Em 2019, o Brasil era o líder em lavagem de dinheiro, segundo um estudo do Relatório Global de Fraude & Risco da Kroll, empresa de gestão de riscos e investigações corporativas, mas também era o que mais se preocupava em combatê-la. Passados dois anos, o país segue na liderança no crime e retrocedeu no combate. Exemplos não faltam, a começar por Sergipe, quando a coordenação do Departamento de Crimes Contra a Ordem Tributária e Administração Pública (Deotap), especializada no combate à corrupção crimes do colarinho branco, foi exonerada por investigar poderosos.
No país, todos acompanharam a Operação Lava Jato e seu desmonte melancólico pelo atual governo. Deflagrada pela Polícia Federal em março de 2014, foi uma das maiores iniciativas de combate à corrupção e lavagem de dinheiro da história recente do Brasil. A Lava Jato teve 42 políticos denunciados, 21 condenados, mas somente o ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, segue na cadeia. Para o professor doutor da Universidade Tiradentes (Unit), Ronaldo Marinho, que também é delegado da Polícia Civil de Sergipe, “a Lava Jato provou que a corrupção é sistêmica, está em todos as esferas de governo”.
“É importante falar que a corrupção não pode ser atrelada a esse ou aquele partido, esse ou aquele político, porque atingiu partidos de direita, de centro e de esquerda, em todas as esferas de governo”, analisa Ronaldo. E ele tem razão. Mais recentemente, 18 delegados da Polícia Federal foram punidos porque estavam investigando pessoas próximas ao presidente da República Jair Bolsonaro.
“O problema atual é o movimento do sistema corrupto, dos criminosos de colarinho branco que desejam manter a cleptocracia no poder, mudando a jurisprudência e/ou alterando as leis para dificultar ou impedir a responsabilização dos criminosos”, destaca Ronaldo. Ele acrescenta que no país “é quase impossível você responsabilizar um criminoso de colarinho branco (corrupção, crimes financeiros e empresariais). E, quando isso acontece, a legislação que trata do processo e da execução da pena é uma verdadeira piada, recursos infinitos tornam a execução da pena um objetivo irrealizável”.
De acordo com Ronaldo, “o criminoso de colarinho branco talvez seja o mais pragmático; ele avalia os riscos e os benefícios do crime e atua de forma consciente, sabendo que os riscos são mínimos e ele ainda pode se beneficiar das brechas legislativas criadas justamente para beneficiá-lo”, completou.
Esta semana, Ronaldo Marinho conversou com o Só Sergipe. Confira.
SÓ SERGIPE – Um estudo do Relatório Global de Fraude & Risco da Kroll, de 2019, diz que o Brasil é líder mundial em lavagem de dinheiro, mas também é o que mais se preocupa em combater. Agora em 2021, na sua opinião, esse estudo ainda tem validade?
RONALDO MARINHO: Infelizmente esse quadro mudou. Atualmente o Brasil está sendo monitorado de perto pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), uma situação inédita, devido ao retrocesso no enfrentamento à corrupção e lavagem de dinheiro. O Estado brasileiro tem criado obstáculos à cooperação internacional, aprovando leis que dificultam a responsabilização dos autores, anulando processos judiciais que levam à prescrição dos crimes. Para o país fazer parte da OCDE deverá atender aos parâmetros de integridade, combate à corrupção e lavagem de dinheiro exigidos.
SÓ SERGIPE – A corrupção é um problema mundial, mas aqui no Brasil é algo que ocorre desde os primórdios da nossa história. A roubalheira começou logo depois do descobrimento; passados alguns anos, quando Dom João VI voltou para Portugal e levou na bagagem todo o dinheiro do Banco do Brasil, fundado por ele. Daí até chegar à Lava Jato, tivemos diversos crimes e até propaganda dizendo para o cidadão ‘levar vantagem em tudo’. O que acontece por aqui? Que país é esse?
RONALDO MARINHO: Na verdade, temos a sensação de que o brasileiro é leniente com a corrupção, mas isso não é verdade. Pesquisa feita pela Transparência Internacional (2016) revelou que 83% dos brasileiros acreditam que as pessoas comuns podem fazer a diferença no combate à corrupção. Foi o índice mais alto de toda a América Latina. Esse dado é importante. Os movimentos de rua de apoio às operações da Polícia Federal e do combate à corrupção demonstraram isso (2013 a 2016). Mesmo a eleição de 2018 foi um recado popular sobre o tema. O problema atual é o movimento do sistema corrupto, dos criminosos de colarinho branco, que desejam manter a cleptocracia no poder, mudando a jurisprudência e/ou alterando as leis para dificultar ou impedir a responsabilização dos criminosos.
