Quando li Casa das Máquinas, livro de estreia de Alexandre Guarnieri, eu já havia dito/escrito que estava diante de um conjunto de petardo-poemas diferenciado no rol do que já havia lido até então. O livro era/é uma investigação poética sobre a maquinaria do mundo, “com ou sem seus parafusos-fusos que apertam e afrouxam os nossos eixos de homem-humanidade, fator que pode ou não combustionar o rumo de todas as coisas. Poemas-válvula, poemas-rebite, poemas-cilindro, poemas-lâmpada, mecanophrenya generalizada…”
O singular livro da capa preta agora cede espaço no território-criador de Guarnieri para outro rebento-solar: seu segundo livro, intitulado de Corpo de Festim. Livro da capa verde, com Houdini acorrentado, esboço-simulação de uma criação para a larga estrada da humanidade asfaltada através dos invólucros perfeitos: os corpos das coisas e até mesmo o corpo do próprio corpo: a ideia da possibilidade do banquete particular sempre disponível.
Aqui-agora neste, Guarnieri não remedeia nada de nossos males, não escancara aflições, não mais nos previne dos cancros maiores de nossas amarguras; melhor, explica a pane da vida desde o átomo primordial das ausências até a supernova celular das vistas opacas. E explica o passo-a-passo de nossos passos sombreando, com tortuosos verbos, como tem de ser o mistério em essência.
O revisto caos com câncer da atualidade-homem é, pré-leitura-pós, constantemente relembrado em todos – ou quase todos – os seus filtros invisíveis, já que o plasma medular da vida está agora embutido em todas as veias de palavra-vãos utilizadas pelo poeta-imagético/sensorial carioca. Assim, suspeitaremos durante todo o livro de uma porção um tanto mais espessa acerca de nossa origem animal-animalesca, sem deixar de lado a nossa porção-pensamento/sentimento.
De tal maneira forte a substância do livro que o caminho dos sentido-significados é sufocado pelo senso de arrependimento, ou ao menos de angústia por termos nascido e sermos nascentes, também. A vida se torna um desacerto dentro da grande-poesia de Corpo de Festim e o erro, um elemento elegantemente elogiado e extremamente funcional.
Aí está, novamente: o componente-marco da poética de Guarnieri, tendo em vista seus dois livros primeiros, é talvez um olhar uníssono sobre o enredo de nossos dias. O poeta parece atravessar a rua, no meio do tráfego violento, para nos dizer das coisas que existem dos outros lados, nas outras margens de nós mesmos. Do outro lado, repito, uma sempre-possibilidade. O corpo: uma casa, uma máquina, uma fonte eterna de tudo, mesmo quando alquebrado, sem vida ou morno.
Guarnieri se prostra diante do mundo doente para fazer intervenções pontuais: opera a carne humana, faz corte na carne anímica, elabora sucção da carne terrena, mete-se a reter os líquidos que extravasaram durante os noturnos tempos sem aurora, faz a cirurgia que entreabre a malha do tecido-pele, espeta a bolha e faz de conta que é o fotógrafo da explosão ao mesmo tempo em que inaugura qualquer espécie de pulso. Corpo de Festim é um livro de poemas escritos com o auxílio de um estetoscópio. Guarnieri, antes de fazer o papel de um médico do coração dos corpos do mundo, diagnostica os módulo-nódulos do ócio e de nossas bruscas des-frenagens cotidianas.
Afinal, o que poderíamos ser se tivéssemos feito tudo de outra maneira? O que ainda dá para ser se escolhermos mudar a rota? Não há um resultado definido ao final: nem a morte fica anunciada sob a maca que carregamos sem saber. Há sim, um peso. Um peso por sermos o centro dos movimentos de Nada-Tudo, um peso por pensarmos que somos. Tudo, como em Casa das Máquinas, permanece alterado no meio do caminho, com numa experiência. Guarnieri, não obstante suas denotativas evoluções, segue a escrever não livros com poesia, mas livros que despoetizam o que é elemento-impostor, inverdade. Para ele e seu Corpo de Festim, o que importa é o avesso dos lados retos, o irresolvido dos absolutismos, a eletricidade nos nervos atingidos e suas prováveis reações sinestésico-inomináveis.
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