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Um olhar sobre a atuação da Maçonaria na luta contra a segregação racial nos EUA; lições para o Dia da Consciência Negra

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Alexandre Lemos (*)

No mês de novembro comemora-se o Dia da Consciência Negra, hoje, 20, data esta considerada como a da morte do lendário Zumbi dos Palmares (20.11.1695)¹. Tal data não é considerada feriado nacional, mas tem o valor simbólico de inserir o cidadão na reflexão da luta que os povos de origem africana enfrentaram e enfrentam no nosso país.

Não há dúvidas, no atual estágio civilizatório, que a escravidão dos povos africanos foi uma das mais perversas quimeras deflagradas pelos povos ditos civilizados. O olhar do homem sobre o próximo não era igualitário, enxergava-se o negro como um objeto, uma propriedade, um produto, que precisava ser vendido, comercializado, substituído e, principalmente, produzido a todo vapor, como uma peça de um modelo econômico. A engrenagem do mercantilismo servia-se da escravidão e da crueldade que só o ser humano pode lançar contra o seu semelhante.

 

Mas, no fim do século XVIII e durante os séculos XIX e XX, as nações passaram a abolir tal prática: a Dinamarca, por exemplo, aboliu a escravidão em 1792. A escravidão foi abolida também pelo Haiti (1794), Holanda (1821), República Dominicana (1822), Chile (1823), Honduras (1824), El Salvador (1824), Nicarágua (1824), Costa Rica (1824), Guatemala(1824), Bolívia (1826), México (1829), Reino Unido (1842), Paraguai (1842), Uruguai (1842), França (1848), Equador (1851), Colômbia (1851), Argentina (1853), Venezuela (1854), Peru (1854), Portugal (1854), Rússia (1861), EUA (1863), Império Colonial Holandês (1863), Zanzibar (1873), Gana (1874), Turquia (1876), Cuba (1886), Brasil (1888), Tunísia (1890), Gâmbia (1894), Madagáscar (1897), China (1906), Serra Leoa (1928), Nigéria (1936), Etiópia (1942), Alemanha (1945), Marrocos (1956), Arábia Saudita (1962) e Mauritânia (1981)².

Monumento em homenagem a Zumbi dos Palmares, no Rio de Janeiro Foto: Tomas Silva/Agência Brasil

A abolição, contudo, não apaga o racismo. Este fenômeno sócio-cultural permanece na maioria desses países. Pode ocorrer de forma explícita ou implícita, pode ser velado, disfarçado, em forma de anedota, de dito popular etc., mas não há como esconder. O racismo persiste e somente terá fim por meio da conscientização, da reflexão, do conhecimento da história, da conversa de pais com filhos, etc. Apenas o próprio ser humano, individualmente, decide seu modo de viver, racista ou anti-racista.

Superada essa introdução, faz-se um corte epistemológico. Situa-se este texto nos Estados Unidos, durante os anos 50, do século passado. Na pequena cidade de Topeka, no Estado do Kansas, o Sr. Oliver Brown resolveu matricular sua filha, Linda Brown, na escola primária mais próxima de sua residência. Oliver era um soldador da estrada férrea (Santa Fe Railway) e a matrícula de sua filha na escola primária iria poupar uma extensa caminhada de muitos quarteirões para a escola primária só para negros.

Linda Brown em 1964 Foto: Wikipedia

Até então, nos EUA, existia a doutrina dos separados, mas iguais – “separate, but equal”, na qual a Suprema Corte Americana havia estabelecido no precedente Plessy vs. Ferguson, de 1896, que não era contra a igualdade existir estabelecimentos segregados só para negros. Para a Suprema Corte, não havia violação à igualdade a existência de estabelecimentos destinados somente para os negros, desde que, nestes estabelecimentos, estes fossem tratados com igualdade. Daí, a máxima: “separados, mas iguais”. Com isso, houve a organização da sociedade americana, pós-abolição, de um sistema social segregacionista. Havia escolas só para brancos e outras só para negros. Bancos de ônibus só para negros e outros só para brancos. Isso valia para vagões de trem, cinemas, teatros, hotéis, bares, restaurantes etc.

Com a recusa da escola primária de Topeka, Oliver Brown decidiu ajuizar uma ação contra o Conselho de Educação de Topeka. Além do seu caso, outras famílias passaram pela humilhação de terem a recusa da matrícula de seus filhos em escolas primárias da referida cidade, apenas pelo critério da cor da pele. Foram treze os autores desta ação, que ficou conhecida como o precedente Brown vs. Board of Education of Topeka.

