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Razões para viver!

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“O Inferno são os outros!”

Jean Paul Sartre – filósofo francês

 

Rocelito Paulo Pinto (*)

Então eu fui à gastroenterologista, uma doutora linda, simpática, atenciosa! E antes que alguém faça o inferno, o “linda, simpática e atenciosa” se refere à pessoa da doutora como ser humano empoderado e não aos dotes físicos que ela possa possuir. Por favor, mais respeito!

Ela realizou uma consulta impecável, confesso que me senti premiado por ser um paciente dela, e de uma forma bem cativante me convenceu de que aquelas imagens horripilantes da endoscopia digestiva alta, que eu levara comigo, não eram tão horripilantes assim, e que ao cabo e ao fim de tudo, eu estaria de parabéns por estar vivo e com razões suficientes para continuar vivendo!

Mas foi exatamente aí que as coisas ficaram horripilantes, pelos menos para mim… A esta altura, eu não sabia se a médica, que continuava linda, simpática, atenciosa, queria me preservar vivo e morrendo pelas razões que a tornaram doutora, ou queria me ver morto por passar a viver de recordações que, segundo ela, seriam as razões das minhas intranquilidades…

Ela me prescreveu uma dieta rígida, uma dúzia de remédios, uma centena de exames, e uma gama extraordinária de exercícios físicos, mas me proibiu terminantemente cerveja, camarão, caranguejo, feijoada, rabada, galinha à cabidela, picanha na telha, sarapatel, ostras, pato no tucupi, cupim no bafo, buchada de bode, churrasco, manteiga, queijo coalho na brasa e até batata frita! Confesso que tudo isso eu até levei “de boa”, mas quando ela disse: cachaça nem pensar, eu pensei – não volto mais!

Sim, para que continuar vivo se não se pode aproveitar as melhores razões para viver?

Fui para casa pensando nas coisas boas que a doutora disse que eu poderia comer, e que nestes meus sessenta anos bem vividos nunca tinham sido boas para mim, até porque nunca gostei, afinal, esse negócio de salada e frango grelhado nunca me encheu os olhos…com direito à presença de cunhado.

Sabia que a doutora, além de linda, simpática e atenciosa, tinha toda razão diante das provas incontestáveis da minha indigesta endoscopia, mas ela me impôs condições mais infernais que os meus incômodos para continuar vivendo…

Cheguei em casa e o almoço já estava pronto: feijoada com caipirinha! Pensei: como o diabo atenta! E… aquele que só nos visita quando a situação não está boa… para ele!

Meu cunhado estava muito triste… Ele flagrou o enteado com uma fraga de droga. Ficou tão revoltado que deu uns “sacodes” no garoto, que chamou a polícia, que conduziu o meu cunhado, que agora precisava de dinheiro emprestado para pagar advogado em razão da acusação de agressão a um menino de dezessete anos que levou droga para casa…

E o pior, agora nem a sua companheira queria mais fritar batatas para ele, já que ela considerou mais grave os solavancos sofridos pelo menino que o fato de o garoto, na inocência, ter levado droga para o lar…

Almoçamos -e que minha Doutora não saiba disso! - enquanto eu tentava decidir entre ou custear meus exames de saúde, ou financiar a assistência jurídica para o meu cunhado…

Eu até considerei invocar a possibilidade da proteção do poder público, mas ainda assim teria que optar, diante dos fatos, por aquela que fosse mais razoável para nós: ou aguardar a que leva uma vida inteira para autorizar exames de saúde determinados pela doutora, ou esperar pela que dura uma eternidade para construir a convicção entre a culpa de um padrasto receoso e a inocência de um menino recém-ingresso no mundo das drogas…

Findo o almoço, ligamos a televisão à espera de um milagre, e uma chamada de reportagem anuncia a entrevista de um Ministro da República que defendia a causa da liberação das drogas… Olhei para o meu cunhado, que olhou para mim, e não tive alternativa: mergulhei toda a expectativa de um poder público eficiente no meu copo de caipirinha…

Tenho certeza de que, se fosse eu o enteado do meu cunhado, naquele olhar meu cunhado me fuzilaria… E tudo o que eu mais pude desejar diante daquele olhar, era que o menino fosse enteado do Ministro, mas fiquei pensando: ministros não devem ter enteados que usam drogas, assim como doutoras não devem conhecer comida que preste!

Mas tem coisa que fica ainda mais horripilante: a razão de ser do Ministro na defesa da causa das drogas era a redução da população carcerária… A da visita do meu cunhado era a defesa da liberdade em face do lar que ele perdeu… A da minha doutora era que eu ficasse mais confortável, me privando daquilo que mais me trazia conforto no seio do meu lar.

E nisto tudo fico sem saber o que é pior ou mais importante: minha saúde ou a liberdade do meu cunhado! Minha caipirinha ou a droga do enteado!

Não entendo as razões da vida: eu, com sessenta anos, aposentado, não posso beber cachaça, mas o enteado do meu cunhado, com dezessete, que não estuda nem trabalha, pode usar drogas… A Doutora não quer que eu coma, o Ministro não quer presos na cadeia, a mãe não quer que o padrasto eduque o menino…

Se fosse pensar nas melhores razões para viver, talvez fosse mais justo que eu me consultasse com o Ministro, que parece entender de drogas, e que meu cunhado fosse defendido pela Doutora, que apesar de linda, simpática e atenciosa, não conhece o valor de uma buchada de bode dourada na pimenta e azeitada com uma cerveja estupidamente gelada…

Quer saber? Que droga de endoscopia!

 

__________

(*)  Militar, filósofo, torcedor da Estrela Solitária, apaixonado pela vida e amante da liberdade, Fluminense por acidente, sergipano por opção.

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