Por Léo Mittaraquis (*)
“Vou pedir ao Dr. Aquiles que me faça uma transfusão, e depois me ceda um de seus fáceis navios. Partirei. Com sangue emprestado, e com um dos barcos da esquadra do doutor, eu partirei; e assim irei morrendo um pouco em Paris, um pouco mais em Viena, até o último dia, que imagino ao entardecer, entre as penedias de um Adriático de sonho.”
Gustavo Corção
Cresci ouvindo boa música. A erudita e a popular. Comum, em casa, casa de gente pobre materialmente, abastada em termos de Ciências do Espírito, de Humanidades; ouvi, desde os primeiríssimos anos, de Mozart a Beethoven, de Nelson Gonçalves a Altemar Dutra, Cartola, Ângela Maria, Dalva de Oliveira, Moacir Franco, Pixinguinha e, com as devidas recusas paulvaleryanas, os tropicalistas. A lista é um pouco mais longa. Mas para não incorrer em delongas, creio que o dito, neste introito, basta.
Rio de Janeiro, cidade natal. Depois Vitória da Conquista e Itabuna (intelectual e esteticamente inesquecíveis) e, por fim, em sergipanas terras Del Rey.
Tive a santificada sorte de ainda sorver os derradeiros laivos da estertoranda, no dizer do bibliófilo Roberto Oliveira, atmosfera vienense de Aracaju. Inclusas música e literatura.
Criança, ainda, amava ouvir boas rádio emissoras, com ênfase nas respectivas programações musicais.
Aqui, em algum momento, chegou-me aos ouvidos a programação da Rádio Cultura. Fiquei em êxtase.
Em tempo: segundo o site oficial da emissora, a Rádio Cultura foi fundada em 21 de novembro de 1959 por Dom José Vicente Távora, então Bispo de Aracaju. A Rádio Cultura de Sergipe tinha como objetivo colaborar o projeto de educação popular do Movimento de Educação de Base, que levava a educação aos camponeses por meio de professores. A Cultura leva ao ouvinte uma programação de qualidade na qual consta educação, cultura, informação, cidadania, entretenimento e evangelização.
O programa tocava o que eu aprendera a ouvir. O que ouvira não só nas vozes intérpretes (por vezes pela voz do próprio compositor) mas, também, pelas vozes afinadas dos meus pais. O Seu Léo Mittaraquis e sua vibrante, profunda e arrebatadora voz de barítono. Um grego autêntico a cantar com graves bem definidos. E Dona Vilma, sergipana que foi buscar no Rio de Janeiro seu príncipe encantado, me embalava com qualificada voz em mezzosoprano. Expressividade sonora do amor materno, da resignação diante das dores do mundo, da alegria em, ao mesmo tempo, não se contentar com a mediocridade. A sempre me recordar: “não se contente com o pior, ainda que seja, por força das circunstâncias, obrigado a se contentar com pouco. Decididamente, não são a mesma coisa”.
E, soubrette, seguia a cantar algo interpretado por Dircinha Batista ou o trecho de uma ária.
Aparentemente divaguei. Contudo, não. O que fiz? Apresentei histórico e certificação de parte da minha trajetória de vida. Assim o solidário leitor compreenderá as razões tão somente conhecidas pelo coração, as quais me fizeram um fã do programa do extraordinário locutor Irandi Santos.
Soube, desde o início, que com ninguém mais, exceto meus pais, eu poderia compartilhar esse amor, esse enlevo.
Os anos se passaram. O programa chegou ao fim. Minha vida, de musical melancolia, continuou. Flagrei-me, em momentos tão particulares, a relembrar da doce voz de Irandi, da programação, do menino ouvinte que preferia ficar sozinho, sempre mal adaptado ao entorno. Sempre alvo de chacotas, a ser, como diria o jornalista e cinéfilo Ivan Valença, “um poço de complexos”.
Nas entrelinhas da existência reformulada permanecia, como um relicário, a lembrança terna do locutor e do programa.
E foi num desses crepúsculos da vida, os quais foram denominados “frestas entre mundos” por Dom Juan Matos, feiticeiro yaqui, mentor de Castañeda, que decidi celebrar as tardes musicais irandianas: sentado nas pedras negras, em duro contraste com a fluida e esbranquiçada espuma das ondas, num anônimo local, abri e bebi o excelente Château Pilet Blanc.
Santé!
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