Ele pediu à mãe que lhe comprasse um ABC e passou a se alfabetizar sozinho. Depois uma pessoa o matriculou no Grupo Escolar Sílvio Romero, o único estabelecimento de ensino em Lagarto; e ao concluir o curso primário, ficou novamente sem ter o que fazer e foi trabalhar na roça. Mas, eis que uma oportunidade lhe bate à porta, ele arruma as malas e vai estudar no Colégio Dois de Julho, em Salvador. Detalhe: ele só avisou ao pai na véspera da viagem. “Saí de casa praticamente fugido aos 16 anos”, contou Josué Mello.
Por conta dessa rebeldia, o pai não o aceitava em casa, tanto que nas férias escolares ele foi passar na casa de um amigo, em Governador Mangabeira. Sempre se correspondendo com a mãe, e passado algum tempo, teve a notícia de que a situação estava mais amena em casa e lá foi passar um outro período de férias. “E aí meu pai me recebeu com abraços e passei a ser o herói da família”, contou.
Fato como esse e muitos outros estarão num livro biográfico de Josué Mello, que está sendo escrito pelo professor Claudefranklin Monteiro, que em janeiro será o chefe do Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe (UFS). “A ideia do livro foi minha. Eu tentei escrever, mas não achei bom eu falar de mim mesmo”, disse.
No início da tarde de ontem, Claudefranklin, procurado pelo Só Sergipe, informou que já entregou as primeiras 60 páginas do livro para que Josué as lesse e em janeiro fará uma nova entrevista com o biografado. Até março, o livro, que ainda não tem título, deverá ser lançado.
Mesmo residindo há muitos anos em Feira de Santana, Josué Mello mantém suas raízes em Lagarto e Aracaju, onde moram alguns dos seus irmãos. O mais velho deles, Daniel, tem 102 anos e vive em Aracaju. Está nos planos do professor uma visita a Sergipe em janeiro de 2023.
O professor Josué Mello é um cidadão embalado por sonhos e projetos, todos eles até o momento transformados em realidade, a exemplo do Serviço de Integração do Migrante (SIM) e do Centro Universitário de Cultura e Arte (Cuca), da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), uma das maiores obras quando ele era reitor da instituição. O seu mais recente sonho é levar para Feira de Santana uma universidade federal, que será uma referência, não só para a região, mas para o Nordeste. O processo está sendo encaminhado.
Na última semana de novembro, o Só Sergipe foi conversar com Josué Mello, em Feira de Santana. Foi quase uma manhã inteira de bate papo agradável com ele, que atualmente preside a Academia de Educação, e o resultado é esta entrevista de fôlego.
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SÓ SERGIPE- O senhor é sergipano, nascido em Lagarto, mas que fez história na educação e na política em Feira de Santana, na Bahia. O que o trouxe para a cidade cujo codinome é “Princesa do Sertão”?
JOSUÉ MELLO – Olha, primeiro, sair de Lagarto foi uma atitude rebelde. Desde a minha infância, desde pequenininho, desejei estudar. Depois, eu demorei muito tempo para descobrir o motivo pelo qual nenhum irmão meu estudou. Eles foram todos semialfabetizados, criados na roça, no trabalho rural, e se acomodaram. Mas eu, desde cedo, revelei o interesse pelo estudo e pedi à minha mãe que comprasse um ABC, uma cartilha de alfabetização, e eu mesmo me alfabetizei. Depois, alguém vendo meu interesse me matriculou num grupo escolar em Lagarto chamado Sílvio Romero, a única instituição de ensino que existia naquele momento, que dava ensino primário completo, da primeira à quarta série. Mas, com um pouco de rebeldia pois meu pai era de uma tradição religiosa presbiteriana muito conservadora, muito calvinista, com uma preocupação muito grande com a ética, com a justiça. Como ele não deu estudo aos outros filhos e principalmente aos do primeiro casamento, então não poderia dar também aos do segundo casamento, caso contrário ele seria injusto e teria que prestar contas disso a Deus. Então o caminho foi o trabalho da roça para os outros. Seria também para mim, mas eu disse que esse caminho eu não queria. Eu quero é estudar. Enxada não, eu quero é escola. E fui por minha conta e risco.
