me ajudarem a arcar com o custo. Até os dias de hoje é raro eu utilizar o coletivo por questão de segurança e superlotação em horários de pico”, pontua Nicoly.
Matheus Satyro, 22, estudante de Direito da Universidade Tiradentes e estagiário do Fórum Gumercindo Bessa, também foi um dos passageiros que abandonou o serviço no início da pandemia.
“Desde o início que optei por não usar o serviço do coletivo. Eu tinha muito receio da contaminação, mesmo com a presença das máscaras e sua obrigatoriedade. Passei a frequentar um mercadinho próximo à minha casa para comprar alimento. Em julho de 2021 meu estágio voltou de forma presencial e a necessidade do transporte público apertou, mas continuei e continuo evitando o coletivo”, esclarece Matheus.
O jovem afirma que com a volta do estágio de forma presencial tentou driblar a necessidade de utilizar o transporte público, se deslocando por meio de caronas, quando consegue, ou por carros de aplicativo, quando possui algum dinheiro extra.
“Para o estágio, quando tenho carona vou. Quando não consigo, tento ao máximo, dependendo das minhas finanças, chamar um carro de aplicativo. Hoje eu não tenho receio como no início da pandemia, mas a realidade é que eu não estou satisfeito com o transporte coletivo. Se o sistema rodoviário pudesse ser mais eficiente optaria por ele. Eu entendo as dificuldades que o setor enfrenta, sou sensível, principalmente, às famílias dos servidores do setor, mas os usuários também sofrem”, conclui Satyro.
Foi justamente durante a perda da demanda nos coletivos que a utilização das bicicletas teve um aumento de 30%, atraindo antigos e novos corações. No dia seis de agosto de 2020, o Só Sergipe publicou uma matéria sobre o assunto.
Leia também: “Sustentabilidade para a mobilidade de todos: aumenta o número de usuários de bicicleta em tempos de pandemia”
Acompanhe o vídeo ilustrativo abaixo:
A esperança do Marco Regulatório do Transporte Coletivo
Diante do cenário que a pandemia provocou existiu a percepção, por parte dos integrantes que atuam, estudam e realizam a gestão do setor, que o modelo desenvolvido atualmente está aplastado. Nesse contexto surgem discussões da NTU e da Associação Nacional dos Transportadores de Passageiros Sobre Trilhos, ANPTrilhos, pautadas na direção de novos caminhos com a origem de um novo Marco Legal para o transporte público.
Segundo informações da revista NTUrbano edição 49, as entidades representativas dos segmentos de ônibus (NTU), trens e metrôs (ANPTrilhos) encaminharam ao governo federal , no final de 2020, um conjunto de propostas nomeado de “Programa de Reestruturação do Transporte Público Urbano” que está ancorado em três pilares, sendo eles: Regulação e contratos; Financiamento e Qualidade e produtividade.
A proposta sugere um novo Marco Regulatório embasado na Lei nº 12.587/2012, que instituiu as diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana.
Em janeiro deste ano, o Ministério do Desenvolvimento Regional realizou e apresentou no Fórum Consultivo da Mobilidade Urbana o documento “Revisão do Marco Legal do Transporte Público Coletivo”. Analisando as causas e efeitos da crise, o diagnóstico foi concluído no final do ano passado, sendo o primeiro passo para a criação do Marco.
O texto foi debatido no dia 4 de fevereiro deste ano pelas entidades que participam do Fórum e seguiu para consulta pública, posteriormente alicerçado no Programa de Reestruturação do Transporte Público Urbano, o então senador mineiro, atual ministro do Tribunal de Contas da União, Antonio Anastasia, deu autoria ao projeto de lei nº 3278/2021 que se encontra em tramitação no congresso para ser votado.
De acordo com informações do documento “A única saída para vencer a crise do transporte público urbano”, disponibilizado no site da NTU, a proposta legislativa é resgatar componentes fundamentais para a recuperação e o desenvolvimento dos transportes públicos coletivos urbanos. O PL está pautado na melhoria da qualidade e produtividade dos serviços no financiamento do custeio, garantindo a sustentabilidade econômica e no financiamento dos investimentos em infraestrutura.
Já a parte de regulação e contratos foca no aumento da transparência e da segurança jurídica, além de uma participação maior da União no papel de indutora e guardiã da Política Nacional de Mobilidade Urbana, que possui 10 anos sem ter sido plenamente implementada.
