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Sobre a Alice e sobre os Dias em Daniela Delias

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“(…) não vê que ela acorda meus mortos

quando entre um rio e outro

desova-me viva”

Do poema  A PEDRA, de Daniela Delias.

 

Germano Xavier (*)

A gente sabe que o poeta é uma deformidade. A Claudia Roquette-Pinto já nos avisou sobre isto, certa vez. Fernando Pessoa nos consagrou o dom de fingir, escrevendo sob diversas personas. Vários outros poetas já nos provaram que esta afirmação é verdadeira ou por demais possível. Somos tantos, outros, múltiplos, diversos, quandos e quantos, por isso somos o que somos: poetas. O sólido que se desmancha no ar, na água, no fogo, ao vento… o sólido que, na poesia, é algo muito líquido. A linguagem, por vezes, toma até a “forma” de um gás e simplesmente invade os espaços vazios de quem lê um livro de poemas, com arte, puro. Mas esta dada pluralidade do poeta é, na verdade, um caminho que é reflexo de muito labor e de muita astúcia.

É de se suspeitar que o poeta só é multiforme se se tenta sê-lo. Daniela Delias, natural de Pelotas-RS, é um bom exemplo deste movimento de variação de formas poéticas, e de formatações humanas, imprescindível para o fazer literário em tempos também tão (des)personalizados. A cada livro novo lançado, mesmo muito sutilmente, reinventa-se a poeta na professora e na psicóloga Daniela Delias. Ela, mulher de olhares necessários, acaba se transformando na poesia que a continua enquanto artesã de dúvidas e sentidos insondáveis. Em seu último livro, Delias finge ser Alice, quando na verdade Alice finge não ser Delias. Um verdadeiro embate que, inteligentemente, sempre a renova e sempre a renovará.

Daniela Delias, escritora

Conheço o BONECA RUSSA EM CASA DE SILÊNCIOS e o NUNCA ESTIVEMOS EM ÍTACA, ambos publicados pela Editora Patuá. Delias se desmanchou para fazer a travessia do primeiro para o segundo livro, assim imagino. Quem leu estas duas obras, sabe. Ela era uma, tornou-se duas, sem deixar de ser quem se era. E agora, com o lançamento do seu ALICE E OS DIAS (Editora Concha, 2019), Delias já é três, tornada. Delias é outra, mas os seus caraterísticos versos curtos e livres foram mantidos – para o nosso deleite. Mas nem tudo pode ser analisado a partir de sua respectiva forma. Fingindo no dito, a poeta parece escolher ser o contraponto entre a solidez da palavra escrita e a cronicidade do que porventura flui, intermitentemente. Um fenômeno, outros movimentos. Aqui está o campo da memória, o paraíso do desconhecimento, a visão dos medos e o nome dos assombros: o não-existir, o existir e o instante.

ALICE E OS DIAS, de 72 páginas, está dividido em cinco partes: 1: OS OLHOS; 2: A PELE; 3: A LÍNGUA; 4: O PASSO; e 5: AS HORAS. Numa análise muito pessoal, e apesar deste caprichado ALICE E OS DIAS nos sugerir uma outra leitura de linguagem e também de autodescoberta, algumas linhas de voz que sempre estiveram presentes nos textos escritos por Delias permanecem vívidos e por demais explicitados nos poemas do livro. Alguém pode perguntar: E isso é ruim, pode ser ruim? Não, definitivamente não. Neste caso, não. Um dos traços de maior destaque da poesia de Daniela Delias é o trato suave que se dá às forças de desertificação da vida. Isso, definitivamente, é parte de sua verve.

Agora pegue o livro. Vamos juntos. Ali, onde nunca pode ser o que é para acontecer, rio de atravessar sem asas a ideia do Amor, tão fácil durante a noite, quando quase nada consegue ser escondido da memória. Ali é onde a rosa se avermelha nas reminiscências e explora seus segredos de fogo. OS OLHOS são os nossos próprios escombros. Os olhos nos espatifam. Peça o tempo que quiser, Alice. Tudo se demora, sempre. Mas nem sempre Alice sabe esperar. Por isso Alice aprendeu a chorar. E foi assim que descobriu que A PELE que importa é a do coração. Devota em aforas, protegeu os adentramentos. Tudo lhe chama à ferida das partidas: essas fomes. Para entrecortar o couro que pulsa sob a válvula dos Dias, A LÍNGUA faz de seu sentido a lâmina, a seta que se move por sobre os seixos da alma e do desejo, como pedra-viva.

Cantaremos, também, a queda.

Depois do desfiladeiro, de conhecermos o abismo que o Amor guarda, faz-se necessário O PASSO. Entre as cordas, Alice perde seus Dias. Perde para ganhar. Perde para reler possibilidades. Para se destrancar. Para sair de um novelo. A linha se une à agulha e com ela resolve viver de atravessar. Toda agulha é nômade. Faz casa onde. Faz casa quando. Faz casa e é percurso. AS HORAS são postas em caixinhas para se organizar o passo, para orientar a língua, para acobertar a pele, para endereçar os olhos. Agora saia dessa armadilha. Feche o livro. Fica o estranhamento nítido e pouco caro aos livros que nos propõem e que movem algo, seja um indício a mais de conhecimento a respeito de si mesmo ou da própria literatura. Fica o desfio. A agulha, presente entre os dedos, sem o devido fio para coser. Costuramos a impossibilidade dos silêncios e a beleza do porto criado, mesmo aquele irreal.

Por fim, estamos. Estamos, apenas. E não estamos.

Germano Viana Xavier é mestre em Letras e jornalista profissional (DRT BA 3647). Desenvolve estudos e pesquisas sobre Literatura e Direitos Humanos – Comunicação e Cultura – Literatura e Letramentos – Língua Portuguesa – Linguística – Cinema – Educação e Educomunicação. Idealizador/Coordenador Geral do Jornal de Literatura e Arte O EQUADOR DAS COISAS (ISSN 2357 8025), periódico fundado em março de 2012 e que circula no Brasil, Portugal, Estados Unidos e Irlanda. Escreve desde 2007 o blog O EQUADOR DAS COISAS, cujo arquivo conta hoje com aproximadamente 2.000 textos de sua autoria. Em 2016, seu livro de contos SOMBRAS ADENTRO foi finalista do IV Prêmio Pernambuco de Literatura. Possui publicações em livros, jornais e revistas literárias diversas. Baiano desterrado, natural da Chapada Diamantina, tem 35 anos e atualmente habita o agreste meridional pernambucano. Canal no YouTube: www.youtube.com/oequadordascoisas

** Esse texto é de responsabilidade exclusiva do autor.  Não reflete, necessariamente, a opinião do Só Sergipe.

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Germano Viana Xavier

(*) Nasceu em Iraquara, Chapada Diamantina-Bahia, em 1984. É jornalista pela UNEB e mestre em Letras pela UPE. Publicou o livro Clube de Carteado (Franciscana, 2006). Seu livro de contos intitulado Sombras Adentro (ainda não publicado) foi finalista do IV Prêmio Pernambuco de Literatura (2016). Em 2021, publicou o livro O Homem Encurralado (Penalux); e em 2022 , Esplanada do Tempo, que compreende a segunda parte da Trilogia do Centauro. Escreve para encontrar o equador de todas as coisas.

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