SÓ SERGIPE – E depois do primário, em Lagarto?
JOSUÉ MELLO – Terminei o primário e não tive mais condição de avançar, porque em Lagarto só havia até a quarta série. Fiquei sem estudar uns cinco anos depois que terminei o meu curso primário, que foi muito bom. Um colégio de qualidade, fui até o orador da turma. Eu tenho impressão de que a igreja que me despertou para o estudo, porque eu frequentava a igreja evangélica quando criança. Eu via as pessoas mais idosas do que eu recitando poesia, declamando textos da Bíblia. Puxa, eu dizia, quero um dia fazer isso. Então, acho que a igreja me inspirou muito nos meus estudos.
Depois essas igrejas presbiterianas cresceram, se desenvolveram em várias cidades, como Estância, Propriá, Aracaju, e elas começaram a se reunir, se juntaram com as igrejas da Bahia e fundaram um concílio Bahia e Sergipe. Uma vez por ano essas igrejas se reuniam para traçar planejamento em conjunto, discutir, ouvir os pastores distantes, receber as inspirações uns dos outros. E um desses encontros ocorreu em Lagarto, e foi até lá um professor de Salvador, do Colégio Dois de Julho. Ele me viu declamando, discursando, fazendo saudação, e me perguntou se eu estava estudando, disse-lhe que estava na roça, pois tinha terminado meu curso primário.
Contei a ele minha história, dizendo que queria estudar e pedi que arranjasse um jeito para eu estudar na Bahia. Eu disse que queria sair de Lagarto. Ele me pediu para aguardar, pois tentaria conseguir uma bolsa de estudos. Era o colégio presbiteriano, que tinha internato e era caro. Disse a ele que se conseguisse alguma coisa não mandasse a comunicação para minha casa, mas para o pastor da igreja. Com 15 dias veio uma resposta, informando que ele havia conseguido uma bolsa e que eu fosse imediatamente para Salvador.
Eu tinha umas economias e me arrumei todo, comprei mala e enxoval. Na véspera da viagem, peguei um ônibus de Lagarto a Salgado e de lá, um trem maria fumaça que me levou até Salvador, no bairro Calçada. Ali peguei um bonde e fui para o Colégio Dois de Julho. Sai de casa praticamente fugido.
SÓ SERGIPE – O senhor contou ao seu pai que viajaria?
JOSUÉ MELLO – Na véspera da viagem. Ele quis impedir, não podia mais. Eu já estava com passagem comprada. Eu tinha na época 16 anos, e fiquei um ano sem poder voltar para casa. Em uma das minhas férias de julho, um colega de Governador Mangabeira me convidou para ficar na casa dele, quando lhe contei minha história. Cheguei lá, a família dele me recebeu como se fosse mais um filho. Fiz uma amizade imensa com aquelas famílias de Governador Mangabeira e hoje é minha segunda cidade. Conservo até hoje a minha amizade com aquele povo. Até me homenagearam, criaram colégio e colocaram meu nome. Fui pastor lá, construí um templo, foi uma relação muito boa com aquela população.
Bom, eu sempre me correspondia com minha mãe e, nas férias daquele final de ano, ela disse que a situação estava mais tranquila e eu poderia voltar. E aí meu pai me recebeu com abraços e passei a ser o herói da família. Assim cheguei à Bahia, estudando no Dois de Julho.
SÓ SERGIPE – E o senhor continuava na igreja presbiteriana?
JOSUÉ MELLO – Sim. Nesse meio tempo, com a igreja presbiteriana, sempre me dediquei ao trabalho com a juventude. Ela tem uma organização interna que reúne os jovens, que se chama União de Mocidade Presbiteriana, quando local; quando regional é Federação da Mocidade Presbiteriana do Brasil; e nacional, Confederação que reúne todos os jovens presbiterianos do país. Passei a me dedicar e isso me ajudou desenvolver uma liderança. Tornei-me presidente da Federação Bahia e Sergipe, fiz um trabalho intenso e me destaquei.
