“A ovelha não bale quando é morta; revira os olhos.”
BORGES, Jorge Luís; GUERRERO, Margarita. O “Martin Fierro”. Porto Alegre: L&PM, 2005.
Em parceria com Margarita Guerrero, o escritor Jorge Luís Borges escreveu o seu parecer crítico acerca da obra Martín Fierro, de José Hernández. Num primeiro momento, os autores supracitados investem em um olhar sobre a dita poesia gauchesca, que para eles tanto reflete a vida dos gaúchos quanto escancara a existência de muitos “homens da cidade” identificados com os hábitos e com a linguagem dos pampas. Este laço está descrito na presença de inúmeras batalhas e guerras regionais, que colocaram lado a lado homens citadinos e homens da campanha, porventura nos papéis de aliados ou de inimigos. E não sendo a arte coisa vã, uma nova forma de sonho se deu nas tintas de Hernández, haja posto.
Passeando por diversas fontes que analisaram, de uma ou outra maneira, tal obra e tal personagem, Borges e Margarita sugerem que o mito de Hernández fora “criado” num tempo anterior por Lussich, mas que o próprio Martín Fierro também o ajudou a se tornar no que é/foi desde a sua publicação. Cabe aqui salientar que José Hernández foi um homem sem grandes achaques, com atributos e convicções aparentemente normais para um escritor territorialmente instalado em tais paragens espaço-temporais, nascido a 10 de novembro de 1834 no distrito de San Martín.
Borges e Margarita “retiram” a pecha de caracterização épica dada por muitos ao livro de Hernández, apesar da obra se aproximar bastante das formalidades de uma epopeia. O personagem Martín Fierro é um gaúcho bravio, que é levado para os fortins das fronteiras e por lá passa três sofridos anos. Quando regressa, aturdido e revoltado por motivos até justificáveis, percebe que perdeu a mulher para outro homem e que seus filhos se perderam pelas vastidões mundanas. Fierro, daí em diante, transforma-se da água para o vinho e se revela um touro-homem quase que indomável. A sociedade, então, logo o rotula de marginal, de delinquente.
Os críticos pontuam, também, a existência do sobrenatural na obra de José Hernández, e acrescentam ainda que é por esse e outros fatores que Martín Fierro faz parte da literatura tida como duradoura, que é capaz de vencer o tempo a todo custo. O personagem se atira num frenesi tresloucado, misto de violência e vingança, e termina por escancarar a besta, a fera, a fúria humana. Sobra, pois, até para a figura do índio, colocado em postura de malfeitor dentro do texto. As coisas do coração, o sentimento, a paixão, por sua vez, são colocadas numa dimensão de escanteamento no trotar dos versos de José Hernández.
Martin Fierro é tido por muitos, intelectuais ou não, literatos ou não, como o livro máximo da Argentina, o livro que resume a figura emblemática do gaúcho ao pé da letra, o livro de um povo do sul. Parece ser o que Dom Quixote é para os espanhóis e o que a Chanson de Roland se tornou para os franceses, ou o que a Ilíada é para os gregos. Decerto que se transformou num exemplar privilegiado do cânone local. Para Borges e Margarita, mesmo com ressalvas várias, Martín Fierro é talvez o único livro que pode ser apontado como tal. Um poema-romance, épico, que exige perfeição das personagens, mas que também sabe conviver com e potencializar suas imperfeições. O personagem Martín Fierro, assaz-assim, será sempre uma entidade contraditória, pois muito além das ações que cometeu em sua jornada está a sua ética e a sua estética da coragem, que, muitas das vezes, nem pensa em pedir perdão.
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(*) Germano Xavier nasceu em Iraquara, Chapada Diamantina-Bahia, em 1984. É jornalista pela UNEB e mestre em Letras pela UPE. Publicou o livro Clube de Carteado (Franciscana, 2006). Seu livro de contos intitulado Sombras Adentro (ainda não publicado) foi finalista do IV Prêmio Pernambuco de Literatura (2016). Em 2021, publicou o livro O Homem Encurralado (Penalux); e em 2022 , Esplanada do Tempo, que compreende a segunda parte da Trilogia do Centauro. Escreve para encontrar o equador de todas as coisas.