Para Alberto Almeida a criação do Marco agrega importantes medidas para o sistema rodoviário. Ele explica algumas delas.
“O Marco Regulatório do Transporte Público Coletivo irá criar diretrizes para o seu desenvolvimento envolvendo todos os setores que estão ligados à prestação desse serviço. Ele tratará, por exemplo, da regulação das vias exclusivas ou prioritárias para ônibus em projetos de mobilidade urbana. Também de condições sobre acessibilidade, regularidade de modais, entre outros assuntos incluindo ainda a destinação de recursos para uma melhor estruturação. O setor, que hoje enfrenta sérias dificuldades acumuladas ao longo dos anos e agravadas diante do período pandêmico, precisa ter a garantia de participação nas discussões quanto a essas questões, inclusive para tratar de assuntos cotidianos para as empresas operadoras do transporte, como a falta de fonte extra tarifária para manutenção e prestação do serviço’’, explana o presidente do Setransp.
Visando uma alternativa rápida para garantir à população o direito ao transporte coletivo, no dia 19 de abril deste ano, o prefeito Edvaldo Nogueira enviou à Câmera de Vereadores dois projetos de lei com caráter de urgência. Após votação, no dia 28, foi sancionada a lei complementar nº 176/2022 e a lei nº 5.466/2022.
As leis garantem respectivamente a redução da alíquota do Imposto Sobre Serviço de Qualquer Natureza (ISSQN), que incide sobre os serviços públicos de transporte coletivo municipal, de 2% para 0% no período de um ano. E institui o Programa provisório de Custeio Extra Tarifário de Gratuidades nos Transportes Coletivos Urbanos às pessoas com deficiência e seus acompanhantes, além de autorizar a Prefeitura à realização da compra antecipada do vale-transporte para servidores municipais, referente a 2021, de forma transitória e excepcional, também durante o período de um ano.
Segundo informações da Prefeitura de Aracaju, essas medidas geram um impacto financeiro de R$ 9 milhões no orçamento deste ano. Para o vereador, Professor Bittencourt, esse conjunto de ações são medidas relevantes, mas se apresentam apenas como um socorro, não como uma solução.
“Isso obviamente são medidas paliativas, não são um conjunto de questões que vão resolver os problemas do transporte público da Grande Aracaju, mesmo porque, em especial no período da pandemia, o transporte público no Brasil como um todo teve perdas expressivas. O aumento do valor do diesel também foi um fator que agravou bastante. Mesmo não resolvendo, visto o quanto o setor perdeu, essa iniciativa do prefeito é de real relevância e reafirma o quanto o transporte coletivo necessita ser uma preocupação”, relata Bittencourt.
Ele também continua ressaltando outras questões. “No final do semestre passado nós aprovamos a lei de diretrizes orçamentárias; nessa lei, já está apontando a possibilidade de realização da licitação do transporte público. Esse é um assunto que está sendo bastante propalado e às vezes sendo apresentada como a grande solução do problema, que não é. Mas ele é um ótimo encaminhamento que já está, pela primeira vez, presente em um documento oficial do executivo, que é a construção das condições para que essa licitação possa ser efetivada. Os inícios das coisas já estão sendo encaminhadas”, garante o vereador
O Professor conclui que “é necessário uma política pública densa e permanente para realizar a transformação necessária que o transporte público necessita. É um desafio que o Brasil, na minha avaliação, precisa enfrentar sem demagogia, sem falsa promessa, sem politizar demais, porque politiza-se sempre, é normal, mas, politizar com a honestidade de que as coisas precisam ser resolvidas. No tocante aos subsídios para manter o sistema eu só consigo enxergar os subsídios públicos, qualquer recurso que a sociedade possa apresentar, no fim das contas, acaba sendo diluído e o usuário mais humilde acaba arcando. Nem todos os municípios têm condições de fazer esses subsídios.
Em agosto, a Prefeitura de Aracaju entregou mais de 16 novos ônibus para melhor atender à população, qualificando a mobilidade. Mesmo diante dos desafios o setor continua mantendo a resiliência e buscando alternativas para continuar ofertando à população um direito fundamental. A esperança, no atual contexto do setor, ganhou o formato de combustível para o transporte público coletivo percorrer uma estrada asfaltada pelos acordes da melodia de Rogério Flausino, aquela na qual almeja em sua letra apenas uma coisa, dias melhores.
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