Quando estava terminando o terceiro ano no Dois de Julho, fui participar de um congresso nacional da Mocidade e lá fui eleito presidente da Confederação Nacional, com sede em São Paulo, onde fui morar. Reunia 25 mil jovens, tinha um jornal e me tornei diretor. Fiz um curso breve de jornalismo e peguei até uma carteira, que tenho até hoje. Isso me deu oportunidade imensa, viajei pelo Brasil inteiro. Abriu portas para o trabalho de liderança.
SÓ SERGIPE – A Igreja Presbiteriana foi fundamental em sua vida, não é?
JOSUÉ MELLO – Sim. Desde o início tive conversão espiritual dentro da igreja. Explicando: a Igreja Presbiteriana do Brasil vem da linha de João Calvino. A Reforma do século XVI teve duas grandes vertentes, sendo uma de Martinho Lutero, que criou a Igreja Luterana, e outra de João Calvino. Ela fez a reforma em Genebra, na Suíça, sendo uma linha diferente de Lutero. Calvino tinha mais profundidade teológica, bíblica, uma outra visão da fé cristã com maior compromisso com a realidade. De João Calvino vem a Igreja Reformada, e no Brasil se chama Presbiteriana. Eu sou da linha da Igreja Presbiteriana Calvinista.
Mas no Brasil, a Igreja Presbiteriana deixou de seguir a linha de Calvino, passou a radicalizar para o puritanismo, conservadorismo, fundamentalismo imenso. De forma que para ser um cristão presbiteriano da época tinha que não beber, não fumar, não mexer com a mulher dos outros, era não fazer isso ou aquilo. Isso era ser cristão para eles. Era um Cristianismo na linha do Bolsonaro, negacionista. Não fazer isso, não fazer aquilo, você se afastar das coisas do mundo era ser cristão. Mas tivemos alguns teólogos que questionaram isso. Lendo direito a Bíblia, vendo direito quem foi Jesus Cristo, o Cristianismo não é isso. E nós recebemos aqui, na época, um teólogo americano chamado Richard Scholl e a palavra dele me converteu ao novo pensamento cristão, a mim e a toda a Juventude na América Latina.
Foi uma renovação teológica, vem ele dizer o que preciso para ser cristão, é precisamente o contrário. Você tem que fazer, você tem que ser. Ser cristão é amar, não é odiar. Olha o que o Cristo fez, pega uma toalha e vai lavar os pés dos apóstolos. O cristianismo vem para tornar o ser humano mais feliz. Então, ser cristão é contribuir para a felicidade dos outros, para que os outros tenham vida de qualidade e vida em abundância. É isso. Isso é que é ser cristão.
SÓ SERGIPE – Aí, o senhor foi quebrar paradigmas.
JOSUÉ MELO – Quebrei todos esses paradigmas, e como presidente da Confederação fui incutir essas ideias na cabeça dos jovens. Teve choque, mas a Confederação da Mocidade era o canal, o instrumento para divulgar esse novo pensamento ideológico.
SÓ SERGIPE – Isso em que década, professor?
JOSUÉ MELO – De 1958 a 1960 para cá. Eu fui eleito em 1959 e estava em São Paulo, com dedicação integral a esse movimento. Eu tinha um jornal da entidade nas mãos e fazia uma imprensa com credibilidade, porque o jornal era mensal. Mas o de dezembro, por exemplo, eu fazia em novembro; eu fazia um mês antes, um mês adiantado para que ele chegasse no Amazonas em dezembro. Recebendo o jornal com o correio daquela época, imagina; loucura, né? Agora meu mandato como presidente era de três anos; mas com um ano e meio, a igreja nacional me tirou, acabou a Confederação, pois não tinha como me tirar porque eu fui eleito pelo voto direto de toda a juventude. Acabou com a Confederação, com o jornal, e foi com mais poder que um militar. Fechou a sala, não pude mais entrar, não peguei documento. Nós não pudemos nem reagir porque ficamos sem os dados nas mãos. Não tenho nem um exemplar do jornal, porque eu jamais poderia imaginar isso.
