Se comes, tu bebes

Sob as bênçãos de Éolo — Um verdadeiro clássico da Literatura em Sergipe: “Velas Pandas”

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Por Léo Mittaraquis (*)

 

“O amor é uma parcela essencial de nossa existência, e, portanto, deve ser buscado e valorizado de maneira global. Adicionalmente, a crescente falta de consciência em tomo dos escritos dos prístinos filósofos deve ser responsabilizada pela atitude negligente das pessoas de hoje em dia, no que diz respeito aos reais valores inerentes à natureza humana”

Marcos Almeida

 

Qual o sentido, qual o significado de ainda considerarmos importante ler e ver, enfim, cultivar as produções artísticas e filosóficas clássicas na cotidiana vida hodierna?

Esse questionamento não é originalmente meu, sob nenhuma hipótese. Contudo irmano-me aos que se deixam, pelo menos por alguns momentos, levar ao sabor das correntes do pensamento que consideram os pontos relacionados, e que devem ser discutidos e examinados.

O médico, latinista, pesquisador, enófilo e escritor Marcos Almeida ocupa, sem dúvidas, lugar de destaque na exígua comunidade constituída por mentes brilhantes, as quais buscam responder, com fundamento, às interrogativas primeiras linhas deste modesto artigo.

“Velas Pandas” foi publicado em 2005. Quase vinte anos depois mantém a vetusta validade. Entre as Letras Sergipanas, tornou-se um clássico. E estou convicto de que Ítalo Calvino o aprovaria.

Minha leitura é tardia, admito. Mas nutro uma superstição bem clássica: tudo tem seu tempo. Não tivesse lido o que li, refletido sobre o que refleti, ao longo dos anos, certamente não teria condições intelectuais (não que sejam essa Coca-Cola toda) para ler a obra e apreender alguma coisa, por mínima que seja, quanto ao seu significado.

O que dizer a mais sobre o autor, Marcos Almeida, este que transita pela Via Appia Antica que vai de Horácio, passando por Erasmo de Roterdã até Shakespeare? E tudo isso com propriedade que logra intimidar o mais arguto dos exegetas!

Estamos tratando de um estudioso e escritor que lê diretamente as fontes sem ter de se submeter ao traiçoeiro exercício de tradução levado a efeito por outrem. Almeida detém a distintiva capacidade de entender o idioma no qual imortais registraram seus sistemas filosóficos, seus poemas, suas crônicas, seus relatos históricos, suas tragédias e comédias.

Munido de largo e profundo conteúdo teórico e estético, o autor de “Velas Pandas” sabe valer-se muito bem dos bons ventos. Generoso, inclui o leitor na tripulação, porém mantém mão segura ao leme, cartografando as águas da História, da Literatura, das Belas-Artes, da Filosofia, da Música, da Mitologia, compreendendo bem a vastidão deste oceano que é o Pensamento Clássico.

Sua bússola, seu astrolábio, sua linha de sonda? A cultivada Razão, a elevada Gnose.

O índice da obra diz mais do que apenas funcionar como uma lista pela qual o leitor correrá o dedo. Eu diria que é um índice conceitual, e que adverte sobre o que virá dali em diante.

Então, vejamos, dispondo, aqui na ordem tal qual apresentada no livro: “Prudência: Uma Virtude Negligenciada; Roma X Cartago: O Vencedor leva tudo; Roma e os mistérios Dionisíacos;  Erasmo de Roterdã : loucura ou insensatez; Ovídio, Shakespeare e um caso de amor em comum; Algumas palavras sobre o amor (descuidadamente rabiscadas).

Sei que não é de bom tom, vale dizer, não estaria a obedecer a etiqueta compatível com o contexto, se danasse, aqui, a destrinchar cada capítulo.

Estaria longe do pouco de paciência dos contados leitores.

Sinceramente, nem sei se teria capacidade para tanto. Portanto, selecionei três capítulos, no intuito de dar uma ideia geral da obra. Caso o leitor se interesse, adquirirá o livro. Vamos lá!

Em “Prudência: Uma Virtude Negligenciada”, Marcos Almeida diz, de imediato, a que veio. Hoje em dia, não será qualquer um que escapará ao insosso e seboso palavreado da autoajuda (Brrrrr!). Mas o autor que motivou este artigo não é um qualquer. Ele mesmo esclarece que: “Uma vez que é impossível abordar toda a filosofia em poucas palavras, optei por exarar ilações acerca da prudência. Essa virtude através da qual proporcionamos equilíbrio à natureza humana. Horácio (65 -8 a.C.), laureado poeta dos tempos de Virgílio, Mecenas e do imperador Otávio Augusto, certa vez escreveu: “est modus in rebus’ (Sermones I, 106). A frase posteriormente se transformou em uma máxima, que veio a ser um paradigma da temperança. Embora se possa traduzi-la de diversas maneiras, eis a minha proposição: há uma justa medida em todas as coisas. Fica evidente, portanto, que se trata de uma exaltação à manutenção do equilíbrio face às vicissitudes. Realizações, desejos, e – por que não dizer? – vícios humanos. Faz-se ali, enfim, uma celebração das excelências do valor da prudência, e é justamente sobre essa virtude tão importante, que faremos breve divagação”.

Pois bem, que o incauto e seduzido leitor, eis-me assim, não caia nesta: a “breve divagação”, proposta por Marcos Almeida, se configura num verdadeiro tratado. Independentemente da extensão do escrito. Com parte do capítulo tendo como pano de fundo as “Guerras Púnicas”, o escritor, além dos grandes nomes já citados acima, recorrerá a André Comte-Sponville, Aristóteles, Sêneca, Boécio, Isidoro de Sevilha e o poeta romano Pérsio. E nenhum é incluído de forma gratuita. As informações, as explicações e as justificativas do autor funcionam à guisa de firmes arcabouços.

