Firmina é uma mulher no adiantado da idade que já viu muita coisa na vida, poucas coisas ela entendeu. Casou, descasou, casou de novo, ficou viúva, continua em sua jornada: mulher serena, de poucos estudos, sem arroubos, pouca coisa a impressiona.
Faz tempo que as revistas femininas, programas de TV, debates em geral, começaram a falar em ponto G, e Firmina olhou para aquele debate todo, que com suas calçolas pensou: “Ponto G é coisa de quem não tem assunto, com tanta coisa importante no mundo vão se preocupar com algo tão escondido”.
Firmina nunca se preocupou se teve ou não um orgasmo, o importante naquele tempo era se o parceiro – com quem dividia a cama, a vida – estava satisfeito. Firmina aprendeu com a mãe que tinha que agradar o companheiro, e se não estava satisfeita… procura-se outro. “O que mais tem no mundo é mosca, formiga e homem”, vivia repetindo dona Germana, a sábia mãe de Firmina.
O mundo continuou girando, e a cabeça de Firmina tranquila. Com o primeiro marido Firmina não teve filhos, com o segundo, um casal. Firmina criou os dois de maneira igual, sem distinção, estudaram em escolas públicas, já que tudo na vida de Firmina foi regrado, pesado e medido. Com a viuvez do segundo marido, e com os filhos no final da adolescência, teve que arranjar emprego para os dois para ajudarem nas despesas de casa. Firmina nunca teve carteira assinada, em todos os serviços que teve. Não sabe o que é conta bancária, todo o dinheiro que arrecada, envolve em um elástico, coloca no soutien. “Aqui é mais seguro”.
Foi vendedora de bombom no terminal de ônibus; vendeu Avon, produtos da Hermes, e de outros catálogos, que ela sempre carregava na bolsa por onde andava. Nunca foi boa vendedora, aliás, nunca foi boa em nada, sempre foi mediana no que fez, em qualquer fase da vida. Mulher simples, sem grandes sonhos, tarefeira, se era mandada, tinha que obedecer o que lhe mandavam.
Ao longo do tempo votou em todos os políticos que estavam na dianteira, na reta final da campanha. Esquerda? Direita? Até hoje Firmina sacode os braços, quando alguém diz que algo está à sua direita, ou se tem de dobrar à esquerda. Nunca associou às vertentes da política. Para ela todo político é igual.
Desde a redemocratização, quando os brasileiros puderam escolher seus dirigentes, votou em todos os candidatos que estavam na frente. Assim foi com o Fernando Collor de Mello, o “caçador de marajá”; Fernando Henrique Cardoso, “o príncipe”; Luiz Inácio Lula da Silva, “a alma mais pura do Brasil”; Dilma Rousseff, “a que não sabe o foi fazer lá”; Jair Messias Bolsonaro, “louco de pedra”.
Perguntada se a vida hoje está melhor do que antes, Firmina responde com outra pergunta, “Em que sentido?”. Para ela tudo é igual.
Firmina nunca teve Covid-19, não teve nenhum problema em tomar todas as doses da vacina; se tiver, toma outras mais, o braço está no ponto. Só agora ganhou um celular da filha, desses mais simples, não sabe nem o que é rede social. Rede? Só aquela em que se deita e dorme o sono dos justos.
Sem saber onde fica a Rússia, muito menos a Ucrânia, ela se deteve diante da TV, observando aquilo tudo. Se acomodou no surrado sofá da sala, viu um sujeito, que ela nem imagina quem seja, mostrando seu aparato bélico, e a pobre Ucrânia querendo adiar essa guerra, Firmina perguntou para a filha Roselândia: “Por que esse pessoal não para com isso de brigar por tudo?”.
Roselândia ainda tentou explicar, em vão, olhou para o lado e viu a mãe dormindo, boca aberta, ressonando. Quando acordou, Firmina não se lembrava de guerra, nem onde ficava Rússia, Ucrânia, Crimeia, Belarus, Lugansk e Donetsk, menos ainda quem é Wladimir Putin, Joe Biden, Volodymyr Zelensky, os atores de uma guerra bem longe, que suas consequências chegarão até nós, com o desarranjo na economia, alta do preço do barril do petróleo, do dólar, das comodities. Afeta a vida de todo mundo, menos a de Firmina, que continua no seu mundo próprio.
Ao acordar, se recompôs, perguntou para a filha se tinha ovos na geladeira, dera vontade de fazer um bolo de fubá para tomar com café. Levantou, lavou o rosto, abriu a geladeira, tirou os três últimos ovos, separou os ingredientes, acendeu o forno, pegou a tigela, um garfo, começou a bater a massa do bolo. Colocou o bolo no forno, pegou a vassoura, varreu a cozinha, lavou as louças do almoço que repousavam na pia. Colocou a água no papeiro, acendeu o fogo, colocou o pó do café quando a água começou a ferver. Esquentou um pouco de leite, o bolo começou a cheirar, avisando que já estava no ponto de sair do forno.
– Roselândia, vem tomar café, já está tudo pronto.
Tem horas em que o melhor é não saber o que se trata em nosso entorno: no bairro, na cidade, no estado, no mundo. Firmina segue sua caminhada sem nenhuma necessidade de informações que vêm do outro lado do mundo.
Nesta hora a ignorância é uma bênção.
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Luiz Thadeu Nunes e Silva é engenheiro agrônomo, palestrante, cronista e viajante: o sul-americano mais viajado do mundo com mobilidade reduzida, visitou 143 países em todos os continentes da terra.