SÓ SERGIPE – E o que o senhor fez depois disso?
JOSUÉ MELO – Foi o que me perguntei naquela época. O que é que eu vou fazer? Eu tinha intenção de ser pastor e na época surgiu uma terceira faculdade no Brasil, que era da Igreja Presbiteriana, criada pelo teólogo Richard Scholl para formar nova geração de teólogos, de pastores. E eu entrei nessa.
Era uma faculdade de teologia, com um novo pensamento teológico. Fui da segunda turma, e depois da minha turma não houve mais. A Igreja Presbiteriana também fechou, porque achou que era um seminário muito avançado. Terminei meu curso e fiquei me perguntando para onde iria. Aí escolhi Feira de Santana.
SÓ SERGIPE – Por quê?
JOSUÉ MELO – Primeiro, como estudante do Colégio Dois de Julho, eu vinha muito aqui nas férias e sempre me impressionou muito a agitação, o desejo de progresso. Depois que eu vivi em São Paulo, isso se solidificou porque eu sentia Feira de Santana como uma miniatura de São Paulo. A outra coisa que me fez vir, é que tive um professor no Dois de Julho que escreveu um livrinho respondendo a um padre aqui de Feira, que havia escrito um livro contando um sonho de que quando chegou ao céu não encontrou nenhum protestante, nenhum evangélico, somente católicos. E esse padre, ao olhar para baixo, viu fogo, tachos de enxofre e os crentes gritando para sair, sem poder. E aí esse professor deu uma resposta dizendo “Cochilo de um sonhador”, ao contrário do que o padre viu lá, citando versículos da Bíblia etc. E ouvindo aquelas histórias lá na sala de aula e, puxa, se viesse a ser pastor, eu queria ir para essa cidade, acabar com essas divisões.
Essas duas coisas me motivaram vir para Feira de Santana e aí cheguei para ser pastor. Vim com o ideal de unir católicos e evangélicos. A separação era grande no século XIX, início do século XX. Para você ter uma ideia, um missionário americano tentou vir para Feira no final do século XIX, foi o que criou o Mackenzie, em São Paulo, para criar uma unidade aqui em Feira. Ele veio com os dois filhos, que depois foram acometidos de febre amarela. E nenhum médico se dispôs a atendê-los, nenhuma farmácia quis vender o remédio para eles. E eles morreram aqui, e esse dia foi um Deus nos acuda em Feira. Você pode imaginar a crise nesta cidade? O que fazer com os corpos desses dois hereges?
No final do dia alguém teve a ideia de sepultar no final do Cemitério Piedade, depois se faz uma separação e deixa eles lá. Ainda hoje tem lá o mausoléu com os nomes dos jovens e sobrenome Chamberlain. E em torno disso, fizeram um muro separando esse lugar que ficou conhecido como ‘cemitério dos protestantes’. Colocaram coluna de concreto armado com três correntes de ferro ligando uma a outra. Nenhum católico podia ser sepultado ali e nenhum protestante podia ser sepultado fora dali. Quando eu cheguei aqui em feira, em 1965, foi isso que encontrei. Aquilo me trazia uma angústia, porque as pessoas eram separadas até depois da morte. Eram poucas igrejas evangélicas na época.
SÓ SERGIPE – E o que o senhor fez?
JOSUÉ MELO – Eu, então, criei uma associação de pastores evangélicos, e como as Igrejas Batistas eram maioria, um pastor ficou na presidência. Dois anos depois me deram a presidência e quando eu me senti preparado, coloquei dois trabalhadores com picaretas no meu Fusquinha e fui para o Cemitério Piedade. Passei o dia inteiro lá e derrubamos as colunas que separavam protestantes e católicos. No final do dia, eu fui à Santa Casa de Misericórdia e disse que a partir daquele momento só existia um cemitério e que eles tomassem conta. Foi um ato de coragem meu.
SÓ SERGIPE – O senhor criou a Afas – Associação Feirense de Assistência Social?