SÓ SERGIPE – Atualmente, a pena para o crime de lavagem de dinheiro ou ocultação de bens varia de três a 10 anos de reclusão, podendo aumentar se houver reiteração desse crime. O senhor considera que essa pena é suficiente?
RONALDO MARINHO: Sempre digo que o problema no país não é a quantidade de pena, mas sua efetividade, sua aplicação. No país é quase impossível você responsabilizar um criminoso de colarinho branco (corrupção, crimes financeiros e empresariais), e, quando isso acontece, a legislação que trata do processo e da execução da pena é uma verdadeira piada, recursos infinitos que tornam a execução da pena um objetivo irrealizável. O criminoso de colarinho branco talvez seja o mais pragmático, ele avalia os riscos e os benefícios do crime e atua de forma consciente, sabendo que os riscos são mínimos. E ele ainda pode se beneficiar das brechas legislativas criadas justamente para esse fim.
SÓ SERGIPE – Quando há desvio de recursos, como ocorreu na famosa Lava Jato, os valores furtados poderiam ter salvado vidas, na medida em que fossem investidos num hospital, por exemplo. Ou melhorariam a vida das pessoas, quando investidos em educação ou moradia. Diante disso, não deveria ser crime hediondo?
RONALDO MARINHO: Concordo com você, os crimes de corrupção prejudicam o sistema econômico, o comércio, o futuro do país, impedindo que os recursos sejam investidos em educação, saúde e segurança, por exemplo, matando mais vidas e matando nosso futuro. A Lava Jato provou que a corrupção é sistêmica, está em todos as esferas de governo, o que nunca tínhamos visto era a responsabilização de grandes empresários, banqueiros e políticos no país, ela fez isso por nós, nos fez ver que é possível combater esse mal, mas precisamos ficar vigilantes, ativos e participativos. Somente no regime democrático poderemos superar esse desafio, já vimos que isso é possível, agora é trabalhar para recuperar o terreno perdido.
SÓ SERGIPE – De todas as pessoas condenadas na Operação Lava Jato, somente o ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, continua preso. Ele é uma espécie de troféu. Com todo mundo solto, não fica a sensação para a maioria da população de que no Brasil o crime compensa?
RONALDO MARINHO: Essa sensação é o reflexo da impunidade. Isso aconteceu também no Mensalão, quando as pessoas que foram condenadas pegaram penas curtas, depois tiveram suas penas extintas por decretos presidenciais e ficaram na cadeia apenas os autores periféricos, sem muita importância para o sistema, vide o que aconteceu com o publicitário Marcos Valério. Na Lava Jato o processo foi ainda mais longe, está punindo todos os que ousaram investigar os desmandos, a corrupção, o desvio de dinheiro público, porque ninguém disse que não houve desvios. Isso está provado pela recuperação de mais de 4 bilhões de reais, devolução de valores feita por investigados, sendo que somente um diretor da Petrobras devolveu mais de US$100 milhões de dólares. Imagine quanto não foi “roubado” da Petrobras, do povo brasileiro, nesse período. É importante falar que a corrupção não pode ser atrelada a esse ou aquele partido, esse ou aquele político, porque atingiu partidos de direita, de centro e de esquerda, em todas as esferas de governo.
SÓ SERGIPE – Quando estes crimes de lavagem de dinheiro envolvem políticos com mandato, o trabalho da polícia judiciária começa a trilhar num caminho pantanoso? Pergunto isso, porque colegas do senhor foram tirados bruscamente da Deotap por contrariarem os chefes políticos de plantão.
RONALDO MARINHO: Investigar lavagem de dinheiro não é uma tarefa fácil, dada a complexidade do crime que é praticado de forma profissional, por vezes com atores empresariais respeitados na sociedade, o que requer um trabalho de inteligência muito forte, fortalecimento e independência das instituições, visto que essas investigações podem levar ao centro do poder político e econômico, com sérios riscos para os profissionais envolvidos nessas investigações. Já tivemos demissões e perseguições contra delegados de polícia, auditores fiscais, promotores e procuradores que ousaram enfrentar esse tipo de crime, assim como perseguições e assassinato de reputações, como aconteceu na Lava Jato e Operação Mãos Limpas, na Itália. O método utilizado pelos corruptos para parar as investigações é muito similar, seja no Brasil, na Itália ou em outros países que convivem com esse flagelo da corrupção sistêmica.
SÓ SERGIPE – Como o senhor se sente ao ver, de forma cabal, ingerência política no trabalho na polícia judiciária. Aquilo que o senhor jurou defender quando escolheu a profissão fica sem sentido?
