sexta-feira, 20/12/2024
Foto: Saulo Villela

Quem conta um conto – Sílvio Romero e suas múltiplas identidades 

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Por Acácia Rios (*)

 

Nem tudo os mestres ensinam aos seus aprendizes,

respondeu o gato.

“A onça e o gato”,

conto popular recolhido por Sílvio Romero.

 

Volto ao encontro da rua Sílvio Romero com a avenida João Ribeiro (mencionado na minha antepenúltima crônica) e às inúmeras possibilidades narrativas que esse cruzamento engendra. Desta vez, para falar de Sílvio Romero. Este ano sua morte completa 110 anos, e não queria deixar essa data em branco na minha coluna. Mas antes vou contar uma historinha.

Filha única até os cinco anos, tive o privilégio de ter uma tia – Ana –  que era exímia contadora de histórias. Olhando para trás, vejo que algumas não acalentavam nem um pouco. Pelo contrário. Eram de terror e, mal fechava os olhos, me vinham imagens assustadoras dos seres e personagens descritos por ela: um defunto falante no meio da sala, uma mulher esganada por um gato vingativo com características humanas ou ainda uma madrasta má que enterrara vivas as enteadas. Mas também algumas fábulas; uma delas, sobre o gato e a onça, da qual me lembro com detalhes e cuja moral transcrevo na epígrafe deste texto.

Trago comigo essas histórias desde então. Dito isso, qual não foi a minha alegria quando me reencontrei com uma delas no livro Contos populares do Brasil, de Sílvio Romero (publicado pela primeira vez em 1883). Dividido em três partes, o autor organizou os contos populares pelas origens portuguesa, indígena e africana e mestiça. No prefácio, Sílvio Romero desenvolve a sua teoria de embranquecimento racial que é, no mínimo, contraditória, para usar um eufemismo.

Para além das suas defesas das teses de raça superior vigentes à época e da qual escaparam alguns poucos contemporâneos, o seu trabalho etnográfico é riquíssimo e, pode-se afirmar, inspirou e serviu de fonte para Mário de Andrade. Basta ver os Cantos populares do Brasil, músicas coletadas por Romero, dos quais o autor de Paulicéia desvairada faz uso e cujas pesquisas de campo pelo norte do Brasil foram importantes para registrar algumas de suas variantes.

Sergipano de Lagarto, Romero mudou-se muito jovem para o Rio de Janeiro. Considerado polímata (aquele que sabe muito) e autor de extensa obra, foi crítico, historiador da literatura, ensaísta, folclorista, polemista, professor do Colégio Pedro II e membro da Academia Brasileira de Letras. Admirador de Tobias Barreto (que, assim como ele, integrou a Escola do Recife, movimento intelectual da segunda metade do século XX), considerava-o poeticamente superior a Castro Alves.

Ai de quem falasse mal do seu conterrâneo e amigo. Na minha opinião, esse pode ter sido um dos motivos da briga com o crítico paraense José Veríssimo, de quem Sílvio era amigo e com quem passou a ter embates homéricos, ao ponto de reunir as suas críticas no livro Zeverissimações ineptas da crítica (1909). O título jocoso já antecipa o seu teor.

O mesmo ocorreu com Machado de Assis, que sofreu muitos ataques do escritor lagartense, como escritor e como homem. Uma verdadeira catilinária, como ressaltou Brito Broca.

Sílvio Romero  Foto: Wikipedia

Além do percurso literário, Sílvio Romero também seguiu a carreira política, o que era comum entre alguns literatos no período republicano. Foi promotor em Estância, deputado na Assembleia da província de Sergipe e deputado federal no governo de Campos Sales e nunca se afastou da militância política. Nela, como na literatura, exerceu sua forte personalidade com tudo o que ela implicava em termos de virulência, afetação intelectual e vaidade, entre outros adjetivos.

Sílvio Romero morreu no Rio de Janeiro, mas recebeu diversas homenagens aqui no Estado. Além da estátua na praça principal de Lagarto e da placa indicando a casa onde nasceu, conta também com um busto na praça Camerino e, como não podia deixar de ser, foi membro da Academia Sergipana de Letras. Nada mais justo, pois segundo Brito Broca, sempre defendeu a abertura de academias em cidades pequenas.

Minha tia Ana encarnava o narrador e Walter Benjamin, que ressaltava o intercâmbio de experiências da arte de narrar e que se opunha à informação jornalística, considerada por ele transitória e superficial. Apesar do medo que sentia, as histórias que ela contava me atraíam e eu sempre escolhia as minhas preferidas. Elas fazem parte de mim e, puxando pela memória infantil, retransmito-as aos meus sobrinhos Renato e Paulo Emílio, que amam as histórias assustadoras e, como eu, têm também as suas favoritas. Pobre de mim se eu mudar uma vírgula, pois eles já as conhecem de cor e, mesmo assim, ouvem-nas com a mesma atenção da primeira vez.

 

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A onça e o gato

A onça pediu ao gato para lhe ensinar a pular, e o gato prontamente lhe ensinou. Depois, indo juntos para a fonte beber água, fizeram uma aposta para ver quem pulava mais. Chegando à fonte encontraram lá o calango, e então disse a onça para o gato: “Compadre, vamos ver quem de um só pulo pula o camarada calango.” — “Vamos”, disse o gato. “Só você pulando adiante”, disse a onça. O gato pulou em cima do calango, a onça pulou em cima do gato. Então o gato pulou de banda e se escapou. A onça ficou desapontada e disse: “Assim, compadre gato, é que você me ensinou?! Principiou e não acabou…” O gato respondeu: “Nem tudo os mestres ensinam aos seus aprendizes”.

Contos populares do Brasil, Sílvio Romero.

 

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Sobre Acacia Rios

Acácia Rios
Acácia Rios é jornalista, escritora, professora, mestra em Memória Social e Documental pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e doutora em Ciências da Documentação pela Universidade Complutense de Madri. Leciona na Escola de Artes Valdice Teles.

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