quinta-feira, 05/09/2024
Sílvio Santos morreu aos 93 anos Foto: Reprodução/Instagram

SS fará falta mesmo?

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Por Luciano Correia (*)

 

Os ainda vivos e muito vivos dizem que não se deve falar mal dos mortos. Eu não estava presente na hora desse acerto, de modo que nunca me identifiquei muito com essa “ética” para com os que foram desta para uma pior, principalmente com os que já eram piores do lado de cá. Nem por isso eu fui mexer na paz e na solidão dos túmulos, não por medo de briga ou assombração, mas pela simples perda de tempo que resulta comprar algumas dessas brigas.

Quem digitar meu nome no YouTube vai encontrar muitas entrevistas, programas de TV antigos e, logo no começo, uma fala de uma figura da política já fora de circulação. Trata-se de uma entrevista que a bocuda deu em uma emissora local, logo inserida no portal da empresa, pela natureza sensacionalista de suas vociferações, evidente logo na manchete: “Luciano Correia é mentiroso”.

A verdade por trás dessa impostura não é nem de longe mencionada pelo portal nem pela verborrágica acusadora. Na verdade, eu é que acusara a dita cuja pela associação, senão nas coisas práticas e materiais, mas pelo menos em ideias e atitudes com determinado “produtor” cultural. Me referia a um produtor sem obra, de uma cadeia da cultura local, já viciado em receber dinheiros públicos sem nunca ter feito a necessária contrapartida. E isso é crime, aqui e em qualquer lugar.

Num encontro com a socialista morena, alertei-a do perigo em misturar-se com gente assim, já que ela fazia do seu trabalho uma trincheira em defesa de um segmento que, pra variar, engrossava sua base eleitoral. Eu jamais pretendia remexer nesse caso passado, mas a história de falar sobre mortos me recolocou na raia, a propósito do ilustre morto dessa semana, o empresário e comunicador Sílvio Santos.

Gerações inteiras se encantaram com seu programa dominical, desde a extinta Rede Tupi, depois na Globo, até ele fundar sua própria rede. Certamente um dos mais longos programas de TV do mundo, começava ainda nas manhãs de domingo, quando milhões de lares brasileiros ecoavam seu gingle: “Agora é hora/de alegria/Vamos sorrir e cantar”. E chamava o refrão mais simplório e conhecido de uma população: “Lá, lá, lá, hey, lá, lá, lá: Sílvio Santos vem aí”. SS era o rei das manhãs, tardes e noites. Quem não se encantou com o enternecido Boa Noite Cinderela e aquelas menininhas derramando inocência e sonhos diante do charmoso tiozinho?

E a Porta da Esperança? Esse adulto aqui também foi uma dessas crianças iludidas com as promessas de tio SS. Não sei como, consegui o endereço do programa e remeti, desde o interior de Sergipe, uma singela cartinha, na qual eu confessava minha paixão e desejo de ganhar uma das maravilhas que a tecnologia nos apresentou naqueles anos: um gravador K-7. Jamais tive resposta, mesmo que fosse um desalentador e sonoro: não! Em matéria de sonhos mais fáceis de realizar, me dei melhor com o Clube Júnior, da Tia Nazaré Carvalho, na TV Sergipe, que publicou para todo o estado minha carta com aquela que era até então minha maior obra de arte, um desenho do Mickey Mouse.

SS era o chamado animal comunicador, condição logo utilizada pra produzir o maior camelô eletrônico do Brasil, com sua rede de lojas do Baú da Felicidade e outros negócios, de modo que sua performance televisiva sempre se confundiu com as atividades comerciais. De alguém que ganhasse um prêmio de verdade no seu Carnê do Baú, pouco se sabe, além de inutilidades de plástico e coisas assim. Daí para a mosca azul do poder, foi um pulo. Em 1989, quando o país se livrava de mais de 20 anos de ditadura e se preparava para seu primeiro pleito direto desde a eleição de Jânio Quadros em 1960, a popularidade do comunicador Sílvio encheu os olhos da classe política e dele mesmo, que foi lançado candidato num episódio turbulento, cheio de reveses e polêmicas, até ser finalmente abortada.

Assim sendo, apesar de nunca ter colocado os pés na política diretamente, esteve sempre cortejando o poder, os poderosos e as oportunidades. Seu partido foi sempre o mesmo: o do governo. Quando a frágil democracia brasileira começou a dar sinais da irrelevância a que chegou, inclusive e principalmente nos dias atuais, não hesitou em mostrar suas unhas preconceituosas, da extrema direita, apoiando o inominável Bolsonaro em todas as suas aventuras. Para piorar, uma de suas filhas casou com um belo rapaz egresso das oligarquias potiguares, Fábio Faria, tão bonitinho quanto ordinário, um jovem velho, corroído pelo que há de pior entre os políticos nordestinos, dissimulador, virulento, mesquinho.

O riquinho genro de SS veio engrossar os níqueis e a ética da família. No ultradireitista ninho bolsonarista, sempre esteve entre os mais nefastos: a tropa de choque de um governo espúrio, eivado de corrupção, perseguição, mentiras e uso da máquina pública para os piores objetivos. É desse mundo que fazia parte o senhor Senor Abravanel. Se um dia foi o criador de uma linguagem que fundou a própria televisão no Brasil, os anos o transformaram numa espécie de velho gagá, com gafes, equívocos de toda sorte, preconceitos e vulgaridades que marcaram sua fase de idoso na TV.

Enquanto os negócios seguiam bem, escorados na chamada classe C, pobres e miseráveis, sua televisão se tornou obsoleta como criadora de uma gramática audiovisual, diferente da Globo, sua arquirrival. Hoje, virou um baú de velharias, sem a mínima coerência de uma grade de programação, um Classificados ao vivo para vender de tudo e de todos, a começar pelas quinquilharias da casa, os açucarados perfumes Jequiti, cuja garota-chefe propaganda é a mesma Patrícia, a do tal Fábio. O melhor filtro para avaliar a grandeza desse bilionário que nos deixou no último sábado, aos 93 anos, seria a eleição de uma declaração qualquer, uma pequena frase que ele tenha pronunciado e que fosse digna de um epitáfio. No caso de Silvio Santos, que eu saiba, não há nenhuma.

 

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Sobre Luciano Correia

Luciano Correia
Jornalista e presidente da Fundação Cultural Cidade de Aracaju (Funcaju).

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