JOSUÉ MELLO– Sim, em 1968 a mendicância era gritante. Chegávamos a contar uns 200 pontos marcados com mendigos ali na praça J. Pedreira, próximo aos Correios. Eram muitos problemas sociais em Feira. O que fazer para resolver esse problema? Como pastor, levei o assunto à igreja e comecei a desenhar uma proposta, um projeto inovador que precisaria da ajuda de todos. O prefeito era João Durval Caneiro na época e ele apoiou e nos deu uma sala. Na época, o que se fazia era retirar os mendigos da rua.
SÓ SERGIPE – Como é que foi a habilidade do senhor para reunir Igreja Presbiteriana, Católica, Maçonaria, Lions etc.?
JOSUÉ MELO – Foi muita costura. Não reunimos instituições, reunimos pessoas. Na Maçonaria teve o venerável da Loja Luz e Fraternidade, que fica na Getúlio Vargas, que precisou casar um filho evangélico cuja noiva era uma moça católica. E houve um impasse. O pai da menina não permitia o casamento em igreja evangélica, e ele não queria um filho casando-se na igreja católica. Então teve a ideia de casar-se na Maçonaria e me chamou. Eu aceitei dizendo que era necessário trazer um padre para celebrar um casamento ecumênico. Quem estava chegando também na cidade era o monsenhor Renato de Andrade Galvão, e eu tinha vontade imensa de ter um contato com ele, mas não havia tido oportunidade. Foi feito o convite, ele aceitou e fizemos esse casamento. Depois desse casamento, nos abraçamos, ficamos amigos e amigos irmãos.
A partir daí nós nos unimos para criar a Afas. Em sete anos conseguimos humanizar os mendigos da cidade. Colocamos cego, aleijado, todos, para aprender uma profissão. Trabalhando com tecido, trabalhando com cerâmica. Montamos uma barraquinha onde hoje é o Mercado de Arte Popular para vender os produtos deles, e com esse dinheiro eles começaram a ter renda, complementada com a ajuda do comércio, pois fizemos um acordo. Em Feira não se dá mais esmola, encaminhe o pedinte à Afas. E sete anos deixou de ter mendigo em Feira, esse foi um trabalho ecumênico.
SÓ SERGIPE – Nessa integração, o Senhor foi convidado para a Maçonaria?
JOSUÉ MELLO – Convidaram e terminei entrando. Fui até o venerável da Loja Harmonia, Luz e Sigilo que fica lá próximo ao Fórum Desembargador Filinto Bastos.
SO SERGIPE – Mas continuemos a falar sobre esse trabalho na Afas.
JOSUÉ MELLO –Todo mendigo que era atendido, preenchia uma ficha: de onde é que você veio? Por que é que você está aqui?
Eles eram fruto da migração. O êxodo rural. É um problema de feira, não era mendicância, era muito mais sério. Foi o êxodo rural que ocorreu no Brasil. Sem planejamento nenhum, a população rural deixou o campo e quis viver na cidade, porque na cidade tinha esperança do emprego, tinha luz, tinha energia, tinha esperança de uma melhor qualidade de vida. Então, quem era jovem e corajoso, inteligente, crescendo e chegando aos 18 anos ia embora. E nós acolhemos essas pessoas na Afas.
SÓ SERGIPE – O senhor assumiu um cargo na gestão do prefeito João Durval Carneiro, mas ficou pouco tempo. O que aconteceu?
JOSUÉ MELLO– Foi por causa do trabalho que fizemos na Afas. Ele me convidou para ser diretor de serviço social. Fiquei menos de um mês, porque o meu serviço era justamente entregar uma passagem para o migrante ir à cidade mais próxima.
SÓ SERGIPE – Tudo ao contrário do que o senhor pensava.
JOSUÉ MELLO – Eu disse ao prefeito que isso era desumano e que eu não tinha coragem de fazer isso. Agradeci e disse a ele que ia pensar num projeto para essa população. E pensei algo inédito: montar um centro de capacitação profissional do migrante, preparando esse homem. E só pedi à prefeitura o terreno, 70 mil metros quadrados, e o dinheiro fui buscar todo fora. Aí nascia o Serviço de Integração do Migrante (SIM).
SÓ SERGIPE – E como foi o projeto?
