Literatura&Lugares

São Cristóvão – Poética de uma cidade histórica 

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Por Acácia Rios (*)

 

Não havia nada além dela ali, 

parada na solidão daquela praça, 

ouvindo o sibilar do vento por entre os 

galhos das árvores. 

Onde estavam os ruídos das festas? 

Onde estavam as estrelas? 

E as milhares de pessoas? E o Fasc?”

César Ribeiro, Fantástico sergipano 

São Cristóvão, a quarta cidade mais antiga do país, está ali, tão somente a 24 quilômetros de Aracaju. “É perto demais”, expressamos quase ao mesmo tempo Valéria e eu, enquanto tomávamos um expresso no Café São Francisco e comentávamos o luxo de acessar tão facilmente aquele portal para o passado. Apesar da proximidade, não é todo dia que vamos a São Cristóvão e quase nos esquecemos da sua existência e força histórica e poética.  

Os bricelets

Continuamos, sem pressa, contemplando a praça, que foi transformada em Patrimônio da Humanidade pela UNESCO em 2010. Coincidentemente, naquele momento eu visitava a cidade com outra amiga, Silvinha. Estávamos de férias e a ideia era fazer turismo em nosso estado, ainda que isso significasse adicionar a esse tour apenas um par de lugares, incluindo Laranjeiras.

E lá se vão 15 anos do tombamento. De lá pra cá, São Cristóvão – a nossa cidade mãe – mudou em vários aspectos, mas as tradições continuam, felizmente. Fomos em busca do que enche os nossos olhos: os bricelets (biscoito cuja receita foi trazida pelas freiras beneditinas há dois séculos e que já é patrimônio imaterial de Sergipe), a queijada, a padaria colonial, o artesanato. Descobrimos que a cidade, apesar de pequena, já não pode mais ser percorrida em um dia. Os aspectos históricos, culturais e artísticos se somam à oferta gastronômica e à boemia, e não queremos deixar nada por explorar. 

Para além do cinema e da fotografia, a plasticidade do conjunto arquitetônico serve também à literatura. No conto ‘Andrômeda’, que compõe o livro Fantástico sergipano (a sair em março próximo pela Editora Alarde), o autor César Ribeiro leva a personagem Alana ao tradicional Festival de Arte de São Cristóvão (FASC) e, com ela, passeamos pelas ruas históricas. A atmosfera barroca da cidade é ao mesmo tempo cenário e pretexto para o escritor trabalhar o gênero fantástico e as dimensões temporais que envolvem a personagem.

“Seus amigos não estavam mais lá. Sequer havia a Igreja Matriz, embora outra se avolumasse ao redor. (…) Olhando em volta, [ela] encontrou-se sem muita dificuldade. Conhecia bem São Cristóvão. Igreja da Ordem Terceira do Carmo, mais precisamente em frente ao Museu dos Ex-votos.” Com a personagem de César, andamos vertiginosamente pelo centro histórico. Dinâmica, a narrativa se passa enquanto a personagem percorre as ruas até chegar ao palco principal, onde se encontraria com seus amigos. Porém, durante o trajeto, vários acontecimentos retardam esse propósito.  

Mas não é só isso. No texto, podemos encontrar elementos simbólicos, como a cachaça Pisa Macio, por exemplo, que já é uma marca registrada da cidade. O narrador antecipa para o leitor desavisado a informação sobre a bebida. “Em 1985, Seu João começara a fabricação da cachaça artesanal apenas por diversão, mas logo sentira o [seu] potencial.” 

Essa informação é respaldada pela personagem Alana, quando afirma: “FASC não é FASC sem um bom Pisa Macio”. Não à toa, a bebida se tornou recentemente patrimônio imaterial de Sergipe.

Ao inserir a cachaça no universo ficcional, César a eterniza, assim como fez Guimarães Rosa com a Januária, procedente da cidade mineira de mesmo nome e bastante apreciada pelos jagunços Riobaldo e Diadorim em Grande Sertão Veredas. “Tudo em mais paz, me ofereceram: bebi da januária azulosa ― um gole me foi: cachaça muito nomeada. Aquela noite, dormi conseguintemente.”, conta Riobaldo.

Gostaria de voltar aqui ao livro États de Sergipe et Alagoas, do autor francês Paul Walle (publicado em 1912), objeto da minha crônica “Aracaju no começo do século 20 vista por um cronista francês”. Em sua obra, Walle refere-se a São Cristóvão, mas infelizmente dedica-lhe umas poucas linhas, limitando-se aos aspectos econômicos e estruturais. 

Praça São Francisco

Apesar disso, vale a pena o registro: “São Cristóvão, situada na margem esquerda do rio Vaza Barris ou Irapiranga, é uma pequena cidade comercial; ela se desenvolve rapidamente em razão da sua excelente localização, mas as vias de comunicação ainda não se comparam às das outras cidades”. (Tradução nossa). O viajante francês também menciona os engenhos de açúcar, que somavam 52 em todo o estado. Dos que havia em São Cristóvão à época, hoje restam duas capelas tombadas, porém, não muito bem preservadas. 

Deixamos a praça São Francisco com seus moradores sentados nas calçadas, cachorros deitados no passeio, turistas e expressiva movimentação nos museus. Dirigimo-nos a Aracaju levando no alforje bricelets, queijadinhas, pães, bolos e o calor das pessoas com quem interagimos, com a promessa de voltarmos em breve a essa cidade tão acolhedora, também chamada mãe.

Revisão: Joara Carvalho
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Acacia Rios

Acácia Rios é jornalista, escritora, professora, mestra em Memória Social e Documental pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e doutora em Ciências da Documentação pela Universidade Complutense de Madri. Leciona na Escola de Artes Valdice Teles.

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