Na luta para acabar com os espaços de segregação racial, as treze famílias de Topeka tiveram o apoio da NAACP – The National Association for the Advancement of Colored People, uma associação criada para melhorar as condições de vida das pessoas de cor negra. Tinha como missão assegurar a igualdade de direitos políticos, educacionais, sociais e econômicos para todas as pessoas e eliminar a discriminação racial. Esta associação foi fundamental para que o caso das treze famílias de Topeka chegasse à Suprema Corte.

Nos EUA, diferentemente do Brasil, o acesso à Justiça é caro e nem todos os casos chegam à Suprema Corte, que somente decide os casos que escolhe julgar. O julgamento deve surgir de um certo clamor da sociedade e isto envolve uma organização, contatos, advogados, audiências, reuniões, as quais aquelas treze famílias do interior do Kansas não teriam. Aquele caso estaria fadado ao julgamento na Corte de Kansas, que negou o direito de Brown e dos demais autores, reafirmando a doutrina dos separados, mas iguais.

Também a NAACP não teria força se não contasse com financiadores. Toda a organização e preparação do caso requeria, para ser levado a julgamento pela Suprema Corte, a contratação de Advogados, assessores de imprensa, lobistas, viagens nos Estados para angariar apoios de outras lideranças e políticos etc.

Aqui entra a Maçonaria neste ponto da história. A NAACP foi financiada e teve o apoio incondicional da Loja Macônica Prince Hall³. As Prince Hall Lodges doaram para a NAACP atuar no caso Brown vs. Board of Education of Topeka a quantia de US$ 20.000 (vinte mil dólares)4, o que equivale a US$ 223.230 (duzentos e vinte e três mil e duzentos e trinta dólares), nos dias atuais. Em nossa moeda, nos dias de hoje, a quantia arrecadada pelas Prince Hall Lodges corresponderia à quantia de mais de um milhão, cento e sessenta mil reais.

Tal quantia demonstra o esforço dos maçons para arrecadarem dinheiro por uma causa que enfrentava o flagelo da desigualdade. Aquelas crianças segregadas de Topeka não buscavam apenas o direito de frequentar uma escola ou qualquer escola, mas lutavam por dignidade, por iguais oportunidades e pelo direito de se desenvolverem enquanto pessoas, sem discriminação.

Todo esse esforço teve resultados. Em 17 de maio de 1954, a Suprema Corte Americana decidiu o caso e firmou o precedente Brown vs. Board of Education of Topeka, por unanimidade, decidindo que era inconstitucional a segregação racial nos espaços públicos e privados. A partir da decisão, a jovem Linda Brown foi matriculada na escola primária mais próxima de sua casa.

Tal decisão foi um marco civilizatório na história dos Estados Unidos e teve o papel ativo da Maçonaria em seus bastidores. É um orgulho muito grande quando se observa que a sublime instituição está sempre direcionada para o progresso da humanidade, para a igualdade substancial de direitos, para a defesa da liberdade contra regimes absolutistas e, principalmente, para a criação de uma verdadeira cultura de fraternidade.

Dos três lemas da Revolução Francesa, liberdade, igualdade e fraternidade, este último é o mais difícil, é o ideário máximo da humanidade. Uma sociedade fraterna não irá mais precisar de outras bandeiras. Não haverá submissão, pois todos se respeitarão, todos terão voz, todos sofrem juntos e ninguém é oprimido ou tratado como um mero objeto.

Essa luta contra o racismo não pode parar. A Maçonaria, como instituição da sociedade civil, fundada há 200 anos, no Brasil, deve sempre liderar esse debate. Tem que se posicionar sempre do lado certo da história e este lado é o lado da igualdade substancial, do respeito ao próximo e do tratamento equânime.

Assim, no Dia da Consciência Negra é importante fazer esse resgate histórico. Há, ainda, muito o que fazer. E a Maçonaria como instituição que tem como pilar a construção de uma sociedade fraterna tem que se posicionar e buscar a melhoria da condição humana nesta lenta evolução histórica.

 

___________

[1] Lei nº 12.519, de 10 de novembro de 2011 – Art. 1º É instituído o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, a ser comemorado, anualmente, no dia 20 de novembro, data do falecimento do líder negro Zumbi dos Palmares.

[2] Fonte: https://www.infoescola.com/historia/cronologia-da-abolicao-da-escravidao-no-mundo/

[3] Vide: https://nationalheritagemuseum.typepad.com/library_and_archives/naacp-national-association-for-the-advancement-of-colored-people/

[4] Vide:  https://www.americanheritage.com/secret-history-prince-hall-freemasonry#8

 

(*) Alexandre Lemos – advogado e Procurador de Estado, Mestrando em Direito

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