JOSUÉ MELLO –Foi um projeto pastoral, e foi a maneira que senti que poderia ser pastor, lavando os pés, agindo para os mais necessitados, os excluídos. E o monsenhor Renato Galvão topou, assim como Jónatas Carvalho, representando a Maçonaria, e o representante do Lions etc. Hora eu era presidente do SIM, outra hora o monsenhor Galvão. Fiz o projeto e mandei para o Conselho Mundial de Igreja, em Genebra, órgão que reúne todas as igrejas protestantes do mundo. Foi aprovado e a igreja da Alemanha mandou dinheiro para construirmos oito prédios. O migrante teria que passar três meses interno. Eu dizia que preferia gastar um milhão a um tostão com a pessoa. Chegamos a formar 23 mil migrantes em 25 anos. Nós seguíamos o método do ensino de Paulo Freire em plena ditadura militar. E o fazíamos escondido. Hoje temos um colégio de referência chamado Tecla Mello, que é o nome da minha esposa.
SÓ SERGIPE – Fazendo um parêntese, como estão seus vínculos com Lagarto?
JOSUÉ MELLO- Continuo mantendo. Tenho irmãos e irmãs. Do primeiro casamento do meu pai, cuja esposa morreu de parto, ele teve 12 filhos, só se salvaram seis. Desses seis, só há um vivo com 102 anos, se chama Daniel, e mora em Aracaju. Do segundo casamento foram 11 filhos, se salvaram cinco e tem eu e mais três irmãos vivos. Duas vezes por ano vou a Lagarto e a Aracaju.
SÓ SERGIPE – O livro contando sua história, de quem foi a ideia?
JOSUÉ MELLO – A ideia foi minha. Eu tentei escrever, mas não achei bom eu falar de mim mesmo. E eu escolhi o lagartense Clauderfranklin Monteiro, porque ele vê toda a história onde nasci, como foi minha infância, faz o contexto histórico, conhece tudo aquilo ali e é mais fácil. Ele pretende em março estar com o livro pronto.
SÓ SERGIPE – O senhor foi reitor da Universidade Estadual de Feira de Santana. Como foi esse processo?
JOSUÉ MELLO – No meu primeiro ano como pastor, eu entendia que para fazer este tipo de pastorado diferente, ecumênico, voltado para as questões sociais, a igreja não suportaria isso. Sofri muita reação, perseguição, fui até cassado na igreja, que se dividiu por causa disso. E temos um outro ramo, que é a Igreja Presbiteriana Unida do Brasil, à qual eu pertenço. A Presbiteriana não adotava aproximação com a Igreja Católica, não tinha essa preocupação social.
Fui acusado pelos militares de comunista, porque quem se preocupa com o pobre é comunista. E eu tinha ideia de que ia passar por isso. Na Igreja Católica os irmãos me abraçaram, eu pregava lá. Padre nenhum sofreu pelo ecumenismo. Eu fui pregador de uma das trezenas de Santo Antônio. Eu sabia que a Igreja que eu pertencia, era muito radical.
Como o mundo vai crer num Deus que separa? Como vem um evangélico agora defender arma, defender um candidato, um presidente cujo projeto principal é armar a população? O Cristo é outro, é amor.
SÓ SERGIPE – Voltando à questão da UEFS.
JOSUÉ MELLO – Sim. Fui para a Educação. Só ganhei salário como pastor no primeiro ano. Fiz concurso para professor aqui na Bahia, me tornei professor do Colégio Estadual, do Municipal Joselito Amorim, e fui o primeiro pastor a lecionar no Colégio Santo Antônio, dos frades Capuchinhos. A Fundação Universidade Estadual de Feira de Santana proporcionou, para aqueles que quisessem ser professor, um curso de pós-graduação de 700 horas. Eu me especializei em Ciência Política e fui o primeiro professor da UEFS. Depois do período do reitor Geraldo Leite, entrou José Maria Nunes Marques e fui pró-reitor acadêmico, com dois mandatos: um como fundação e outro como universidade. Eu era pró-reitor de ensino, pesquisa e extensão. Depois disso, fiz mestrado em Educação na UFBA. Depois teve Yara Cunha como reitora, mas não foi feliz na administração e a UEFS quase fecha. Eu me candidatei a reitor, ganhei e fui de 1991 a 1995, não existia reeleição. Tive boas experiências.
