Por Acácia Rios (*)
Quero morrer ocupando minhas mãos.
Em uma delas, levarei o terço
que é a minha profissão de fé;
na outra, levo o pincel,
meu eterno e inseparável companheiro,
e lá de cima, eu ainda quero pintar o sete.
Rosa Faria

Um dia, a caminho da casa dos meus tios, na Rua de Santo Amaro, a curiosidade de estudante me fez transpor a porta do Museu de Arte e História Rosa Faria, o primeiro que conheceria na vida. E que contava com um acervo com uma característica bastante peculiar: todas as obras eram da sua autoria. O seu trabalho de retratar a História de Sergipe em telas, painéis, azulejos e pratos de porcelanas durou décadas, resultando em um milhar de peças.

Entrar no museu significava ser guiado pela própria artista. As inúmeras obras eram dispostas simetricamente até o teto, quase tocando umas nas outras, formando um mosaico imagético da nossa história. Apesar do acervo numeroso e do pouco espaço para armazenar as obras, Rosa Faria continuava pintando, e o forno, funcionando a todo o vapor.
Durante a visita guiada, Rosa lia trechos dos seus painéis de azulejos e explicava alguns fragmentos. Eu olhava atentamente aquela jovem senhora de postura rígida, circunspecta, que, sem desperdiçar palavras, seguia impassível na sua missão de educar pela arte. Eu era jovenzinha, mas ela não fazia distinção de idade.
Em meio à sua fala, também citava as responsabilidades que envolvia aquele trabalho, levado adiante com recursos próprios. Mais de uma vez mencionou a urgência de ter um forno maior para secar a cerâmica, que aumentava cada vez mais, deixando entrever a necessidade de apoio institucional, ciente que era do seu papel social e do legado que estava construindo.
A poeta e professora Maria Lígia Madureira Pina, em texto publicado no blog Academia Literária de Vida, em 2012, corrobora esse aspecto: “Tudo com recursos próprios. Nunca contou com qualquer ajuda, pública ou particular. Nem as visitas ao museu ela cobrava. Seu único interesse era divulgar a sua arte e vê-la reconhecida”.

A minha admiração só aumentava no decorrer dos anos. Ainda mais ao acompanhar as celebrações do dia 17 de março em frente ao seu museu, momento em que recebia professores, estudantes e autoridades e fazia discursos veementes em defesa da preservação da memória histórica. Esses atos foram incorporados às comemorações de então, tornando-se parte dos eventos oficiais.
Um exemplo da sua dedicação nos é dado mais uma vez por Maria Lígia Pina, no blogue supra-citado: “Foi ela quem sensibilizou o prefeito Wellington Paixão para recolocar a estátua de Tobias Barreto no pedestal, que tinham colocado sobre a calçada numa reforma anterior. E acompanhou todo o trabalho, até a hora da reinauguração”. Paixão governou o município no período de 1989 a 1992.
Além do seu trabalho artístico, também compôs o Hino do 4° Centenário do início da colonização em Sergipe, cuja letra reproduzo aqui. Como o leitor poderá notar, é uma verdadeira declaração de amor à terra. A música é de Leozírio Guimarães. O texto foi publicado no Jornal da Cidade em 03/01/76.
Sergipe quatrocentão
Quem no teu berço nasceu
Há de se orgulhar
de ser filho teu.
I
Há quatro séculos
Jesus mandou,
Gaspar Lourenço,
Seu embaixador
Fazer Cristão
Foi sua missão
Do grande Reino
Do seu amor!
II
Oh’ meu Sergipe
Oh’ minha terra
Meu grande mundo
Meu lindo torrão
A dar a todos
os sergipanos
Um mundo novo
Um mundo irmão!
III
Olhando a tela
Da minha terra
Sentindo o Cristo
A me proteger
Pedindo a Ele
Bênçãos divinas
No meu trabalho
No meu lazer!
IV
Com meus amigos
Com minha gente
Com quem da vida
Já se cansou
A dar semente
do amor da terra
Onde Jesus
Se hospedou!
Antes de deixar a exposição Rosa Faria e a arte de retratar Aracaju, olho suas obras mais uma vez, para gravá-las na retina. Não são imagens isoladas. Com profunda leveza, elas costuram tempo e espaço e nos fazem dialogar com uma cidade anterior a nós mesmos, dando-nos uma geografia poética e afetiva.

Memorial de Sergipe/Universidade Tiradentes
Anos depois, ao ver no acervo do Memorial de Sergipe o pequeno forno que usava, compreendi as suas palavras. Um equipamento mais acorde com o seu ritmo de trabalho teria significado, entre outras vantagens, encurtar a corrida contra o tempo na missão de abarcar a história em seu pincel.
Depois de falecer, em 1997, o museu foi fechado e o acervo passou a integrar o do Memorial. A acolhedora sala dedicada à retratista de Aracaju – Rosa Faria: o pincel do tempo – conta com inúmeras das suas porcelanas com preciosas imagens: paisagens urbanas, fatos históricos, breves perfis de vultos literários e políticos compõem a exposição permanente da instituição.
A Ponte do Imperador (1971), o Cine Theatro Rio Branco (s/d) e a Inauguração da Estátua do Dr. Fausto Cardoso (1973) e a fachada da casa de João Ribeiro, em Laranjeiras, por exemplo, são apenas alguns. Vale a pena a visita ao Memorial tanto pela diversidade temática quanto pela proposta museológica.
No que diz respeito ao acervo de Rosa Faria, é algo como estar num museu dentro de outro museu.

A artista
Rosa Faria (1917-1997) nasceu em Capela e aos 29 mudou-se para Aracaju, onde aprofundou seus estudos nas artes plásticas. Formada pela Escola Normal de Capela, foi professora, jornalista, escritora, taquígrafa, telegrafista e artista plástica. Especializava-se e atualizava-se constantemente. Num curso que teve lugar no Rio de Janeiro, foi aluna de Dom Hélder Câmara, do crítico literário Alceu Amoroso Lima e do matemático e escritor Malba Tahan (pseudônimo de Júlio César de Melo e Souza).
Pintou em telas, azulejos e porcelanato e suas pinturas refletiam paisagens de Aracaju como praças, ruas, casas, igrejas, bondes, festas populares, a maioria feita a partir de fotografias antigas. O acervo cresceu tanto que em 1968 criou a sua própria galeria, transformada no mesmo ano no Museu de Arte e História Rosa Faria.