RONALDO MARINHO: Esse processo e desejo de interferência política e econômica sempre existirá. Mas é a força da sociedade, a cobrança pela manutenção da independência das instituições de controle, a defesa da democracia e da transparência com a coisa pública que sustenta a esperança de dias melhores. A democracia nos permite isso, mudar os detentores do poder e alterar o quadro político para criar as condições necessárias para enfrentar o problema. Temos excelentes governantes, políticos comprometidos com as pautas sociais, entre elas o combate à corrupção. Precisamos sair e participar mais ativamente da vida pública, sabendo que nosso voto e nossa voz fazem a diferença. Nossa jovem democracia precisa disso e está nesse caminho. Pesquisa Datafolha de 2020 identificou que 75% da população apoia a democracia.
SÓ SERGIPE – A revista Isto É, na edição desta semana, traz uma reportagem informando que, pelo menos, 18 delegados da Polícia Federal foram alvos de punições, perseguições políticas, porque estavam combatendo a corrupção no país. Ou seja, cumprindo o dever. Que sentimento isso lhe causa, sabendo que algo semelhante aconteceu por aqui e, num país como o Brasil, não é difícil de se repetir?
RONALDO MARINHO: Claro que um dado desses é relevante para a compreensão do fenômeno, sabemos que isso é o reflexo do trabalho sério, competente e profissional desses delegados, assim como houve transferência de agentes, peritos, auditores e outros profissionais envolvidos nessas investigações. Mas não devemos recuar, são sinais que estamos no caminho certo e devemos aprofundar as mudanças, apoiar essas pessoas que estão sofrendo por terem realizado suas funções. Para os políticos corruptos e para a elite econômica corrupta a polícia deve prender o preto, pobre e periférico, por isso o baixo investimento em investigações criminais no país. O fim das forças-tarefas é a demonstração do descompromisso com o combate à corrupção, o crime de colarinho branco.
SÓ SERGIPE – O senhor disse, numa entrevista recente, que espera-se investigações corretas e punições necessárias para que o crime de corrupção passe a ter menos frequência no Brasil. Mas diante do que se viu em Sergipe, com a crise na segurança pública diante da ingerência política, e o que lhe citei sobre seus colegas da Polícia Federal, sua afirmação não passa ser uma utopia?
RONALDO MARINHO: Entendo que não, temos os meios necessários para fazer frente a esse desafio. Estamos num processo de renovação da Polícia Civil, com a contratação de peritos (as), escrivã (ães), agentes e delegados (as) com certa regularidade. Investimentos em equipamentos de inteligência, mas sabemos que não é um processo rápido, porque ainda temos muitas dificuldades, retrocessos e sobrecarga de pequenos crimes que afetam diariamente a sociedade, impondo desafios para definir prioridades. Não temos relatos de envolvimento de delegados (as) de polícia com a corrupção sistêmica, isso é importante para mantermos a esperança de maior enfrentamento ao problema.
SÓ SERGIPE – Hoje se sabe que, mesmo presos, os criminosos comandam de dentro da cadeia suas organizações, sejam eles traficantes de drogas ou não. Ou seja, o Estado, literalmente, os protege. Como, na sua opinião, essa realidade pode ser mudada?
RONALDO MARINHO: Importante citar o sistema penitenciário. Entendo que nenhum plano eficiente de controle da criminalidade pode ter sucesso sem pensar no sistema penitenciário. Prendemos muito, mas prendemos mal. Isso daria outra entrevista. Entretanto, quando falamos dos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro, essas pessoas não estão nos presídios brasileiros, quando ficam alguns dias, sempre estão cercadas de proteção, em locais isolados e com seus direitos garantidos, com acesso a um batalhão de advogados caros e bem relacionados com as instâncias de poder. Claro que defendo que esses direitos sejam respeitados para todos (as), sem distinção.
SÓ SERGIPE – Em 2014, quando começou a Operação Lava Jato, a Secretaria de Segurança Pública de Sergipe colocava em funcionamento o Laboratório de Tecnologia Contra Lavagem de Dinheiro (LAB-LD). Que avaliação o senhor faz do LAB-LD atualmente?
RONALDO MARINHO: Não atuo de forma intensa com o Laboratório, mas lá temos uma equipe apta a atender a demanda de toda a Polícia Civil e de outros órgãos de investigações. São profissionais altamente especializados e com expertise no tema, mas que somente atuam mediante demandas, portanto cabe ao presidente da investigação requerer o apoio do Laboratório. Sempre que precisei eles nos deram todo o suporte; é uma ferramenta imprescindível nas investigações dos poderosos, porque o objetivo da lavagem de dinheiro é justamente dar uma aparência de legalidade, apagando os rastros que o ligam aos crimes antecedentes.