SÓ SERGIPE – Quais por exemplo?
JOSUÉ MELLO – Primeiro, unir. A comunidade estava muito dividida. Houve um funcionário que me fez campanha cerrada, ele tinha mestrado em Engenharia e quando tomei posse ele foi até mim e disse que iria se afastar da universidade. Eu disse que ele não ia sair, porque eu ia precisar de cérebros para dirigir essa universidade, que estava quase fechando. Quanto a salário não podia melhorar muito, mas um pouco. Disse que ele iria coordenar todos os laboratórios de engenharia civil, que faria um estágio na Universidade São Carlos, São Paulo, com levantamento de tudo que existe nos laboratórios de lá para adquirirmos aqui. Disse que ele continuasse me criticando, pois quanto mais você me criticar mais me ajuda. A partir daí, o muro que nos separava acabou. Esse rapaz veio a ser vice-reitor e se chama Washington Moura.
Depois fui convocar a turma para avaliar a universidade, que naquela ocasião tinha 15 anos. Chamei os professores mais da esquerda, eram os que tinham pensamento. Nomeei formalmente a comissão. Isso produziu uns três livros grandes que ofereceram as coordenadas que temos hoje aí.
Outra coisa foi criar o Cuca, no prédio da Escola Normal. Precisava de dinheiro e fui ao governador Antônio Carlos Magalhães, que me ofereceu a restauração. Ele me deu arquiteto do Iphan, mas eu disse que não queria só restaurar, queria construir um prédio com várias salas e um teatro, fazer dali um centro de cultura. O projeto ficou caro.
Estava no meu terceiro ano de mandato e era meu projeto principal como reitor. Resolvi lançar mão da minha maior ousadia. Consultei intelectuais de Feira e pedi o apoio. Fui ao governador e disse a ele que entendia a situação do governo, mas estava comunicando que ia fazer a obra. Aí ele anotando alguma coisa, soltou a caneta e perguntou: ‘Fazer como?’ Eu lhe falei que nossa universidade possui um museu de arte e cada quadro vale milhões de dólares. Afirmei que ia leiloar um deles e com esse dinheiro fazer a obra. Ele se assustou e com aquele jeito dele me perguntou se eu estava maluco. Eu disse que não, que tinha o apoio da classe artística e intelectual – eu tinha conversado somente com uma pessoa. Quando eu disse isso, ele pediu calma.
Depois tratei de assuntos corriqueiros da universidade, no fim ele me levou até a porta e disse: são quatro universidades estaduais e quatro reitores, não é? Disse que sim. E falou que eu era um reitor retado e que estava no coração dele. Antonio Carlos disse que eu fosse embora e garantiu que no dia seguinte ia licitar a obra. Assim nasceu o Cuca.
SÓ SERGIPE – Finalizando, além do livro com sua biografia, quais são seus projetos para o futuro?
JOSUÉ MELLO – Estou presidindo a Academia de Educação que criamos aqui em Feira e realizamos seminários. Agora nós estamos integrando um fórum nacional de educação, reunimos as diversas academias de educação do país e constituímos uma organização nacional que é o fórum. Estou me dedicando a isso aí. Continuo presidindo o SIM. Fizemos uma parceria com a Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e lá funciona uma unidade chamada Centro de Tecnologia e Sustentabilidade, que tem oito curso de graduação reconhecidos e quatro de pós-graduação, sendo dois mestrados. Ao todo, 1.200 alunos. O desafio é que a universidade ceda esses cursos para eles constituírem a base de uma universidade federal de Feira de Santana. Acontecendo isso, nós vamos doar todo patrimônio do SIM para ser o campus desta universidade, para servir a todo o Nordeste brasileiro. Esse é um projetão e nunca teve tão fácil. Em 2022 nós divulgamos isso na periferia, imprensa e já conseguimos convencer o reitor da universidade federal.