sábado, 16/11/2024
René Roberts: vítima da pressa e da morte lenta Foto: Divulgação

Todos com pressa

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Luiz Thadeu (*)

Dezembro de 2009, nevava forte em Dublin, onde fora em companhia de Rodrigo, meu primogênito, visitar Frederico, que lá residia, pois fazia intercâmbio. Eles foram pegar um táxi que nos levaria ao aeroporto; embarcaríamos de volta para casa, após quarenta dias viajando pelo Velho Mundo. Era minha primeira viagem após o grave acidente de carro em julho de 2003. Fiquei em um ponto, com as bagagens, aguardando meus filhos; começou a chover forte, tinha que mudar de lugar, procurar abrigo para melhor me proteger da neve, do frio, da chuva.

Por me locomover com muletas, não puxar malas, fiquei ali a esperar por ajuda de algum transeunte, que passava  com sua pressa frenética. Mesmo vendo minha dificuldade, ninguém parou para ajudar-me. O tempo passou, fiquei ali até que voltassem, finalmente embarcamos no táxi rumo ao aeroporto.

Narro esse episódio para falar da triste morte do fotógrafo suíço René Robert, 84 anos, conhecido pelos retratos de algumas das estrelas de dança flamenco mais famosas da Espanha, como Paco de Lucia, Camarón de la Isla, Chano Lobato, Fernanda de Utrera, Aurora Vargas, Tomatito, Antonio Gades, Cristina Hoyos, Sara Baras, Carmen Linares, Vicente Amigo e outros.

René Robert morreu de hipotermia no dia 19 de janeiro depois de escorregar durante uma de suas caminhadas noturnas pelo movimentado bairro de Paris onde morava. Ele ficou nove horas estatelado no chão à espera de ajuda, mas ninguém parou para socorrê-lo. Vi a notícia na TV, chamou-me a  atenção como um homem morre na rua, no frio, em uma das cidades mais cosmopolitas e civilizadas do mundo.

Segundo a imprensa francesa, a notícia da morte de René Robert foi dada por seu amigo e jornalista Michel Mompontet numa série de publicações em uma rede social. Segundo ele, Robert sofreu a queda por volta das 21h, na rue de Turbigo, entre a praça da República e Les Halles, em Marais, região que conheço bem na Cidade Luz, pois já me hospedei nas cercanias.

“Ele sofreu uma tontura e caiu”, escreveu Mompontet no Twitter. “Incapaz de se levantar, ficou imóvel no local, no frio, por nove horas, até que um sem-teto chamou os serviços de emergência”. Muito tarde. Ele tinha hipotermia e não conseguia se agarrar à vida. Ao longo dessas nove horas, nenhum transeunte parou para verificar por que esse homem estava deitado na calçada. “Nenhum”, lamentou o amigo.

Quanto maior o lugar e teoricamente mais “desenvolvido”, mais distante são as pessoas, sempre apressadas em seu mundinho, com seus afazeres, em seus infernos individuais. Estamos todos sempre apressados, não há tempo para ser solidário com a necessidade ou a dor do outro.

Prestaram atenção que quem se incomodou com aquele homem inerte no chão, na fria rua parisiense foi um desvalido, ou seja, um sem-teto? Isso prova que os que menos têm são os que mais ajudam.

No Brasil, na pandemia, são os pobres que mais ajudam outros pobres. Os que mais dividem são os que pouco têm. A solidariedade, a ajuda, o acolhimento são  características  dos mais humildes.

Tempos atrás se diria que René Robert morreu como um cachorro na rua, hoje não mais. Um cachorro na rua, em um abrigo, ou mesmo abandonado em uma casa, logo haveria um clamor nas redes sociais, que desencadearia mobilizações para salvá-lo. Se encontrassem o “humano”, ou melhor “desumano”, responsável pelos maus tratos ao animal, seria execrado, responderia a processos, estaria preso. Hoje a vida de um cachorro vale mais do que a de um humano. Que mundo louco esse que estamos vivendo, em que um ser humano cai na rua, fica horas desacordado, no frio, morre, com pessoas passando ao seu lado sem lhe darem importância, todos apressados. Mas para que tanta pressa, se tudo vai acabar mesmo?

Em resumo, René Robert morreu de frio, mas principalmente de descaso, como morrem tantos, todos os dias, em tantas cidades do mundo. O fato do fotógrafo ser um profissional reconhecido internacionalmente permitiu que sua morte não se tornasse mais um número igualmente frio em uma triste estatística, e ganhasse nome e rosto: anualmente, milhares de pessoas morrem nas ruas de várias cidades do mundo. Recentemente uma matéria de TV mostrou a triste realidade dos moradores de rua de São Paulo, a maior, mais rica e populosa cidade sul-americana.

Com a pandemia e a crise econômica que atravessa o país, quase dobrou o número de sem-tetos nas ruas paulistanas. A fatalidade da morte de René Robert é vivida todos os dias por muitos dos nossos irmãos brasileiros, e por estarmos anestesiados pelas misérias cotidianas não nos comove mais.

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(*) Luiz Thadeu Nunes e Silva é engenheiro agrônomo, palestrante, cronista e viajante: o sul-americano mais viajado do mundo com mobilidade reduzida, visitou 143 países em todos os continentes.

** Esse texto é de responsabilidade exclusiva do autor.  Não reflete, necessariamente, a opinião do Só Sergipe.

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Sobre Luiz Thadeu Nunes

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Eng. Agrônomo, Palestrante, cronista e viajante: o homem mais viajado do mundo com mobilidade reduzida, visitou 151 países em todos os continentes da terra. Autor do livro “Das muletas fiz asas”.  Membro do IHGM, Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão; ABLAC, Academia Barreirinhense de Letras, Artes e Ciências; ATHEAR, Academia Atheniense de Letras; e da AVL, Academia Vianense de Letras, membro da ABRASCI. E-mail: luiz.thadeu@uol.com.br

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