Em “Roma e os mistérios Dionisíacos”, o culto a Dionísio, na Grécia, e sua extensão com outras denominações, no Império Romano, Marcos Almeida demonstra ainda que, com toda certeza, não seja um adepto aos ritos orgiásticos (no sentido compreendido na Antiguidade Clássica), é indubitavelmente um escritor iniciado. Ele relata, mas, também, emite juízos provenientes da percepção pessoal que tem diante dos fatos que narra: “Mas que ninguém se iluda: as bacanais eram no princípio um ritual essencialmente religioso, noturno e secreto. Veja o que o coro informa bem no começo de ‘As Bacantes’: “aquele que, para a alegria de Baco, foi iniciado nos seus mistérios celestiais e leva uma vida de devoção unindo o seu coração e alma em festejos báquicos nas colinas, purifica a alma de todo o pecado”.

A conclusão desse capítulo é elegante e pedagógica. Almeida preocupa-se em reiterar que tentou, ao máximo, tornar os textos “originais” reproduzidos o mais palatável aos leitores comuns,  entre os quais me incluo, sem o lastro (na verdade, nem a metade deste) que o escritor possui. Disposto a exercitar a honestidade intelectual, o autor esclarece que: “Nosso objetivo não foi escrever uma apologia daqueles prístinos rituais da era pré-cristã, nem também um libelo de ataque fervoroso à concupiscência Diferente de tudo isso, esse ensaio visa lembrar-nos quem fomos, e desvendar os atavismos que nem sempre ousamos revelar, e enfatizar o progresso social e ético que realizamos através dos tempos”.

E, apesar de todos os capítulos de “Velas Pandas” primarem pela qualidade em forma e conteúdo, o outro capítulo, nesta sequência que estabeleci, selecionado por mim, intitulado “Ovídio, Shakespeare e um caso de amor em comum”, tornou-se o meu preferido.

Nele, Marcos Almeida, traduzindo diretamente do latim, versos do prolífico poeta romano, contidos em “Metamorfoses”, cuja escrita influenciou (segundo, também, o professor de história antiga, pesquisador e latinista indiano Nasib Singh Gill) Chaucer, Shakespeare, Dante e Milton.

Almeida, ainda que ele mesmo previna ser mais um exercício de acurácia, estabelece com elegância, precisão, legitimidade, paralelos entre os versos compostos por Ovídio, em “Metamorfoses”, dedicados a Píramo e Tisbe, sobre sua história, amantes envolvidos por um destino cruel, e a tragédia shakespeariana “Romeu e Julieta”. As convergências são notáveis. O capítulo é abundante em informações. Fica claro que, fosse da disposição e vontade do autor, o tema redundaria em uma obra tão somente dedicada ao tema.

Marcos Almeida, como os melhores entre os intelectuais que detêm, de fato, denso lastro clássico, é um sedutor, e sabe muito bem disso. Com sagacidade, conduz o leitor por um outro caminho que não o da superficialidade e das soluções fáceis. Contudo, não complica gratuitamente, de forma pedante, seus argumentos a favor da muito provável paridade. Informa e explica. Indica o “quando”, o “como” e o “onde” ao leitor. Abre-lhe a vista diante da trilha das pedras. Comprovo isso a partir do seguinte trecho: (…) “em Sonho de Uma Noite de Verão, Shakespeare apresenta uma “peça dentro da peça, que é justamente a lenda de Píramo e Tisbe! Tendo sido escrita por volta de 1595 (no mesmo ano de Romeu e Julieta), isso dirime, portanto, qualquer dúvida quanto ao fato do bardo inglês ter conhecido em profundidade os versos de Ovídio. Há, ainda hoje em dia, certa polêmica em torno do nível de entendimento em latim de Shakespeare, e se ele teria adquirido habilidade o bastante para ler confortavelmente as “Metamorfoses” de Ovídio no original, e não em inglês. Afinal, poemas do cancioneiro francês retratando os lendários amantes babilônicos eram por demais conhecidos na época. O certo é que o autor de Romeu e Julieta fazia eventualmente uso da língua latina, e dos temas apresentados nos versos de Ovídio”.

Do primeiro ao último capítulo está presente um fator comum, creio eu, a todos os estágios da Civilização, a saber: o amor.

Seja o amor ao poder, aos deuses, a um homem por uma mulher, a uma mulher por um homem; seja pela modéstia, ou amor pela filosofia clássica e pelas viagens, durante as quais é possível meditar, como no caso de Erasmo de Roterdã.

Porém, com cuidado similar, não obstante muito abaixo, qualitativa e estrategicamente (diria, até mesmo, espúrio) do cultivado pelo gênio holandês, previno aos poucos legentes que é tão somente a minha reles opinião. Pois concluí a leitura de “Velas Pandas” com a depressiva certeza de que não passo de analfabeto funcional e emulador das próprias vergonhosas cincadas.

Não sendo dado, outrossim, a reinventar a roda, decidi, como soe acontecer, afogar minhas cognitivas mágoas mediante duas seguidas garrafas de um maravilhoso Vinho Occhio Nero Chianti Superiore D.O.C.G.

Mas continuo sem esperanças. A História não me absolverá.

Santé!

 

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Leo Mittaraquis

Léo Mittaraquis é graduado em Filosofia, crítico literário, mestre em Educação. Mantém o Projeto "Se Comes, Tu Bebes". Instagram: @leo.mittaraquis

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